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domingo, 1 de julho de 2012

VIAGENS AO NORDESTE

CAPÍTULO IV - VIAGEM A GOIANA. VIAGEM DE GOIANA À PARAÍBA E REGRESSO A GOIANA. ALHANDRA

Henry Koster

Desejava realizar uma longa viagem nas regiões menos povoadas e mais incultas desse país. O engenheiro-chefe de Pernambuco entendera inspecionar todas as fortalezas do seu vasto distrito e havia bondosamente permitido que eu o acompanhasse. Infelizmente a jornada foi transferida para a estação seguinte por causas relativas ao seu próprio ofício. Sem saber quando teria necessidade de voltar à Inglaterra, não a quis retardar por mais tempo e comecei a informar-me com amigos e conhecidos e soube que o irmão de um senhor, residente em Goiana, estava em vésperas de partir para esse lugar e, provavelmente, tendo em vista alguns negócios, penetraria mais o interior da região.



Era minha intenção ir até o Ceará. Solicitei um passaporte ao governador e o obtive sem dificuldades maiores. Na tarde de 19 de outubro de 1810 alguns amigos ingleses foram até minha cabana em Cruz das Almas, a fim de assistirem à partida que se daria na noite subsequente. Sr. Felix, meu companheiro, chegou ao entardecer, trazendo seu guia negro, um preto livre. Todos os preparativos para a jornada foram feitos e nos pusemos a caminho cerca de uma hora, ao nascer da lua, Sr. Felix, eu, John, meu criado inglês, a cavalo, armados de espadas e pistolas, e o guia negro, também montado, sem sela nem brida, carregando um bacamarte e levando diante de si um cavalo conduzindo a bagagem, com um mulatinho escanchado entre os cestos.
Os amigos ingleses despediram-se em Cruz das Almas, ficando a minha casa entregue a um deles, durante minha ausência. A estrada que percorríamos, ao clarão da lua, eu passara por ela tantas vezes que poderia servir de guia. Seguimos, durante três quartos de légua, por um atalho arenoso e logo depois subimos uma colina rápida cujos lados e cume eram cobertos de grandes árvores, com matagais crescendo por baixo delas.
O lugarejo Beberibe é situado na outra declividade. Atravessa-o um regato com lindas e transparentes águas. Aí residem muitas famílias durante o verão. Meia légua depois de Beberibe cruzamos outro arroio e imediatamente começamos a galgar o morro do Quebracu, cujos acessos são ásperos e difíceis, com precipícios e além um campo em aclive, tudo cheio de vegetação. A chã é ampla e limpa e as veredas se alargaram por meia légua entre majestosas árvores e matagal impenetrável. Descemos para o estreito e longo vale de Merueira, cortado por um riacho que nunca seca. Os lados dessa colina são revestidos de espessa vegetação e, no vale, vimos várias moradas, plantações de bananas, campos de mandioca e um vasto cercado onde o gado pastava. A descida, no oposto dessa bonita planície, é muito rápida. O caminho, ao correr dos cimos, é igual ao que tínhamos vencido antes. Quando descemos, ao chegar embaixo, entramos na solitária povoação de Paratibe, onde as plantações de mandioca e fumo se entremeiam às casas. Os habitantes são, em maioria, trabalhadores livres, brancos, mulatos e negros. As casas, construídas à margem da estrada, intervaladamente, tomam a distância de uma milha. Um regato corre no meio e, na época das chuvas, às vezes transborda, alagando ambas as margens, numa grande extensão. Depois da aldeia, o caminho é relativamente horizontal, mas ainda irregular pelas elevações repetidas e desiguais. Veem-se os engenhos e grande número de casinhas. A passagem dos moradores, com cavalos carregados de algodão, couros e outros produtos da zona, e voltando do Recife com várias espécies de mercadorias, carne e peixe salgado, é, para bem dizer, contínua.
A vila de Igarassú, onde entramos a seguir, que já foi mencionada no capítulo anterior, é uma das mais antigas fundações nesta parte da costa, situada à distância de duas léguas do mar, e sobre a margem duma enseada.
