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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

JOSÉ AMÉRICO DE ALMEIDA – O ESCRITOR E O ESTADISTA

Ernani Sátyro

O SR. ERNANI SÁTYRO – Sr. Presidente, fácil e difícil este discurso. Poderá ser um paradoxo, mas não o primeiro da vida.
Fácil, porque tantas são as saliências da personalidade, que basta apontá-las para se fazer um elogio fúnebre.
Difícil, porque, se mesmo as criaturas humanas aparentemente mais simples guardam seus mistérios insondáveis, que dizer de um homem privilegiadamente inteligente, completo, cheio de rasgos de coragem e insolência e, ao mesmo tempo, doce e manso, podendo ser conduzido pelas rédeas do coração e convencido pela força do argumento?
Dir-se-ia, então, que existem dois José Américo de Almeida? Não, existem vários, e minha missão aqui, para colocar-me à altura do momento e da importância desta Casa, é pelo menos tentar uma interpretação de sua curiosa, estranha e original figura.
Falarei, pois, do político, do escritor e do homem. É uma divisão um tanto arbitrária, como arbitrárias são todas as distinções dessa natureza.
Mas o processo pelo menos servirá para que seja sublinhada, dentro da unidade de uma organização humana, cada uma de suas fases mais expressivas. Eu mesmo já disse sobre ele, quando ainda vivo, que era múltiplo e uno. Vejamo-lo, pois, na multiplicação dessa unidade.

José Américo, o político

Não foram felizes os seus primeiros passos na atividade política. Inquieto, indomável, divergiu do seu tio, o então presidente do estado, monsenhor Walfredo Leal. Só a muito custo reconciliou-se com ele, também chefe do partido dominante no estado. Seu primeiro cargo público foi a promotoria, numa comarca do alto sertão paraibano. Aí, a sorte iria favorecer o escritor, pois foi precisamente nessa estada na comarca de Souza que lhe adveio o conhecimento visual do problema das secas. Poderia conhecê-lo nas suas repercussões, nas regiões brejeiras, então imunes da calamidade, mas não no próprio teatro da tragédia.
Reconciliado com Walfredo, passou a ocupar, ainda muito moço, a Procuradoria Geral do Estado, junto ao Tribunal de Justiça.

 José Américo

Essa ascensão viria provocar aquilo a que se poderia chamar uma verdadeira revolução na sua vida. Cioso de seus deveres, das responsabilidades do cargo, como deveria portar-se diante de homens já velhos, todos eles praticamente em fim de carreira – que essa era a condição dos magistrados da época, quando chegavam ao degrau superior da carreira judiciária? Também naquele tempo, um homem de mais de cinquenta anos já era considerado um velho. Passou, então, José Américo a vestir as mesmas roupas pesadas e escuras dos desembargadores, alguns com idade de ser seu pai. Envelheceu-se a si mesmo, só permanecendo o mesmo por dentro, nas suas leituras silenciosas, na sua fome e sede de leitura, ao lado dos tratados jurídicos de direito, que também devorava.
A essa adaptação exterior, no entanto, não correspondeu a postura intelectual. Cedo começou a discordar dos velhos, a trazê-los atormentados com as suas indagações jurídicas, na perquirição minuciosa dos fatos, em uma atividade dinâmica que quebrava os silêncios da vetusta casa da Justiça.
Foi nessa época – para citar apenas um exemplo – que escreveu uma série de artigos contra um dos mais renomados juristas da época, lá da província, com o título de “Cartas a Lobo”. Parafraseava, assim, o título de notas, que se transformaria em livros, do velho praxista português do mesmo nome – Lobão – nas suas famosas “Cartas a Mello”.
Ao mesmo tempo, fazia suas incursões na literatura, ora escrevendo poesias para o Almanaque do Estado da Paraíba, ora artigos de crítica literária, sempre carregados de impetuosa fúria contra o que considerava sem valor artístico. Mas não soara ainda a sua hora, quer como escritor, quer como homem público. Isto só viria muito depois e será também mencionado depois.
Acompanhemos por mais tempo os passos do político.
Nessa época os juízes poderiam ser políticos. Por que não o seriam os representantes do Ministério Público? E José Américo empenhou-se, encarniçadamente, pela imprensa, na campanha eleitoral de 1915, em que Epitácio Pessoa, continuador do venancismo, derrotou as hostes do walfredismo, continuador do alvarismo. Consta da tradição paraibana que os mais inflamados e brilhantes artigos do walfredismo eram de autoria de José Américo, embora fossem de responsabilidade da redação.
Vitorioso Epitácio, passou José Américo longo tempo de inatividade,  permanecendo no seu cargo de procurador-geral do estado, então vitalício.
Em começos da década de 1920, a mão habilidosa de Solon de Lucena, então na presidência do estado, foi abrandando a resistência do vigoroso oposicionista, embora não lhe conseguisse propriamente o apoio político. Cercou José Américo pelo lado para esse mais sensível, que era a atividade intelectual. Incumbiu-o de escrever, juntamente com o consagrado jornalista Celso Mariz, um relatório sobre as obras realizadas por Epitácio Pessoa no nordeste brasileiro, especialmente na Paraíba, para combater os efeitos das secas periódicas. Celso muito cedo abandonou a tarefa, para que também era dotado, por entender que a unidade da obra exigia que ela fosse elaborada por uma só pessoa. E José Américo mergulhou fundo na matéria. Diremos a seu tempo o que representa o livro escrito nessa época – A Paraíba e seus problemas, publicado em 1923 pelas oficinas de A União.
Tempos depois Walfredo Leal viria a reconciliar-se com Epitácio Pessoa, e a oposição paraibana se reduzia aos partidários do desembargador Heráclito Cavalcanti, com uma fugaz efervescência na campanha política da Reação Republicana, de Nilo e Seabra, em 1922. Em A Paraíba e seus problemas, José Américo prestou a Epitácio a justiça de um depoimento entusiástico, pelo que tentara realizar pelo Nordeste, sem que isso implicasse uma reentrada na atividade política. Tudo com altivez e dignidade.
E assim correram os dias.
