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sábado, 7 de abril de 2012

DISCURSO SOBRE A HISTÓRIA DA LITERATURA DO BRASIL

MANIFESTO PUBLICADO NA REVISTA NICTHEROY EM 1836

Domingos José Gonçalves de Magalhães

I
A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime nas ideias, de mais filosófico no pensamento, de mais heroico na moral e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de suas paixões, o despertador de sua glória e o reflexo progressivo de sua inteligência.
E, quando esse povo, ou essa geração, desaparece da superfície da terra, com todas as suas instituições, crenças e costumes, escapa a literatura aos rigores do tempo para anunciar às gerações futuras qual fora o caráter e a importância do povo, do qual é ela o único representante na posteridade. Sua voz, como um eco imortal, repercute por toda parte, e diz: em tal época, debaixo de tal constelação e sobre tal ponto do globo existia um povo cuja glória só eu a conservo, cujos heróis só eu conheço. Vós, porém, se pretendeis também conhecê-lo, consultai-me, porque eu sou o espírito desse povo e uma sombra viva do que ele foi.
Cada povo tem sua história própria, como cada homem seu caráter particular, cada árvore seu fruto específico, mas esta verdade incontestável para os primitivos povos, algumas modificações, contudo, experimenta entre aqueles cuja civilização apenas é um reflexo da civilização de outro povo. Então, como nas árvores enxertadas, vêm-se pender dos galhos de um mesmo tronco frutos de diversas espécies.
E, posto que não degenerem muito, os do enxerto brotaram, contudo algumas qualidades adquirem, dependentes da natureza do tronco que lhes dá o nutrimento, as quais os distinguem dos outros frutos da mesma espécie. Em tal caso, marcham a par as duas literaturas e distinguir-se pode a indígena da estrangeira.
Em outras circunstâncias, como as águas de dois rios, que em um confluente se anexam, as duas literaturas de tal jeito se aliam que impossível é o separá-las. A Grécia, por exemplo, tinha uma literatura que lhe era própria, que lhe explica suas crenças, sua moral, seus costumes, uma literatura toda filha de suas ideias, uma literatura, enfim, toda grega.

Domingos José Gonçalves de Magalhães

A Europa de hoje, ou tomemos a França, ou a Inglaterra, ou a Itália, ou a Espanha, ou Portugal, apresenta o exemplo da segunda proposição. Além da literatura que lhe é própria, dessa literatura filha de sua civilização, originária do cristianismo, nós aí vemos outra literatura, que chamamos enxertada, e que não é mais do que uma lembrança da mitologia antiga e uma recordação de costumes que não são seus. E não só as duas literaturas marcham a par, como muitas vezes o mesmo poeta se vota à cultura de ambas e, como diz Tasso, falando do mágico Ismeno:

Anzi sovente in uso empio e profano
Confonde le due leggi a se mal nota.