A vegetação que cobre os caminhos e atalhos é, em parte, tão densa e espessa que é impossível passar um homem a pé, a menos que leve um facão e com ele rompa todos os obstáculos à sua marcha. O mais formidável desses obstáculos é o cipó, consistindo em vergônteas longas e flexíveis que se entrelaçam ao redor das árvores, e um dos ramos que se não haja fixado fica balançando, para lá e para cá, ao sabor do vento, prendendo-se sobre outra planta. A operação continua por muitos anos seguidos e termina formando uma rede, de forma irregular, que impede a passagem através do emaranhado. Essa planta tem várias espécies, uma delas tem o nome de "cipó cururu", de alta estima pelo tamanho, resistência e grande flexibilidade. Várias espécies desses cipós são empregadas em cordas para paliçadas e muitos outros fins.
Igarassú é parte situada sobre um outeiro e parte na planície, irrigada por um riacho, atravessado por uma ponte de pedra, pois as marés chegam até esse ponto, tornando precárias as comunicações.
O lugar demonstra claramente ter usufruído maior prosperidade que a presentemente possuída. Muitas casas têm dois pavimentos, mas estão deterioradas, e algumas com aspecto de decadência e ruína. As ruas são calçadas mas carecem de reparos e a erva cobre vários lugares. Conta muitas igrejas, um convento, o Recolhimento ou Retiro para mulheres, a Casa da Câmara e a prisão. Sua prosperidade era devida antigamente à semanal feira de gado, que se reunia num plaino vizinho mas, há poucos anos, mudaram-na para os arredores de Goiana. Igarassú tem muitos moradores brancos, várias lojas, um bom cirurgião, educado em Lisboa. É o local da reunião dos agricultores, na distância de muitas léguas, seja para embarcar suas safras de açúcar, seja para adquirir objetos de necessidade. Esta vila contará cerca de oitocentos habitantes, computando as choupanas esparsas pelas imediações. Dizem que a paisagem, vista da torre da igreja matriz, é grande e bela.
O único albergue regular de que essa região se possa orgulhar é estabelecido aqui, para conveniência dos viajantes entre Recife e Goiana. Tínhamos a intenção de parar, mas como não era muito tarde quando chegamos, resolvemos prosseguir, antes que o sol estivesse mais forte.
A estrada continua arenosa e reta e, duas léguas além de Igarassú, penetramos na povoação de Pasmado, construída em forma quadrada. Consiste em uma igreja e certo número de choupanas, de humilde aparência, contando ao redor de duzentos ou quatrocentos habitantes. Atravessamo-la sem parar, transpondo depois o Araripe, rio considerável para os que tenho ultimamente visto, passando aos cercados do engenho Araripe de Baixo, pertencente a um português. Esperávamos que esse bom homem nos desse jantar, mas, depois de longa espera, para grande desconforto dos nossos estômagos, compreendemos que o nosso hospedador não se apressava em tornar real sua hospitalidade, e como houvéssemos perdido muito tempo nessa demora, regalgamos nossos cavalos, pelas duas horas, sob um sol ardente e depois de haver subido uma colina, deixados vários canaviais e moradas e cruzado vários córregos, atravessamos uma região deliciosa. Vimos os povoados de Bu e de Fontainhas e o primeiro com capela. Depois desse último, o caminho segue para um terreno saibroso, quase sem árvores, até descobrir-se o engenho de Bujiri, cercado de campos e verduras. Depois dessa plantação corre o rio de Goiana, que é preciso vadear. A maré remonta até aqui.
A ponte de madeira, que existia outrora, está estragada e é perigosa para os cavalos. Entregamos os nossos ao guia, que os fez atravessar a água, sem se desmontar, enquanto nós passávamos pelas vigas soltas. Essa operação não tomou muito tempo. Recebemos nossas montadas da mão do guia, com as selas úmidas e gotejantes, e poucos minutos mais chegávamos a Goiana, entre quatro ou cinco horas da tarde. A distância do Recife a Goiana é de 15 léguas.
Esse caminho que trilhamos é a grande estrada para o sertão, por onde o gado desce das fazendas no rio Assu, e dos campos nessa região do interior, para os mercados do Recife. A passagem contínua dos grandes rebanhos rasgou uma larga trilha arenosa, através das matas. As grandes árvores ainda permanecem, se é que tenha sucedido que alguma tenha crescido na estrada, essas, se forem de qualquer tamanho, afrontarão o bando de animais e continuarão a existir até que desapareça ou caia, ou até que as estradas regulares comecem a ser construídas no Brasil. Mas, se o solo é plano, a estrada não é má, mas, sobre os bordos dos cômoros, quando devia ter feito uma volta nos trechos escarpados, vai direto ao cimo, de alto a baixo. As torrentes invernosas formam ravinas e cavernas e as ribanceiras se abatem, tornando a passagem perigosa. Não se conhecendo bem uma colina, não se está certo em subir ou descer de noite.