Só em 1928, indo João Pessoa para a presidência do estado, convocou o nosso eminente homenageado para secretário-geral de estado. Era a única secretaria existente, pois os demais postos auxiliares do governo eram diretorias. O convite a José Américo, embora causasse certa estranheza nos meios políticos do estado, explicava-se, sem demérito para os seus demais atributos pessoais, pela imensa repercussão que tivera, naquele mesmo ano de 1928, a publicação do romance A bagaceira, logo proclamada pela crítica literária nacional, à frente Tristão de Athayde, como uma obra-prima, das mais importantes da ficção brasileira. A João Pessoa, vindo do Rio de Janeiro, onde fora mais retumbante o êxito do livro, não podia ser indiferente o episódio, tanto mais quando conhecia José Américo e admirava de longa data seus méritos intelectuais e morais.
João Pessoa fora indicado para a presidência do estado por Epitácio Pessoa, seu tio e então árbitro supremo dos destinos políticos da Paraíba.
Viera, segundo a inspiração de Epitácio, para evitar cisões no chamado Partido Republicano, em face de outras candidaturas, especialmente uma, que contava com a simpatia do então presidente João Suassuna.
Era a do Dr. Júlio Nascimento Lira.
Assumindo a presidência, João Pessoa começou uma obra administrativa vigorosa, procurando sanear as finanças do estado, comprometidas principalmente pela sangria feita pelo comércio do Recife, onde se encontravam as grandes casas comerciais que abasteciam a Paraíba, da capital ao sertão, praticamente sem pagar impostos. O novo presidente começou a fazer aquilo a que os pernambucanos chamaram “guerra  tributária”.
Os Pessoa de Queiroz, sobrinhos de Epitácio e primos de João Pessoa, foram os que mais se salientaram na resistência contra a ação do novo governo paraibano. E aí estaria “nessa guerra tributária” uma das causas da agitação que, em 1930, viria conflagrar a Paraíba e culminaria com a revolta de Princesa, hoje Princesa Isabel, conhecidas que eram as profundas ligações de José Pereira, o caudilho de Princesa, com os irmãos Pessoa de Queiroz. Este é um capítulo da história da Paraíba bastante conhecido, mas que deve ser tocado pelo menos de passagem.
Ao lado dessa ação saneadora das finanças e defensora dos interesses tributários do estado, João Pessoa iniciou também uma obra a que chamou a “moralização de nossos costumes políticos”, desprestigiando chefes tradicionais, responsáveis pelas grandes vitórias de seu tio Epitácio e sustentáculos do Partido Republicano da Paraíba do Norte – que este era o seu nome.
Vivendo maior parte de sua vida fora da Paraíba, principalmente no Rio de Janeiro, onde ocupava o cargo de ministro do então Supremo Tribunal Militar, o novo presidente não tinha conhecimento do que era a vida pública e administrativa do estado, como de resto de outras unidades federativas. Não se pode negar que suas inspirações eram elevadas, mas a terapêutica para os males era tentada através de dosagens excessivas e até de remédios impróprios.
Quase acabou o partido de Epitácio. Mal sabia que, exceção feita a alguns pleitos memoráveis, como o de 1915 e o de 1922, as eleições de modo geral eram feitas a “bico de pena”, quer dizer, com as atas lavradas como se as eleições se realizassem. Não era propriamente uma fraude, uma vez que a própria oposição concordava, dava o seu reduzido número de deputados à Assembleia Legislativa e, quando o governo aquiescia, o chamado “quinto” da representação federal. A própria eleição de João Pessoa fora feita a “bico de pena”, na quase totalidade dos municípios.
De qualquer modo, a ação do presidente, que já prestara, no Rio de Janeiro, valiosos serviços ao seu estado, ajudando, com seu prestígio junto a Epitácio e aos órgãos federais, diversos pleitos paraibanos, foi corajosa e fecunda. À parte os excessos, as injustiças inevitáveis, o certo é que a Paraíba sentiu, e a opinião pública passou a ver que havia, naquele estado, um sopro renovador.
Pois José Américo foi o secretário desse homem, seu maior assessor jurídico e administrativo. Em alguns momentos, pelo que conheço, foi também um freio moderador de muitos dos ímpetos de João Pessoa.
Sim, porque José Américo, também impetuoso, quase violento, quando se sentia ferido na sua sensibilidade, era homem de boa cabeça política, de visão e descortino. Isto, porém, no aceso dos desgostos e traumatismos sofridos pelos velhos epitacistas, não era reconhecido pelas vítimas dos atos do presidente. E muitos deles queixavam-se de que tudo era obra de José Américo, de suas prevenções contra os antigos adversários.
Até onde conheço os fatos, a queixa não era procedente, pois eu mesmo, ainda adolescente, fui testemunha do empenho com que ele defendeu meu pai, um dos chamados “generais do epitacismo” em dois episódios importantes para a vida do município de Patos. Depois, Miguel Sátyro e José Américo viriam a separar-se, mas por injunções de outra natureza.
O ano de 1930 foi um verdadeiro incêndio na Paraíba. Campanha eleitoral agitada, a campanha da Aliança Liberal, cujo candidato à Presidência da República era Getúlio Vargas, completando João Pessoa a chapa, como candidato a vice-presidente; rebelião de Princesa deflagrada no dia da eleição, na cidade de Teixeira; assassínio do presidente e, por fim, a Revolução. Tudo isso trouxe, durante quase um ano, o nosso estado debaixo de chamas. Primeiro a chama política, depois, a chama das armas e, finalmente os incêndios das residências, fazendas e estabelecimentos comerciais. O espaço é pouco para relatar tudo, que já está na história.
Esta foi a grande hora de José Américo. Primeiro, como grande orador da praça pública, como candidato a deputado federal, eleito e depurado por ordem de Washington Luiz, como secretário de segurança, que seguiu para o alto sertão, para comandar a resistência aos rebeldes de José Pereira e, depois, morto João Pessoa, como o grande conspirador civil, secretário que continuou, no governo do vice-presidente Álvaro de Carvalho.
Como se sabe, Juarez Távora comandou a revolução na Paraíba, conspirando, escondido, ora numa, ora em outra casa. Ali estavam também Jurandir Mamede, Juraci Magalhães, Agildo Barata e outros, na faixa militar; José Américo, com outros aliados, comandava a faixa civil. Vitoriosa a Revolução, a 4 de outubro, no Nordeste, José Américo foi levado, primeiro, ao governo do estado e, logo depois, ao governo revolucionário da região. Isso duraria pouco, porque, logo a 24 de outubro, triunfaria o movimento no país, com a queda de Washington Luiz, a constituição de uma Junta Provisória e, logo depois, a entrega do governo a Getúlio.
Assumindo o governo, Vargas passou a constituir seu ministério.