Para prova da terceira proposição, no caso em que as literaturas de modo tal se mesclam que não é possível separá-las, vemos, na literatura romântica da Espanha, uma mistura de ideias cavalheirescas e arábicas, restos da antiga civilização dos Árabes; algumas vezes ela é cristã na sua matéria, é arábica quanto à forma.
Mas não são estas as únicas modificações que entre os diversos povos experimenta a literatura; outras há que, da natureza mesmo [sic] do homem, da civilização e do progresso, dependem. Porque seja qual for a modificação que sofra a literatura, há sempre algum acordo entre ela e as circunstâncias peculiares e temporárias do povo a que pertence e da inteligência que a produz. Assim, a literatura é variável como são os séculos; semelhante ao termômetro que sobe ou desce, segundo o estado da atmosfera.
Por uma espécie de contágio, uma ideia lavra às vezes entre os homens de uma mesma época, reúne-os todos em uma mesma crença, seus pensamentos se harmonizam e para um só fim tendem.
Cada época representa então uma ideia que marcha escoltada de outras que lhe são subalternas, como saturno, rodeado dos seus satélites. Essa ideia principal contém e explica as outras ideias, como as premissas do raciocínio contêm e explicam a conclusão. Essa ideia é o espírito, o pensamento mais íntimo de sua época; é a razão oculta dos fatos contemporâneos.
A literatura, abrangendo grande parte de todas as ciências e artes e, sendo elas filha e representante moral da civilização, é mister um concurso de extensos conhecimentos para se puder traçar a sua história geral ou particular e não perder-se de vista a ideia predominante do século, luminoso guia na indagação e coordenação dos fatos, sem o quê a história é de pouco valor e seu fim principal iludido.
Aplicando-se agora, especialmente ao Brasil, as primeiras questões que se nos apresentam são: qual é a origem da literatura brasileira? Qual o seu caráter, seus progressos e que fases tem tido? Quais os que a cultivaram e quais as circunstâncias que, em diversos tempos, favoreceram ou tolheram o seu florescimento? É, pois, mister remontar-nos ao estado do Brasil depois do seu descobrimento e daí, pedindo conta à história - e à tradição viva dos homens - de como se passaram as coisas, seguindo a marcha do desenvolvimento intelectual e, pesquisando o espírito que a presidia, poderemos apresentar, senão acabado, ao menos um verdadeiro quadro histórico da nossa literatura.
Mas, ante de encetar a matéria, uma consideração aqui nos demora e pede o caso que a explanemos. Lugar é este de expormos as dificuldades que na execução deste trabalho encontramos.
Aqueles que alguns lumes de conhecimento possuem, relativos à nossa literatura, sabem que mesquinhos e expassos [sic] (escassos) são os documentos que sobre ela se podem consultar. Nenhum nacional, que saibamos, ocupado se tem até hoje de tal objeto. Dos estrangeiros, Bouterwech, Sismonde de Sismondi e Mr. [sic] Ferdinand Dinis alguma coisa disseram. O primeiro, apenas conhecia Claudio Manuel da Costa, de quem alguns extratos apresenta; o segundo, inteiramente se pautua pelo primeiro e a menção que faz de alguns Brasileiros fora mesmo excluída do plano da sua obra sobre a Literatura do Meio dia da Europa, se nela não entrasse como um apêndice à história da literatura portuguesa. No resumo da história literária de Portugal e do Brasil, por Mr. [sic] Ferdinand Dinis, posto que separadas estejam elas, e porventura mais extenso desenvolvimento ofereça a segundo, contudo basta um lance d‘olhos para ver-se que ainda está longe de ser completa, servindo apenas para dar uma ideia a estrangeiros.
