Felipe Guerra
Nascido neste Estado, no Municipio do Triumpho, hoje Augusto Severo, retirei-me cedo, aos seis annos de edade, em companhia de meo Pae, para Minas Gerais, onde na velha Ouro Preto, residimos onze annos.
Nessa antiga capital fiz todos os “preparatorios”.
Voltei depois ao sertão de minha terra; ahi residi um anno em férias; pois meo Pae, cheio de pezares pela morte de um meo irmão que acabava de formar-se em S. Paulo, já tendo perdido anteriormente o seu primogenito que cursava uma Academia, mostrava desejos de que eu abandonasse os estudos academicos. De passagem digo que essa má sorte que roubou a meo Pae seus mais queridos e mais esperançosos filhos, ainda opprimiu, depois de sua morte, a nós outros que ficamos, fazendo desapparecer do numero dos vivos, outro filho que com brilhantes esperanças, já havia encetado sua vida publica e cursava o quinto anno da Academia de Direito do Rio de Janeiro.
Estive pois, ao voltar de Minas, um anno inteiro no Sertão. Esse anno – 1885 – foi de pessimo inverno.
Não podia ser maior o contraste: de Ouro Preto ao Sertão Secco... Isto é, da terra dos nevoeiros, da garôa, da geada, do meio das “alterosas montanhas” onde não se concebe que um rio, um regato, uma fonte, seja susceptível de deixar de correr; para a velha “Timbaúba” nos limites da Parahyba com o Rio Grande do Norte.
Passei o anno em férias, aliás pouco divertidas: o povoado mais proximo achava-se a cerca de seis leguas da fazenda.
Percorria caminhadas de uma ou duas leguas a pé, em caçadas pela serra, sobe ardentíssimo sol, voltava logo á casa obrigado por intensa sede.
Em todo o percurso pela serra não era encontrado vestígio denunciador d’agua.
Para o fim do anno a agua necessaria a todos os usos domesticos era buscada a uma dinstancia de um quarto de legua.
Qualquer nuvem, qualquer relampago, cujo pestanejar era apenas vislumbrado na orla de longínquo horisonte, eram recebidos com alegria e com esperanças. A observação desses factos feria a minha descuidosa imaginação. O primeiro sentimento que experimentei foi o de mêdo. Mêdo de achar-me em pleno Sertão, com o porto mais proximo a trinta leguas de distancia, por caminhos que a minha phantasia figurava intransponíveis. Depois, mais habituado, com os nervos mais calmos, invadiu-me profunda compaixão pelo povo sertanejo, com seus soffrimentos, ameaçada a sua existencia por tão extranha situação, que suppunha condenal-o a perpetua mizeria, em adusto e resequido solo, inapto, pensava, para desenvolvimento da vida social.
Com o correr dos tempos, mais conhecedor da vida sertaneja, observando a índole forte e bondosa do povo, conhecendo melhor suas aptidões, sua inclinação para uma vida de sociedade; vontade de aprender, (não é excepcional vêr-se rude e quasi analphabeto professor, pelas fazendas leccionando primeiras lettras) vi que esse povo tinha a fibra dos fortes e energia para vencer. Aquelles sentimentos, transformaram-se em admiração.
Si um povo ao abandono era capaz de tal resistencia, si um povo completamente inculto era capaz de aninhar idéas de progresso material e de elevação moral, si esse povo em vez de barbarizar-se, procurava quasi instinctivamente melhorar, de que não seria capaz quando a sua cultura o tornasse apto a pensar conscientemente e a agir com a inteligencia esclarecida?! D’ahi a idéia constante que me tem preoccupado desde annos, de empenhar meu fraco esforço em prol dessa população. No Congresso do Estado, na imprensa, em palestras, nunca descurei desse proposito.
Em todos os lugares em que tenho residido proponho-me a lecionar, fazendo papel de mestre-escola, quasi sempre gratuitamente. D’ahi varios artigos publicados pela imprensa; e como meio de despertar espíritos já adultos, a propaganda sobre a açudagem.
É claro, e nem precisaria dizel-o, essa propaganda, principalmente sobre açudagem, iniciada e sustentada teimosamente, por um só, distincto pela fraqueza para arcar com pesado fardo, audaciosamente em rebater os golpes que a sua incapacidade provocava, não podia produzir abundantes fructos. – Certamente não tenho a pretenção de ser o iniciador da idéia de açudagem no Sertão e muito menos da instrucção.