José Américo foi convidado para a pasta da Viação. A princípio se pensou que a indicação partira de Juarez Távora. Foi depois esclarecido que o próprio Getúlio tivera a inspiração. José Américo, já conhecido e consagrado nacionalmente como escritor, passava a ser conhecido e admirado como político. Logo depois se viria o pulso do administrador.
No Ministério da Viação e Obras Públicas ficaria a marca de sua capacidade administrativa. Para citar somente alguns de seus empreendimentos, lembraremos, no plano material, a eletrificação da Central do Brasil, a unificação dos Correios e Telégrafos, a melhoria e aparelhamento de vários portos, a construção de ferrovias e rodovias e, no plano moral, o combate feroz à improbidade administrativa.
Onde, no entanto, mais se elevou sua obra foi no plano e execução das chamadas “obras do Nordeste”. Não foi apenas a assistência às regiões atingidas pela calamidade, em 1932, através dos serviços de emergência, mas na construção de obras duradouras, em toda a região, como açudes, estradas, pontes, portos, irrigação – esta em menor escala. Mas dizer isto ainda não é dizer tudo. Para prestar essa assistência era necessário dinheiro, muito dinheiro, e o Ministério da Fazenda, como de hábito, procurava retrair-se. “Não havia verba, o orçamento estava esgotado”, e outras coisas semelhantes.
José Américo soltava, então, seus brados desesperados, gritava, rugia, comovia a opinião pública, comovia Getúlio – comovia ou atemorizava – e o dinheiro aparecia. Era como se repetisse as palavras famosas de A bagaceira: “Há uma desgraça maior do que morrer de fome no deserto – é não ter o que comer na terra de Canaã”.
Nem tudo foi honesto e regular nessas obras de assistência. Sempre houve e haverá os aproveitadores da desgraça alheia, os fraudulentos, os desonestos, os ladrões. Mas o ministro sempre que sabia reclamava, bradava, demitia, mandava processar. Por mais de uma vez veio ao teatro da tragédia. De uma das vezes ia morrendo, na Bahia, em desastre de avião, de que escapou milagrosamente. Nesse acidente morreria o dinâmico interventor federal na Paraíba, Antenor Navarro.
O nome de José Américo cresceu tanto, quer pela sua ação administrativa, no país, de modo geral, e no Nordeste, em particular, que, ao se tornar inevitável, por força da Constituição de 1934, a eleição de um novo presidente da República, sua candidatura se tornou como que natural. Foi indicado, pois, pelas forças majoritárias, sob a orientação de Getúlio Vargas. Levou a sério a indicação e passou a fazer uma campanha entusiástica, com seu verbo flamejante. Momentos houve em que mais parecia um candidato de oposição que um candidato do governo.
Enquanto isso, Getúlio maquinava na sombra. Não queria deixar o poder, que este era a sua única paixão na vida. Aproveitou-se das circunstâncias, que sempre foram suas grandes aliadas, especialmente da expansão nazifascista no mundo, do perigo comunista e, depois de bem articulada trama, para a qual se serviu do chamado “Plano Cohen”, deu o golpe de 1937, com o qual fechou o Congresso, acabou  com as eleições, decretou a Constituição depois batizada de “polaca” e, finalmente, permaneceu no governo, com todos os poderes ditatoriais, tão do seu agrado.
Uma vez José Américo me disse que, quando proferia aqueles discursos inflamados, praticamente de oposição e desafio, era porque já conhecia toda a conspiração palaciana. Um dia chegou a bradar que “votaremos até debaixo de bala”. Chegou a convidar Armando de Sales Oliveira, seu eminente competidor, para uma candidatura única, de Armando, ou qualquer outro em condições de vitória, para evitar o golpe que restauraria, como restaurou, a ditadura de Vargas. Tudo foi em vão. Os militares, habilmente conduzidos por Góes Monteiro e convencidos de que um perigo iminente de comunização ameaçava o Brasil, concordaram com o golpe. Os governadores, por sua vez, informados da atuação pelo emissário governamental Negrão de Lima, também aderiram ao movimento. Alguns deles, embora apoiando formalmente a candidatura José Américo, não a queriam, por contrariar seus interesses políticos locais. Juracy Magalhães e Carlos de Lima Cavalcante divergiram do golpe e foram afastados do governo.
Veio, pois, o irremediável. Getúlio era novamente ditador.
Isso duraria até 1945. José Américo, como era natural, ficou no seu canto, desempenhando a sua missão, no Tribunal de Contas, para o qual fora nomeado antes, não como um favor de Vargas, mas como o mínimo que se lhe poderia oferecer, depois do extraordinário trabalho que desempenhara no Ministério da Viação. Tinha renunciado o Senado Federal, onde não se sentia bem, talvez por ser mais um homem da execução que da atividade legiferante e parlamentar.
Este é um aspecto que não pode deixar de ser ressaltado, em qualquer interpretação da personalidade de José Américo. Ele não tinha a vocação parlamentar. Era orador brilhante, imaginoso, seguro, quer em discursos puramente orais, ou em discursos escritos. Mas, ao primeiro aparte que lhe contrariasse a opinião, agitava-se, irritava-se, às vezes se encolerizava. São exemplo disso as suas discussões com Góes Monteiro e outros. Não tinha a paciência, o jeito, a vocação do debate. Era essa, certamente, uma das falhas de sua organização política e intelectual.
De 1937 a 1945, pois, ditadura, ditadura, ditadura.
Já em 1933, para que Vargas convocasse a Assembleia Constituinte, de que resultou a Constituição de 34, foi necessário que São Paulo se cobrisse de sangue, em 1932.
Agora, em 1945, outro fator poderoso contribuía para abreviar os dias da nova ditadura. É que terminara a Segunda Grande Guerra, e a Força Expedicionária Brasileira, que lutara contra o nazifascismo, vinha com disposição de não mais permitir que aqui permanecesse um regime que, afinal, naquele se inspirava e nele tomara alento para a sua empreitada.
O general Dutra, que visitara a FEB, ainda na Europa, prestou esta informação a Getúlio, mas este, como sempre, fazia-se de desentendido.
Houvera, durante o regime do Estado Novo, algumas tentativas de resistência, das quais a mais importante foi o chamado Manifesto Mineiro. Também no Recife, por ocasião de formaturas de bacharéis, houve discursos de forte conotação democrática. Mas tudo era afinal abafado pelos extintores do Estado Novo, cuja principal finalidade era manter Vargas no poder e alimentar o culto de sua personalidade. Digo tudo isto com isenção, porque também paguei o meu tributo de apoio àquele regime, quer por princípio, dada a minha conhecida e inarredável posição anticomunista, quer por motivos políticos de natureza local.