Eis tudo o que sobre a literatura do Brasil se tem escrito até hoje, se só por isso nos guiássemos, na impossibilidade em que ficaríamos de nada poder acrescentar; teríamos preferido traduzir esse pouco, o que de nada serviria para a história. Empenhados em dar alguma coisa mais meritória, começamos por estudar a nossa história e, desde aí, encontramos grandes embaraços para o nosso escopo. Necessário nos foi a leitura do imenso trabalho biográfico do Abade Barbosa, para podermos achar, por acaso aqui e ali, o nome de algum Brasileiro distinto no meio desse aluvião de nomes colecionados, às vezes com bem pouca crítica. Ainda assim, convinha ler suas obras; eis aí uma quase insuperável dificuldade.
Embalde por algumas delas, de que tínhamos notícia, investigamos todas as Bibliotecas de Paris, de Roma, de Florença, de Pádua e de outras principais cidades da Itália que visitamos. Foi-nos preciso contentar-nos com o que pudemos obter. Acresce mais que, dos nossos primeiros poetas, até ignoramos a época do seu nascimento que tanto apreço damos nós aos grandes homens que nos honram, desses homens cuja herança é hoje nossa única glória. Essa dificuldade já foi reconhecida pelo ilustre editor do Parnaso Brasileiro*, cujo trabalho, tão digno de louvor, muito serviu-nos. Enfim, depois de um longo e enfadonho estudo, vimo-nos quase reduzidos, sem outro guia mais que nosso próprio juízo, a ler e analisar os autores que pudemos obter, esperando que o tempo nos facilite os meios para o fim a que nos propomos.
Todos estes tralhos e obstáculos, mencionamos, não com o fito de realçar o mérito deste bosquejo, mas sim para merecer desculpa das muitas faltas e penúrias que se notem e, outrossim, para que, à vista de tal incúria e mendigues [sic], mais zelosos sejamos em pesquisar e conservar os monumentos de nossa glória para a geração de uma futura, a fim de que nos não exprobre o nosso desmazelo e de bárbaros não nos acuse, como, com razão, o poderíamos fazer em relação aos nossos maiores.
Nós pertencemos ao futuro, como o passado nos pertence. A glória de uma Nação que existe, ou que já existiu, não é senão o reflexo da glória de seus grandes homens. De toda a antiga grandeza da pátria dos Cíceros e dos Virgílios, apenas nos restam suas imortais obras e essas ruínas que tanto atraem os olhos do estrangeiro, e, no meio das quais, a moderna Roma se levanta e se enche de orgulho. Que cada qual se convença do que diz Madame e de Staël: “a glória dos grandes homens é o patrimônio de um país livre; depois que eles morrem, todos participam dela”.
O aparecimento de um grande homem é uma época para a história e, semelhante a uma joia precisa, que só possuímos quando podemos possuí-la, o grande homem jamais se apresenta, quando o não merecemos. Ele pode existir no meio de nós sem ser conhecido, sem se conhecer a si mesmo, como o ouro nas entranhas da terra, e só espera que o desencavem para adquirir o seu valor. A incapacidade que o desconhece, o anula. Empreguemos os meios necessários e temos grandes homens. Se é verdade que a recompensa anima o trabalho, a recompensa do gênio é a glória e, segundo um belo pensamento de Madame de Staël: “o gênio no meio da sociedade é uma dor, um febre interior de que se deve tratar como verdadeira moléstia, se a recompensa da glória lhe não adoça as penas”.