Um ou dois dias normais de chuva no Brasil fazem grande diferença, tornando o caminho impraticável.
Durante a jornada desse dia, vimos quatro ou cinco grandes cruzes, toscamente construídas, eretas à margem da estrada. Marcam os lugares onde assassinatos foram cometidos.
Fui carinhosamente recebido pelo Sr. Joaquim, a quem tivera o prazer de ser apresentado no Recife, e não era homem que precisasse de delongas para maior conhecimento pessoal. Fomos jantar às cinco horas, quando a senhora, duas criancinhas, seus filhos, compareceram. Houve pratos preparados no estilo português, brasileiro e inglês.
A vila de Goiana, uma das maiores e mais florescentes da capitania de Pernambuco, é situada sobre uma margem do rio do mesmo nome, em uma grande curva nesse local, quase a rodeando. As casas, com uma ou duas exceções, têm apenas um andar. As ruas são largas, mas não são calçadas. Uma das principais é tão ampla que admitiu a construção de uma grande igreja numa das extremidades, e a extensão da rua é considerável em ambos os lados do edifício. A vila possui o convento dos Carmelitas e várias outras casas destinadas ao culto.
Os habitantes são de quatro a cinco mil e esse número cresce diariamente. Há também lojas e o comércio com o interior é intenso. Nas ruas sempre são encontrados numerosos matutos, camponeses que vêm vender seus produtos e comprar objetos manufaturados de que têm necessidade. Nas imediações existem muitos e excelentes canaviais. Creio que as melhores terras da província estão nesses arredores. Os proprietários residem, parte do ano, na vila, e a comunicação estabelece rivalidade entre as famílias, determinando o acréscimo de despesas, sendo beneficiada a vila com o aumento do consumo dos objetos de luxo.
Os agricultores têm a vantagem do transporte por água, para Recife, de suas caixas de açúcar. O rio é um dos maiores, em várias léguas ao norte e sul, e é influenciado pela maré, até pouca distância abaixo da vila. Goiana dista quatro léguas em linha reta do mar, mas o rio calculam estar afastado umas cinco léguas. Abaixo da vila o inverno faz o rio transbordar, inundando as margens numa vasta extensão.
Goiana e seu grande distrito pertencem, em assuntos militares, ao governador de Pernambuco e no que concerne ao civil ao juiz de fora, funcionário judicial nomeado pelo governo superior para um período de três anos. Reside na vila e de suas decisões há recurso para o ouvidor em Paraíba.
Jantamos uma ocasião com o proprietário do engenho Mussumbu. Este senhor, várias outras pessoas e eu estavamos à mesa em uma sala enquanto as senhoras, às quais não era permitido sequer trocar um olhar, serviam-se num aposento adjacente. Dois rapazes, filhos do proprietário, ajudados pelos escravos de seu pai, serviam à mesa e somente quando a deixamos é que eles vieram jantar. O dono desse domínio é português. É entre essa parte da população, que deixou seu país para fazer fortuna no Brasil, que a introdução de melhoramentos é quase impossível. Muitos brasileiros também, mesmo de classe superior, seguem os costumes mouriscos, de sujeição e reclusão, mas, tendo alguma comunicação com a cidade, veem depressa que é preciso preferir maneiras mais civilizadas e rapidamente possuem hábitos de polidez.