Havia, pois, uma fermentação, um fim de festa, que prenunciava o advento da restauração democrática. Mas, onde estava a voz, ao mesmo tempo autorizada e corajosa, que deflagraria a investida?
Conheço alguns detalhes do episódio porque me foram contados, tanto por José Américo como por Carlos Lacerda, o repórter incumbido da grande façanha. Lacerda, então a serviço do Correio da Manhã, conseguiu algumas entrevistas com personalidades importantes do mundo político. Entregou-as ao jornal. A de José Américo foi logo considerada a melhor, quer pelo brilho da palavra, quer pela coragem das afirmações e propriedade dos termos em que colocou o problema da restauração democrática. A entrevista – não há outra palavra para defini-la, porque com esta é que passou à história – foi uma bomba. Abalou os alicerces da ditadura. Vargas apressou-se em anunciar eleições, mandar preparar a legislação e tomar as outras providências indicadas para o momento.
O resto é o que se sabe. Getúlio, depois de ter lançado a candidatura do general Eurico Dutra à presidência, depois de anistiar todos os criminosos políticos, inclusive integralistas e comunistas (a estes é que queria beneficiar de preferência), ainda tentou manobrar, insinuando uma constituinte com Vargas. Era tarde, porém. As forças oposicionistas, por sua vez, já tinham lançado outra candidatura militar, precisamente um homem cheio de serviços à pátria, herói da Revolta de 1922, criador do Correio Aéreo Nacional, portador de todos os títulos cívicos e morais para a investidura. Já se vê que falo do brigadeiro Eduardo Gomes. Falhou a manobra de Getúlio. Ao sinal mais evidente de que queria mudar as regras do jogo, evitando as eleições e conservando-se no poder, depuseram-no. Homem engenhoso, de grande imaginação política e calma execução de seus planos, o feiticeiro falhou. Não lhe ocorrera que, dessa vez, não estavam no palco civis, eminentes, dignos, porém desarmados. Estavam em cena dois outros cidadãos, igualmente eminentes e dignos, mas com a vantagem de estarem armados.
Eram antagonistas na disputa do voto, porém aliados na ideia da restauração democrática.
Ninguém escreve, portanto, a história da reconstitucionalização do Brasil, em 1946, sem mencionar a entrevista de José Américo, que foi a sua alvorada, em 1945. E não ficou somente na entrevista. Empenhou-se na campanha do brigadeiro, com toda a sua energia, o seu civismo e a força do seu verbo. Tive a ventura de conviver e privar com ele, nessa campanha inesquecível, ao lado de meu chefe de então, Argemiro de Figueiredo, e companheiros como Oswaldo Trigueiro, João Agripino, Fernando Nóbrega e outros.
Dutra foi eleito. Conseguimos vencer na Paraíba, comandados por José Américo e Argemiro. Em 1946, elegemos Oswaldo Trigueiro governador do estado. Estas coisas são ditas por se tratar da terra de José Américo, do principal palco de sua atuação. Sem isso, não teriam importância.
Em 1946, elegemos José Américo para o Senado. O PSD não teve condições de competir.
Em 1950 deu-se a grande cisão na UDN paraibana, vitoriosa em duas eleições. Argemiro julgava-se o candidato natural ao governo do estado, que já exercera com zelo e alta capacidade. José Américo aceitava outras soluções, mas recusava o nome de Argemiro. Era difícil bater a este, dentro do partido. Outro caminho não restava a José Américo senão aceitar o apoio do PSD ao seu nome, como candidato para enfrentar Argemiro. Aceitou. Sempre dissera, em anos anteriores, que sua maior aspiração política era governar o seu estado. Mas crescera tanto, em termos nacionais, que suas aspirações, como era natural, passaram a  ser outras. O político, no entanto, não é dono de sua hora. O momento, muitas vezes, as circunstâncias, a conveniência, o dever é que são donos de sua decisão. Foi o que lhe aconteceu.
Nós, os argemiristas, sustentamos a candidatura de nosso chefe. A campanha foi das mais árduas e apaixonadas que já houve na Paraíba.
Fomos batidos esmagadoramente. José Américo, com o apoio do PSD, PL e outras forças partidárias, estava eleito governador do estado.
Lutamos ao lado do PR, PTB e outros, mas nada nos salvou.
Eis, pois, o grande paraibano à frente do governo de seu estado, que fora noutros tempos sua maior ambição, mas que agora lhe parecia mais uma obrigação que uma satisfação. Mesmo assim, passou a dar cumprimento aos seus deveres políticos e administrativos. Foi governar com os seus amigos e companheiros de lutas. Nós estávamos debaixo, naquela posição a que se chama comumente de ostracismo. Não demorou muito, porém, no governo do estado. Chamado mais uma vez por Getúlio, que não era homem de alimentar inimizades, quando lhe convinha esquecê-las, José Américo voltou a ocupar o Ministério da Viação.
Desta vez, como da outra, cuidou dos problemas gerais a seu cargo, mas a sua tônica foi o Nordeste, atingido por nova calamidade. Lá voltaram os trabalhos de emergência, ao lado do prosseguimento de obras duradouras – as eternas estradas, açudes, pontes e outras. Por toda a parte se encontram os sinais dessa obra indestrutível.
Morto Getúlio, José Américo volta à Paraíba para terminar seu mandato de governador. É evidente que a uma ação administrativa dessa natureza, quebrada e depois restaurada, teria de faltar unidade apesar do zelo e lealdade com que o seu substituto eventual procurou conduzir a coisa pública. Mesmo assim José Américo ainda realizou uma administração proveitosa, como tudo quanto fez na vida.
Não entrarei nos detalhes dessa atuação administrativa. Direi apenas que foi boa, sem poder ser excepcional.
O que houve, no entanto, de notável, daí por diante, até o fim de seu governo, foi a sua preocupação com a pacificação política do estado.
Tendo sido um dos chefes da UDN, em 1945, e sendo eleito com o apoio do PSD, para ele nada mais agradável e justo do que entregar o governo a um homem que representasse um traço de união entre as duas principais forças políticas do estado e, consequentemente, aos demais aliados  de cada um desses partidos.
Depois de muitas conversas, de que participaram os principais líderes dos dois lados, chegou-se ao entendimento de uma chapa comum, com Flávio Ribeiro, da UDN, para governador, e Pedro Gondim, do PSD, para vice-governador.