Desde annos havia sido iniciada a pequena açudagem sertaneja; julgo, porem, no Rio Grande do Norte, ter sido o primeiro a levar a idéia a exame do poder publico, e a encetal-a insistentemente pela imprensa. – Por mais de uma vez já tenho sentido o consolo e o prazer de ouvir: “Segui o seu conselho; fiz um açude, e graças a elle atravessei muito regularmente a crise”.
“Os seus escriptos, escreveu-me intelligente e insuspeito patrício da zona do Seridó, coronel Felinto Elisio, guardo-os para educação de meus filhos” “... parabéns pelos seus belos trabalhos sobre regiões interessantíssimas deste Estado. O collega permittirá esta expontanea manifestação de sympathia porque é sincera. Não são muitos os que escrevem com tão elevado e criterioso ponto de vista.”
Expressões estas excessivamente bondosas que da Capital do Estado dirigiu-me o Dr. Curvello de Mendonça, o conhecido autor da “Regeneração” e que abrilhanta as columnas do “O Paiz” do Rio.
De vários esparsos resolvi publicar o presente livro.
As referencias, para mim honrosissimas, que acima faço, não significam sentimento de vaidade; fazem o papel de apresentação do presente livro: é muito desculpável a quem, pouco confiante em si, procura padrinho capaz de amparar-lhe a fraqueza. E esses que ahi ficam não foram procurados; si lhes sobra capacidade para proteger minha fraqueza, não lhes falta a mais fidalga generosidade.
Sei que cheio de faltas e de incorreções acha-se este livro.
Conheço o estilo barbaro e matuto de suas paginas; perfeição porem não pode offerecer titulado matuto que nem tempo nem dinheiro tem tido para aperfeiçoar conhecimentos.
Não visa porem renome, nem almeja fazer obra litterária a publicação desta modesta obra. O seu fim é trabalhar pela propaganda da instrucção e da açudagem.
Si, com certeza, não são idéias nova para o Estado – tão pretencioso não seria seu – são idéias tão capitaes à vida sertaneja que exigem ininterrupto alerta!
A idéia creadora da presente obra já foi manifestada e em resumo não é mais do que um preito de admiração que rendo aos humildes, corajosos e soffredores filhos da minha terra. Para estes é especialmete escripta. Sei que elles comprehenderão meus intuitos.
A parte histórica, se assim é possível chamar a ligeiras chronicas, contem copia de antigo manuscripto de um meu antepassado; seguem-se apontamentos colhidos por meu irmão Theophilo Guerra, a maior parte em escriptos de meu Pae; e depois constam de observações e escriptos do meu referido irmão. Foram escriptas em epochas differentes, e em diversos lugares. Cada uma leva o cunho de sua epocha, e do auctor. A carta junta explica a forçada collaboração de meu irmão.
Os meus artigos obedecem à ordem chonologica: vão conforme as datas de sua publicação, alem de alguns não publicados ainda.
É possível que algum facto esteja apreciado de modo diverso do que hoje o faria. Tive mesmo em um ou dous artigos que modificar um certo tom, que, para quem não está a par de circumstancias da ocasião, poderia parecer aggressivo. É muito diffícil aparar golpes sem atirar golpes.
Não me exprimo assim a cata de desculpas, que não as quero, pois não me julgo culpado. É apenas para explicar alguma pequena differença entre um ou dous artigos já publicados e aqui exarados.
Ahi está a obrinha, filha da minha vontade de ser útil. Aos doutos peço benevolência e rogo não a julguem antes de se armarem de coragem e de paciência para lêl-a toda. Aos meus patrícios manifesto minha gratidão pelo auxilio prestado para a sua publicação. Seria manifesta ingratidão esquecer o “Diário do Natal” e o “Commercio de Mossoró”, pelo auxilio material e pelo ensinamento com que sempre me ampararam.
Mossoró, 26 – Maio – 1909.
Phelipe Guerra
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Apresentação do Livro Seccas Contra a Secca: Rio Grande do Norte (Seccas e invernos, açudagem, irrigação, vida, costumes sertanejos).
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