A 24 de outubro entreguei a carta de apresentação, que obtive no Recife, ao Dr. Manuel Arruda da Câmara. Esse homem ilustre estava em Goiana, muito doente de uma hidropisia, adquirida em sua residência num distrito sujeito às febres. Era homem empreendedor e entusiasta da botânica. Seus altos conhecimentos deviam interessar a qualquer governo previdente, especialmente num país incultivado mas sempre em desenvolvimento. Mostrou-me vários dos seus desenhos, que achei muito benfeitos. Não mais tive ocasião de vê-lo. Quando voltei do Ceará não houve tempo para encontrá-lo, e faleceu antes de minha segunda viagem a Pernambuco. Trabalhava na Flora Pernambucana, que sua morte deixou incompleta. O Sr. Joaquim tinha negócios na Paraíba e sua intenção era enviar o irmão para tratá-los. Ofereci-me para acompanhá-lo, e ele tinha prazer em viajar comigo e mostrar-me as curiosidades da cidade. Enviamos antes de nós o guia negro, meu criado, com um animal carregado, e partimos no outro dia, com um negrinho. Passamos a Campina de Goiana Grande ao nascer do sol, atravessando os canaviais e engenho desse nome, pertencentes ao Sr. Girão, e situados ao pé do outeiro que leva a Dois Rios.
A estrada, que depois percorri indo para o Rio Grande, passa por Dois Rios, mas a da Paraíba se afasta à direita O caminho entre Goiana e Paraíba nada apresenta de particular. As encostas são rudes, mas pouco elevadas, as árvores, plantações e choupanas são iguais às vistas anteriormente. A distância é de 13 léguas.
Chegamos à Paraíba ao meio-dia, parando à porta do coronel Matias da Gama, proprietário e coronel de milícias. Era amigo do senhor Joaquim e estava no momento de ir para seu engenho, o que fez, mas nos deixou inteiramente senhores da casa e com servos para atender-nos.
A cidade da Paraíba (lugares de menos população nesse país gozam deste predicamento) tem aproximadamente dois a três mil habitantes, compreendendo a parte baixa. Há vários indícios de que fora mais importante que atualmente. Trabalham para embelezá-la, mas o pouco que se realiza é à custa do governo, ou melhor, por querer o governador deixar uma boa lembrança de sua administração. A principal rua é pavimentada com grandes pedras, mas devia ser reparada. As residências têm geralmente um andar, servindo o térreo para loja. Algumas delas possuem janelas com vidros, melhoramento há pouco tempo introduzido no Recife. O convento dos Jesuítas é utilizado como palácio do governador e o ouvidor tem aí também sua repartição e residência. A igreja do convento fica ao centro e tem duas alas. Os conventos das Ordens Franciscana, Carmelita e Beneditina são amplos edifícios quase desabitados. O primeiro tem quatro ou cinco frades, o segundo dois e o terceiro apenas um. Além destes, a cidade possui seis igrejas.
As fontes públicas na Paraíba foram as únicas obras desse gênero que encontrei em toda a extensão da costa por mim visitada. Uma foi construída, creio, por Amaro Joaquim, governador recente, tem várias bicas e é muito bonita. A outra que se está fazendo é bem maior. A fiscalização das obras públicas era a melhor ocupação do governador.
Fomos visitar esse cavalheiro no dia seguinte à nossa chegada. Meu companheiro o conhecia desde Lisboa, quando ele era aspirante. Seus pais são de família respeitável numa província do norte de Portugal. Como o quisessem fazer padre, puseram-no num seminário, de onde fugiu e se alistou, simples soldado, em Lisboa. Um dos oficiais do regimento a que pertencia notou sua educação e, conhecendo sua história, fê-lo cadete, para agradar a família. Viajou no mesmo navio que trazia as princesas para o Brasil, sendo capitão de infantaria. Casando com uma das damas de honra logo que chegou ao Rio de Janeiro, 18 meses depois, passava de humilde capitão a governador da Paraíba e comendador da Ordem de Cristo.
Fomos depois a outra ala do prédio a fim de pagar a visita do ouvidor, um velho muito amável e bem-humorado. Seu capelão, um pequeno, jovial e vivo frade, era amigo do senhor Joaquim, e nos fez muitos obséquios durante minha estada.
A paisagem vista das janelas é uma linda visão peculiar ao Brasil. Vastos e verdes bosques, bordados por uma fila de colinas, irrigados pelos vários canais que dividem o rio, com suas casinhas brancas, semeadas nas margens, outras nas eminências, meio ocultas pelas árvores soberbas. As manchas dos terrenos cultivados são apenas perceptíveis.