Estava pacificada a Paraíba, e José Américo deixava o governo debaixo de uma consagração pública que foi talvez uma das maiores alegrias e compensações de sua vida de lutador.
Eleito e empossado Flávio Ribeiro, retraiu-se o grande paraibano, esquivando-se de qualquer interferência no governo do sucessor e até mesmo de fazer qualquer pedido, pessoal ou político.
O que aconteceu depois, na política da Paraíba, não cabe ser mencionado por não se relacionar com a vida e atuação de José Américo de Almeida.
Só mais tarde, solicitado insistentemente por João Agripino, por mim e outros próceres udenistas, José Américo, nosso antigo companheiro de lutas em 1945, de quem nos havíamos afastado em 1950, mas com quem nos reconciliáramos, consentiu em ser candidato da UDN ao Senado. Afastara-se Flávio Ribeiro, gravemente enfermo, e assumira o governo o vice-governador Pedro Gondim, que passara a implantar uma política firmemente pessedista. O sonho de pacificação de José Américo, embora concretizado na eleição de Flávio Ribeiro para o governo do estado, pouco duraria.
No ano de 1958 rebentou outra terrível seca no Nordeste. Tivemos, pois, uma campanha árdua, em condições desfavoráveis. Gondim no governo do estado, de bandeira despregada em favor do candidato de seu partido, o prestígio pessoal e político desse candidato, senador Rui Carneiro, que pleiteava a renovação do mandato, e o emprego da máquina da Emergência em favor do candidato oficial – tanto do presidente da República quanto do governador do estado – tudo isso constituía uma onda contra a qual não pudemos resistir. José Américo sofreu a sua primeira e última derrota. Recebeu-a estoicamente, sem recriminações, mas certamente surpreso, porque não imaginava que mesmo aquela máquina poderosa, montada em favor do candidato adversário, fosse capaz de derrotá-lo no seu estado.
Estava encerrada, por assim dizer, a sua atividade política. Recolheu- se à casa de Tambaú, uma das praias mais belas do mundo, que teve oportunidade de decantar em páginas literárias de expressivo vigor e força poética.
Vinha de vez em quando ao Rio de Janeiro, em visita à família.
Chegou a ser convidado pelo presidente Jânio Quadros para uma missão diplomática. Jânio o trouxe da Paraíba no seu próprio avião. Veio, viu, escutou e recusou a prebenda. É que forte continuava a sua sensibilidade política, a sua antena sensibilíssima.
Afastado, pois, da militância política, nunca se desinteressou da sorte e dos problemas da Paraíba. Passou a ser uma espécie de oráculo, a quem quase todo o mundo ouvia. Teve influência na escolha de todos os governadores indiretos da Paraíba. Influência discreta, manejando silenciosamente seus instrumentos, mas teve. Dizia que não, mas teve, senão para sugerir ou indicar nomes, pelo menos para afastá-los ou recomendá-los, quando consultado. E era consultado sempre. Dava informações que dizia impessoais, sem indulgência nem prevenção, mas dava. E sempre com a preocupação da melhor escolha, do que lhe parecia mais conveniente aos interesses da Paraíba. Em alguns casos recomendava, consultado, mais de um nome. Dizia quais as opções cabíveis.
Ingrato seria entrar em pormenores ou citar nomes. Fique apenas a referência ao fato da consulta, que sempre lhe foi feita.
Solitário de Tambaú! Assim o cognominaram no fim de vida. É uma força de expressão. Solitário, só se fosse porque não era mais viva a companheira de tantos anos, mãe de seus filhos e freio de seus impulsos mais agressivos.
Solitário, não. Nunca vi uma casa mais concorrida, durante os quatro anos em que exerci o governo da Paraíba. De toda a parte do estado e do país vinha gente para ouvi-lo, entrevistá-lo ou simplesmente conhecê-lo. Nada de solidão. Só se for a solidão do intelectual e do artista nas suas horas de leitura, de criação, de meditação. Nas suas horas sagradas, que não devem ser roubadas, nem sequer perturbadas. Ora, solidão!
Fique, no entanto a expressão – Solitário de Tambaú – que pegou bem, e ninguém mais retira. Solitário de Tambaú!
E com esta expressão encerramos o capítulo – José Américo, o político.

José Américo – o escritor

Eis-nos, talvez, diante da maior de suas dimensões.
Uma vez me disse: “Tudo quanto sou, devo à literatura”.
Não é que não tivesse sido um grande político. Certamente o foi pela força da palavra e do exemplo, pela capacidade administrativa, pela honradez e pelo combate à improbidade. O que queria dizer é que, com a sua sensibilidade literária, com a sua capacidade de aprender nos livros não apenas o que é dos livros mas também o que é da vida, a literatura foi o grande canal por onde penetrou em todos os outros segredos.
Foi um homem que, para a política, para a vida, para tudo, valeu-se, não por prévia determinação, mas por uma exigência do seu próprio temperamento, de tudo quanto viu e sentiu na literatura. Era um homem telúrico, autêntico, uma força da natureza, mas impregnado até a raiz dos olhos de literatura. Que estranha e curiosa simbiose!
Apesar disso, na literatura também começou com passos incertos.
Suas tentativas poéticas, no Almanaque do Estado da Paraíba, dirigido por João Tavares de Lyra ou Tito Silva, não são das mais convincentes.
Chegava a envergonhar-se, quando se lhe ousava falar nisso. Mas era uma bobagem. Qual o escritor que não veio a repudiar certas produções, principalmente da mocidade? No seu caso, a poesia, principalmente o soneto, não era a forma de expressão condizente com a sua natureza, não era o seu instrumento. Na prosa é que estava a sua força, na escrita ou na oralidade. Na prosa, sim, é que se exprimia com todo o vigor de sua natureza. Ali estava também a poesia, que se não encontrava nos seus versos.
Escrevia artigos, como vimos, nas campanhas políticas. Escrevia artigos literários em A União, órgão oficial do governo da Paraíba, e na revista Era Nova, que, no governo Solon de Lucena, em começos da década de 1920, sob a proteção de Solon de Lucena, se constituiu um magazine de alta categoria, com páginas dedicadas à política, ao mundo social e à literatura. Era Nova chegou a tirar, durante algum tempo, uma separata, sob o título “Novela”, na qual alguns escritores paraibanos exprimiram os seus pendores de ficcionistas. Muitas dessas novelas perderam-se na poeira dos tempos, mas algumas, duas pelo menos, deixaram a marca de sua passagem. Uma delas foi Branca Dias, de Carlos Dias Fernandes, considerado então o príncipe dos intelectuais paraibanos, de presença tempestuosa e absorvente, poeta, conferencista e prosador, cuja obra não corresponde à fama que alcançou em sua vida. Já enfrentei o problema Carlos Dias Fernandes, em meu discurso de posse na Academia Paraibana de Letras. Sobre ele há um capítulo famoso de Gilberto Amado, num dos livros de suas memórias. Também há páginas interessantes de José Lins do Rego, Celso Mariz, Gilberto Freire e outros.
A outra novela foi Reflexões de uma cabra, espécie de história apológica, no seu começo, mas que logo se transformaria em romance autobiográfico, ou em memórias, embora sem a rigorosa característica de roman à clef. Foi publicada em 1922.
Existe aí, em Reflexões de uma cabra, uma tentativa de autoanálise que não se repetiria em A bagaceira. Durante muito tempo, talvez em virtude do êxito retumbante desta última, José Américo como que se envergonhava de “Reflexões”, no que não tinha razão, porque o livro, se não tem a força do outro, reeditado e lido muitos anos depois, podia ser assinado por qualquer escritor importante do Brasil. Ali se encontra, de certo modo, a semente de A bagaceira, não no sentido de arquitetura e visão social da vida, mas como exercício da arte romanesca, da prática da ficção.
Dessa fase, porém, a fase pró-Bagaceira, é um livro da maior importância para a sociologia e antropologia brasileira, livro que, como já tive oportunidade de afirmar, inclusive neste plenário, só é pequeno no nome – A Paraíba e seus problemas. Pequeno no nome, porque pequena é a Paraíba, e um livro que trate apenas de problemas paraibanos perde, ao primeiro exame, o interesse do leitor, pela sua própria limitação.
Pois saibam todos que Paraíba e seus problemas não é apenas isto.
Não é apenas o relatório do que são, ou eram na época, as solicitações mais urgentes daquele estado. Não é simplesmente um mapa de nossas necessidades materiais. É mais, e muito mais.
Começa pelo plano da obra, que se divide em três partes. A primeira, denominada poeticamente “Terra Ignota”, cuida do solo, do clima, dos rios, dos montes, de tudo quanto se refere propriamente à situação físicogeográfica do estado. É um capítulo que, com as modificações de natureza local, em cada caso, pode aplicar-se a todo o nordeste brasileiro.
Depois vem o homem, o elemento humano que habitou e habita a terra paraibana; a começar pelos índios, as nações nativas que foram encontradas pelos portugueses, pelos franceses e holandeses que ali aportaram.
Os tabajaras e os potiguaras, no litoral; os cariris, na região que hoje tem o mesmo nome, à entrada do sertão; os coremas, no Piancó; os panatis, nas Espinharas (Patos) e Pombal; os coremas, em parte do Piancó; os pegas, os ariús, e assim por diante. É um capítulo de geografia humana ainda hoje válido, podendo considerar-se, apesar da limitação do título, uma obra clássica da sociogeografia brasileira.
A terceira parte abrange propriamente os problemas, tudo de quanto necessita a Paraíba (ou seja, o Nordeste) para que se tenham melhores condições de vida ou até mesmo de sobrevivência. Agora mesmo acaba de sair, na Paraíba, uma terceira edição do livro. A primeira, de 1923, é de A União, o já mencionado órgão oficial do governo da Paraíba. A segunda, de 1932, é de uma editora do Rio de Janeiro. A Paraíba e seus problemas é, no entendimento de grandes autoridades, um livro clássico da sociologia e da antropologia brasileira. Sem os aspectos novos trazidos por Gilberto Freire, sem as conotações científicas de Euclides da Cunha, não se envergonha de ser colocado ao lado dos dois. Tem uma bibliografia apreciável, embora não arrumada em um índice apropriado.
Já tive oportunidade de dizer que José Américo seguiu as pegadas de Sarmiento, no Facundo, e de Euclides da Cunha, em Os sertões, aquele fazendo o levantamento da terra, do homem e de um episódio, na Argentina, e este seguindo o mesmo processo em relação ao Nordeste, no Brasil. A diferença está em que José Américo, depois da descrição da terra e do homem, enfrenta os problemas, e não a história de um episódio.
Mas é um livro, o seu, da mesma categoria.
Só em 1928, no entanto, tomaria de assalto a literatura brasileira.
Publicou, ainda na Paraíba e nas oficinas de A União, um romance sem maiores pretensões, talvez uma simples história das secas, mais uma obra de ficção regional, ao lado de outras existentes no país. Trazia no título, em letra minúscula, a palavra “bagaceira”. Não tinha, talvez, a nítida consciência de sua força, da mensagem que iria incorporar-se definitivamente à literatura brasileira. José Lins do Rego, amigo fraternal de José Américo, me disse certa vez que nenhum artista tinha a completa consciência do que estava fazendo. E acrescentava: “Se tivesse, não faria”.
É uma indagação que ainda hoje parece não ter resposta.
É curioso relembrar o que, a propósito de A bagaceira, no seu aparecimento, escreveu Tristão de Athayde, então em plena atividade de crítico literário, na sua coluna de O Jornal, do Rio de Janeiro:
Temos um grande romancista novo. Não sei se velho ou novo na idade. Sei apenas que é autor de um livro sensacional.
Tomei desse volume com desconfiança. Livro feio, mal impresso, em papel ordinaríssimo, repelindo o contato com as mãos e com os olhos. A dedicatória, escrita numa letra trêmula, de velho ou de doente, numa letra de homem abalado, de nervos exaustos.
E entretanto...
Segue-se, então, tudo quanto um crítico, sensível e criterioso, pode dizer de um livro. Acrescenta: “Até muito antes a literatura brasileira estava vazia desse livro e de agora em diante não pode viver sem ele.”
Não era necessário dizer mais. A bagaceira estava consagrada. De toda a parte do Brasil choviam os artigos, os pedidos de remessa do livro.
Agripino Griecco, também no exercício da crítica literária de jornal, fizera um artigo diferente, não inteiramente desfavorável ao romance, mas cheio daquelas verrumadas do seu costume e da sua feição. A bagaceira não seria, segundo ele, um romance social, nos termos pretendidos pelo seu autor. José Américo não era rigorosamente um romancista, nem um estilista, mas, apenas, um paisagista, um colorista, que quase sempre retocava para estragar, e outras coisas semelhantes. Não negava, no entanto, merecimento ao seu livro, embora não lhe desse as dimensões  que outros lhe estavam dando (referia-se certamente a Tristão).