A parte baixa da cidade é composta de pequenas casas, e situada ao lado de uma espaçosa baía ou lago, formada pela junção de três rios, fazendo a descarga de suas águas no mar por um longo canal. As margens dessa baía, como as de todos os rios salgados da região, são recobertas de mangues, tão unidos e compactos que parece não haver saída. Não acompanhei o rio até o mar, mas soube que havia algumas lindas ilhas, com terrenos ótimos, mas incultos.
Paraíba foi teatro de muitas lutas durante a guerra holandesa, e lamento não ter descido o rio até o famoso forte de Cabedelo. A guerra se desenrolou num espaço limitado, mas os feitos desses bravos defensores de sua terra os colocam no mesmo nível de todos os povos que lutaram por uma causa de igual importância.
O comércio da Paraíba é pouco considerável, não obstante o rio permitir que navios de 150 toneladas transponham a barra. Desde que eles se encontrem na baía, diante da cidade baixa, qualquer corda os mantém e podem estar ao abrigo dos perigos. Existe a regular alfândega, raramente aberta. Paraíba está fora da estrada que vem do sertão a Recife, quer dizer, está arredada do caminho para as cidades situadas no litoral, para o norte. Os habitantes do sertão, do interior, vão mais ao Recife por este apresentar pronto mercado aos seus produtos. O porto do Recife recebe navios maiores, oferecendo facilidades para embarque e desembarque de mercadorias; consequentemente, obtém a preferência.
As casas, que podem ser consideradas excelentes comparando-as na região, foram erguidas pelos ricos proprietários dos arredores, para residência durante o rigor do inverno, ou estação das chuvas. As terras da capitania são, geralmente falando, ricas e férteis, mas se dá uma tal preferência aos terrenos próximos ao Recife que estes da Paraíba são adquiridos a preços baratos. O açúcar dessa província é proclamado igual a qualquer outro doutra parte do Brasil.
Depressa vi tudo quanto era para ser visto. Não convivemos com a sociedade, mas o tempo não me pareceu longo a passar porque o senhor Joaquim era um homem de inesgotável hilaridade e bom humor. Vivíamos como por mágica. O coronel havia dado ordens ao seu criado para que suprisse todos os nossos desejos.
O último governador, Amaro Joaquim, levou a capitania a uma boa ordem, graças à necessária severidade. Prevalecia uma tradição de pessoas passearem à noite pela cidade, com imensos capotes e crepes no rosto, ocultando tudo, e se entregarem a práticas irregulares. O governador, não podendo chegar a saber quem eram esses indivíduos, deu ordens para que a patrulha prendesse quem encontrasse assim vestido. A ordem foi executada e, no dia seguinte, encontrava-se no quartel um dos principais moradores. Um homem, chamado Nogueira, filho de uma negra ou mulata, com um dos primeiros homens da capitania, era temidíssimo pela sua audaciosa conduta passada. Carregava as filhas da casa dos pais, pessoas veneradas na capitania, matando os amigos ou parentes que se opunham aos seus atrevimentos. O homem fora finalmente preso. Amaro Joaquim queria fazê-lo executar, mas percebendo as dificuldades criadas pela familia que intercedia, mandou que o açoitassem. Nogueira disse que era meio fidalgo, homem nobre, e essa punição não lhe podia ser aplicada. O governador então ordenou que só lhe fosse surrado um lado do corpo, para que o lado fidalgo não sofresse, devendo Nogueira indicar qual era o seu costado aristocrático. E, castigado dessa maneira, depois de haver permanecido muito tempo na prisão, foi desterrado, por toda a vida, para Angola.
A cidade da Paraíba desfrutou a tranquilidade e os bons efeitos da rigorosa administração de Amaro Joaquim. Conhecera-o em Pernambuco, antes de realizar esta viagem. Seu exterior e conversação indicavam ambos ser ele homem de superior inteligência. Quando o vi no Recife estava em caminho para o Piauí, em cuja capitania fora nomeado governador. Faleceu, de febre, a bordo de um navio costeiro que o conduzia ao Piauí.