Era eu estudante do Liceu Paraibano, com meus 17 anos de idade, e acompanhei, cheio de entusiasmo, tudo quanto se publicava em A União, que transcrevia os artigos que saíam no Brasil inteiro. A Editora Castilho logo se apressou em contratar uma nova edição do romance, pois a outra, a primeira, era muito limitada. A bagaceira invadia o Brasil inteiro e assim prosseguia, em edições sucessivas. Para a terceira edição, a mesma editora solicitou um glossário, tal a quantidade de termos regionais empregada pelo romancista. José Américo concordara com a solicitação, e saiu o glossário, que desapareceu em edições posteriores.
Fora esse vocabulário que levara Griecco a indagar, venenosamente, em que língua era escrito o livro. Tristão já dissera que o livro era escrito em brasileiro, ora culto, ora bárbaro, mas sempre em brasileiro, e era o romance que Euclides da Cunha teria escrito, se fosse romancista.
Prefiro dizer que é escrito em português, que esta é a nossa língua.
O que existe é a diferença de linguagem, quando escreve o romancista e quando falam as personagens. Tudo sem transição brusca, artificial, como observou o próprio Tristão.
Apesar do muito que já se escreveu sobre A bagaceira, ousaria acrescentar algumas observações sobre pontos que sempre me prenderam a atenção.
Um deles seria a falta de substância psíquica das personagens.
Ninguém saberia o que elas pensam, o que são, no seu íntimo. O romancista, no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, procurou explicar-se dizendo que as suas criaturas são seres primitivos, pessoas de formação rudimentar, sem maiores complicações psicológicas e, portanto, impróprias para uma análise de seu mundo interior.
A mim não satisfaz a explicação. Todo ser humano tem suas profundezas e seus abismos. A verdade é que José Américo, como romancista, não era um introspectivo. A introversão não era o seu forte, embora disso haja sinais, como já salientamos em as Reflexões de uma cabra. Não é que suas criaturas não tenham vida e alma. Têm. Não são criaturas vazias, passíveis, por exemplo, daquela crítica que Machado de Assis fez a Eça de Queiroz, a propósito de Luíza, personagem de O primo Basílio.
Para mestre Machado, Luíza não teria existência moral. As criaturas, de A bagaceira têm vida e alma, têm existência moral, tomada, é claro, esta expressão no seu sentido psicológico. Mas elas existem pelas suas palavras, pelos seus gestos, pelos seus preconceitos, em suma, para repetir e deixar bem explícito, pela sua existência mesma. Não se analisam, é certo, não se indagam, não têm consciência de seus próprios mistérios interiores. José Américo não era um intimista, um perquiridor desses conflitos íntimos. Sua feição não era a de um Machado de Assis, de um Proust ou mesmo de um Sthendal. Ele estava mais na linha dos Balzac, ou mesmo dos Zola, dos Aluízio Azevedo, embora repudiasse o naturalismo como “uma bisbilhotice de trapeiros”. Suas personagens são apresentadas pelo seu exterior, seus atos e palavras, e não pelos pensamentos, sondados na sua profundeza. Isso não quer dizer que sejam artificiais ou irreais. Salvo Lúcio Marçau, o bacharel, única criatura culta do romance, as outras – Soledade, Valentim, Dagoberto – haverão de ser conhecidas pelo seu comportamento, e não através da verruma psicológica do romancista.
Outro aspecto notável do romance é a natureza, que o já tão citado Tristão de Athayde disse ser personagem na A bagaceira. E é personagem mesmo. Seja na paisagem da região brejeira, esta preponderantemente, seja nos longes da fisiografia sertaneja, em tudo e a propósito de tudo surge o paisagista, o colorista, o escritor descritivo, sem prejuízo da intensidade do drama, da violência da tragédia. Para escrever bem um romance da seca, o romancista tinha de percorrer os dois mundos, tais quais os conheceu na vida real: um deles, demoradamente, o brejo onde nasceu e se criou; e o outro, o sertão, como o viu com toda a sua curiosidade e sensibilidade de homem de vinte e poucos anos, carregado de leituras, míope dos olhos, mas não de inteligência e sensibilidade, antes portador de muitos talentos, inclusive o do observador e escritor.
E já basta sobre A bagaceira, em si mesma. Vale insistir apenas na sua própria surpresa diante da repercussão do livro que escrevera e publicara quase escondido, na sua província, com aquela letrinha que parecia de menino de escola primária, mas que acentuava todo o ímpeto de um criador ou recriador da natureza, de pessoas, de ambientes, de intenso romance amoroso, o que vale dizer, de beleza literária.
Como curiosidade, assinalaremos que o romance, escrito naquela letrinha, foi datilografado por sua esposa, D. Alice Melo Azevedo, e por seu filho Reinaldo, hoje ministro e presidente do Superior Tribunal Militar e presente a esta solenidade.
O êxito de A bagaceira não foi repetido pelos outros romances que publicou depois. Coiteiros e Boqueirão, ambos de 1935, não vieram carregados da mesma força. Que teria acontecido? Ter-se-ia esgotado, com A bagaceira, toda a mensagem romanesca de que era portador o grande escritor, o grande estilista? Seria o fato de ter ditado apressadamente os livros, como já confessou?
Não temos a resposta. São os mistérios da criação. Não é que os outros sejam romances inferiores, sem valor. São inferiores a A bagaceira, isto é fora de dúvida. Talvez a inevitável confrontação seja responsável por um julgamento menos favorável. A verdade é que o grande romance de José Américo é A bagaceira. Não só um grande romance seu, mas da literatura brasileira por todos considerado um marco. Romance regional, sem ser regionalista. Romance do Nordeste, sem deixar de ser um romance brasileiro e um romance universal, pela força de suas criaturas – a natureza, as pessoas, o drama e a tragédia da seca, o sentido social da obra.
Não há dúvida de que se, porventura, com A bagaceira, se esgotou o romancista, não se terá esgotado o orador, carregado de emoção e beleza literária, o memorialista de alta capacidade de reconstituição e análise, o pensador político, tantas vezes revelado em entrevistas, o conferencista, de páginas inapagáveis sobre vários brasileiros de âmbito nacional, como Epitácio Pessoa, ou da esfera estadual, como Walfredo Leal, o poeta, já agora dos poemas, e não apenas da prosa poética. O conversador incomparável, cheio de colorido e de surpresas, sempre com um pensamento vivo, um “a propósito”, uma indagação, uma resposta, uma reminiscência ou um prognóstico sobre os destinos da Paraíba, do Brasil ou do mundo.