O senhor Joaquim queria regressar a Goiana, a 32 léguas, pelas praias do mar. Partimos quando a maré estava em preamar, seguindo ao longo da baía, chegando às 11 horas na casa de um capitão-mor, homem de primeiro plano nesta parte do mundo. Sua residência era de barro, ainda mais feia que qualquer outra do mais miserável lavrador lusitano; situada sobre areia ardente, tendo diante da porta um poço de água salobra que jamais secava inteiramente, produzindo, decorrentemente, insetos de toda espécie. Duas vezes passamos água pela manhã. O transporte foi feito em jangadas. A sela e o passageiro vão na embarcação enquanto o cavalo, seguro pelas rédeas, nada perto da jangada. O jangadeiro usa remo se há profundeza ou vara se o trecho é raso. Pelas três horas percebemos estar numa vasta praia de areia, cercada de rochedos a pique, nos quais víamos a marca das enchentes. A maré ainda estava de vazante. Fizemos o guia montar num cavalo que vinha à nossa frente e apressamos o passo, mandando que nos acompanhasse. A maré estava ainda a pouca distância das rochas. Descobrimos uma mais destacada das outras, interceptando a passagem. Paramos e saltamos dos cavalos, grimpando pelas penedias. O guia, por esse tempo, conduzia as cavalgaduras por dentro d'água. Felizmente essas tomaram a direita, passando longe dos rochedos para descobrir, do outro lado, a terra, para onde se dirigiram. Trepando nas pedras, escorreguei um pé e caí numa fenda, com os dois pés, descendo até os braços, que felizmente me sustentaram o corpo. Reerguendo-me, saltando para outra banda justamente quando vinha uma vaga, esta me fez tomar um banho frio até a cintura. Podíamos esperar que a maré baixasse, mas temíamos ser surpreendidos pelo crepúsculo, o que, malgrado todos os esforços, devia acontecer. A terra, além do rochedo saliente, era baixa, arenosa e inculta. Ao escurecer chegamos às ribanceiras de um grande rio. A pouca claridade que nos restava já não permitia divulgar a margem oposta. Chamamos, repetidas vezes, o barqueiro, que não apareceu. E a noite caiu. Propus dormirmos sob a árvore que nos abrigava, mas o meu companheiro não aceitou e perguntou a distância para Abia, a mais próxima propriedade açucareira. O guia respondeu que três léguas. Ficaríamos ali ou então era marchar para Abia. Tínhamos feito 16 léguas e o cavalo do senhor Joaquim, um belo animal, mas um pouco gordo, estava fraquejando. O guia passou adiante e o seguimos, por um carreiro estreito e pouco transitado, porque os galhos tocavam continuamente nas nossas roupas, durante toda a extensão. Encontramos em Abia a residência vazia. O administrador fora para casa. Perdemos o desejo de entrar para uma choupana próxima ao prédio principal, quando notamos que já ali se encontrava um grupo numeroso e de mau aspecto. Tínhamos ainda outra meia légua para chegar ao senhor Leonardo, amigo do meu companheiro.
O senhor Leonardo nos deu um ótimo jantar, redes, e cuidou dos animais. Pela manhã partimos para Goiana, a sete léguas daí, passando por Alhandra, aldeia indígena, contendo cerca de seiscentos moradores. Esse povoado não é construído regularmente como os outros que tenho visto. Em vez de uma praça, com casas em cada lado, ele é formado pelas ruas, e ainda que a praça tenha sido conservada, nada lembra as demais povoações indígenas. Os índios de Alhandra, pela sua proximidade a Goiana, cerca de três léguas, não são tão puros como os que vivem distanciados de uma grande cidade. Eles admitem no seu meio os mamelucos e mestiços.
Grande parte na extensão da costa é desabitada, mas sempre que a terra é baixa e a ressaca não muito forte, encontrávamos algumas choupanas e as margens dos rios não são inteiramente destituídas de moradores.
Os dois primeiros rios que atravessamos devem ter de oitenta a cem jardas de largura, são profundos, mas não se prolongam para o interior do país. Quando cessa a ação das marés, todos os rios se tornam insignificantes e muitos deles ficam completamente secos. O grande rio que tínhamos querido atravessar era o Goiana. Ele se alarga muito quando a maré sobe, mas é facilmente vadeado na vazante, e o canal se estreita e é pouco profundo nas marés da primavera. Julgam-no com uma légua de largura na barra, mas sua maior amplitude é imediatamente depois da foz (...).

Um comentário:

  1. Um espetáculo! A crônica de uma viagem, permenorizando detalhes da nossa região. Um registro histórico impecável. Parabéns.

    Att.

    Rau Ferreira
    Blog HE

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