Continuava, assim, até o fim da vida, um intelectual e um estadista.

José Américo, o homem

Chegamos, assim, à parte que abrange e sintetiza as outras, porque, afinal, o político, o administrador, o escritor, o sociólogo, o poeta – tudo isto está compreendido no homem.
Mesmo assim, não é incabível examinar José Américo de Almeida como pessoa, como gente, e não apenas como o vulto que se projetou na história, como político e escritor. É a pessoa de José Américo, na sua simplicidade e ao mesmo tempo na sua complexidade, na sua unidade e na sua multiplicação.
Conheci-o desde eu menino, embora com longas interrupções, e com períodos mesmo de afastamento, embora não de inimizade, em virtude das lutas políticas. Lembro-me de quando ele, em 1922 ou 1923, na cidade de Patos, hóspede de meu pai, juntamente com Celso Mariz, tomava apontamentos para A Paraíba e seus problemas. Eu teria meus onze ou doze anos e só mais tarde compreenderia o sentido daquelas notas e indagações. Há uma inscrição em bronze, à entrada do Fórum Miguel Sátyro, em que ele, traçando em rápidas e incisivas palavras o perfil do velho chefe sertanejo, faz referência a essa hospedagem. Depois vi-o várias outras vezes, na capital do estado, sempre em companhia de meu pai. Eles tinham sido companheiros de hotel, quando Miguel Sátyro era deputado estadual e ele procurador-geral do estado. Sua amizade vinha desse tempo.
Depois, eu o vi e ouvi muitas vezes, na tribuna, em discursos da praça pública ou em conferências, no Teatro Santa Rosa e em outros ambientes fechados. Hospedamo-lo outras vezes, em Patos, ora acompanhado do presidente João Pessoa, ora do general Juarez Távora. Durante quase todo o meu governo, na Paraíba, visitava-o quase todas as semanas, para ouvir suas opiniões, pedir seus conselhos e sugestões, embora agisse por conta própria e assumisse a responsabilidade de meus atos.
Tinha um plano de governo, cuidadosamente elaborado por um grupo de técnicos sob o meu comando e a minha inspiração. Um grupo para dizer e projetar aquilo que eu queria fazer. Mas não deixava de ouvir, no curso da administração e até mesmo dos acontecimentos políticos, o parecer de homens como José Américo e outros de minha confiança.
Conversávamos, então, longamente, sobre literatura, sobre pessoas, sobre acontecimentos passados, sobre tudo. Aí pude sentir mais de perto a pessoa humana que ele era. O homem que tinha o temperamento arrebatado, mas que o dominara, não apenas por força da idade, mas pela sua própria vontade e deliberação. Ainda há poucos dias, em conversa com o ministro Reinaldo, este me dizia: “Meu pai mudou muito. Ficou mais compreensivo e mais tolerante”. Acrescentou o general que sua mãe, D. Alice, era o poder moderador que continha os arrebatamentos do pai. Pai que fora severo, exigente dos deveres dos filhos, sem deixar de ser amoroso e indulgente diante de seus erros. Erros que são comuns a todos nós, especialmente na mocidade.
Uma vez, numa de nossas conversas, reproduziu a resposta que já tinha dado a alguém. Um jornalista lhe perguntara: “Por que o senhor não envelhece?” Respondeu: “Porque não quero.”
Era comedido na alimentação. Comia pouco e aquilo que não lhe fosse prejudicial ao organismo. Fazia exercício no pomar, cuidando das fruteiras e, no jardim, das plantas. Caminhava na praia. Dessas caminhadas deixou páginas de rara beleza literária, prosa carregada de poesia e emoção.
Tinha poucos haveres. A casa de residência, que será transformada em museu, conforme entendimento da Universidade Federal da Paraíba, criação sua e do governo do estado; uma outra pequena casa, num bairro da capital, e pequena importância em dinheiro, proveniente de sua aposentadoria como ministro do Tribunal de Contas da União e da sua pensão como ex-governador do estado. Essa importância foi Perfis  destinada por ele para a secretária e domésticas. Seu testamento na imprensa, após sua morte, constitui uma página que honra não apenas o seu nome, mas a própria vida pública brasileira. Não é que sendo político não pudesse ser rico. Podia, como pode qualquer político, desde que tenha recebido herança ou exercido atividade lucrativa honesta, que lhe justifique a fortuna.
Na fase em que exerceu a advocacia, pouco dinheiro ganhou. Não sabia cobrar honorários, não tinha jeito para o lado comercial da profissão.
Fez, em discurso memorável, a defesa de um pobre guarda civil, que, em serviço, matara um estudante à porta da Escola Normal. Era uma causa antipática, mas que lhe pareceu, se não justa, pelo menos humana. Chegou a bradar, numa de suas frases memoráveis, que aquele guarda era, de todos os presentes, o mais infeliz. Mais infeliz até do que a vítima, porque, estando vivo, carregaria por toda a vida a cruz de sua desgraça. O guarda foi condenado, mas não com a pena que os acusadores pediram.
Impaciente, arrogante e até agressivo com os grandes, quando se sentia ofendido, era doce e suave com os pobres. Dava esmolas e auxílio a muita gente – pouco, porque também tinha pouco. E o fazia quase às escondidas, para que, biblicamente, nem a mão esquerda soubesse o que doava a direita.
Tendo sido um grande fraseador, a ponto de me dizer certa vez que Napoleão Bonaparte foi maior pelos discursos que fez do que pelas guerras que venceu, já nos últimos tempos andava meio arrependido das frases. Dizia, numa espécie de justificação, que a frase não tinha importância. O que valia era o pensamento que ela encerrava.
Parece que nem mesmo ele acreditava no que dizia, porque, na primeira oportunidade, lá vinha com uma de suas frases, que eram, no mesmo tempo, forma e pensamento.
Tanto isso é verdade que morreu falando, dizendo que chegara a sua hora, que aquele era o seu fim. E, segurando a mão da secretária desvelada, o que ainda era uma forma de falar, expirou.
Perguntarão agora os que me ouvem ou os que porventura me lerem depois: foi um homem perfeito? A resposta está na grande e imemorial lição da humanidade. Não foi perfeito. Teve virtudes, muitas virtudes, mas também teve defeitos. Apenas acrescentarei que até o sol tem sombras.

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