II

O Brasil, descoberto em 1500, jazeu três séculos esmagado debaixo da cadeira de ferro em que se recostava um Governador colonial com todo o peso de sua insuficiência e de seu orgulho. Mesquinhas intenções políticas, por não dizer outra coisa, ditavam leis absurdas e iníquas que entorpeciam o progresso da civilização e da indústria. Os melhores engenhos em flor morriam, faltos desse orvalho protetor que os desabrocha. Um ferrete ignominioso de desaprovação, gravado na fronte dos nascidos no Brasil, indignos os tornava dos altos e civis empregos. Para o Brasileiro, no seu país, obstruídas e fechadas estavam todas as portas e estradas que podiam conduzi-lo à ilustração. Uma só porta ante seus passos se abria: era a porta do convento, do retiro, do esquecimento! A religião lhe franqueava essa porta, a religião a fechava sobre seus passos; e o sino que o chamava ao claustro anunciava também sua morte para o mundo. O gênio em vida sepultado, cerca de místicas imagens, apenas saía para catequizar os índios no meio das florestas virgens, ou para pregar aos colonos, nos dias de repouso, as verdades do Evangelho. Mas em vão. As virtudes do cristianismo não se podiam domiciliar nos corações desses homens, encharcados de vícios e tirados, pela maior parte, dos cárceres de Lisboa para vir povoar o Novo Mundo. Deus nos preserve de lançar o opróbrio sobre ninguém. Era então um sistema o de fundar colônias com homens destinados ao patíbulo; era basear uma Nação nascente sobre todas as espécies de vícios e de crimes. Tais homens para seus próprios filhos olhavam como para uma raça degenerada e inepta para tudo. Quanto aos índios, esses infelizes perseguidos eram, a ferro e fogo, como se fossem animais ferozes. Nem eles em outra categoria eram considerados pelos seus arrebanhadores. Sabe-se que necessário foi que uma bula do Papa Paulo III os declarasse verdadeiros homens e capazes, por isso, da fé de Cristo, sem o quê, talvez, os Europeus os houvessem de todo exterminado! Da barbaridade de tais homens, traça Simão de Vasconcelos um quadro bem triste, dizendo: “os Portugueses que ali estavam e começavam a povoar esses lugares, viviam a modo de gentios e os gentios, com o exemplo destes, iam fazendo menos conceito da lei de Cristo e, sobretudo, que vivam aqueles Portugueses de um trato vivíssimo, salteando os pobres Índios, ou nos caminhos, ou em suas terras, servindo-se deles e anexando-os contra todas as leis da razão”. E mais abaixo diz ainda: viviam (os Portugueses) do rapto dos Índios, e era tido o ofício de salteá-los por valentia e por ele eram os homens estimados.
Tal era o estado daqueles tempos! Que podemos nós ajuntar a essas citações? Tal era toda a indústria, arte e ciência dos primeiros habitantes portugueses das terras de Santa Cruz! Triste é, sem dúvida, a recordação dessa época, em que o Brasileiro, como lançado em terra estrangeira, duvidoso em seu próprio país, vagava, sem que dizer pudesse: “isto é meu, neste lugar nasci!”. Envergonhava-se de ser Brasileiro e, muitas vezes, com o nome de Português se acobertava para ao menos aparecer como um ente da espécie humana e poder alcançar um emprego no seu país. Destarte, circunscrito em tão curto estádio, estranho à nacionalidade e sem o incentivo da glória, ia este povo vegetando oculto e arredado da civilização.
Quem não dirá que Portugal, com esse sistema opressor, só curava de atenuar e enfraquecer esta imensa colônia, porque conhecia sua própria fraqueza e ignorava seus mesmos interesses? Quem não dirá que ele temia que a mais alto ponto o Brasil se erguesse e lhe ofuscasse a glória? Assim é que um bárbaro senhor algema seu escravo, receoso que ele lhe fuja e só lhe desprende os braços para seu serviço em rústicos trabalhos. A Economia política em combatido vitoriosamente o erro que desde muito grassava na política, que um povo não pode prosperar senão à custa de outro povo e com sacrifício de tudo que o rodeia. A política, essa que, à imitação dos Romanos e de todos os povos dos baixos tempos, Portugal exerceu sobre o Brasil.
O tempo sancionou as verdades que a história e a memória recente dos fatos nos recordam e o tempo, prosseguindo em sua marcha, irá mostrando qual é o destino que a Providência tem marcado a este Império da América. A Deus não praza que esse perigoso fermento que entre nós gira, esse germe da discórdia, resaibo (?) ainda de não apurada educação, e sobretudo a escravidão, tão contrária ao desenvolvimento da indústria e das artes e tão perniciosa à moral, não impeçam sua marcha e engrandecimento.
Parecerão, talvez, estas considerações fora do objeto a que nos propomos, mas intimamente a ele se ligam e o explicam. Ainda uma vez e por outras palavras diremos que o nosso propósito não é traçar cronologicamente as biografias dos autores brasileiros mas sim a história da literatura do Brasil, que toda a história, como todo drama, supõe uma cena, atores, paixões e um fato que, progressivamente, se desenvolve, que tem sua razão e um fim. Sem estas condições, não há história, nem drama.
Através das espessas trevas em que se achavam envolvidos os homens neste continente americano, viram-se alguns espíritos superiores brilhar de passagem, bem semelhantes e essas luzes errantes que o peregrino admira em solitária noite nos desertos do Brasil; sim, eles eram como pirilampos que, no meio das trevas, fosfoream. E poder-se-á, com razão, acusar o Brasil de não ter produzido inteligências de mais subido quilate? Mas que povo escravizado pôde cantar com harmonia, quando o retinido das cadeias e o ardor das feridas sua existência torturaram ? Que colono tão feliz, ainda com o peso sobre os ombros e, curvado sobre a terra, a voz ergueu no meio do universo e gravou seu nome nas páginas da memória ? Quem, não tendo a consciência da sua livre existência, só rodeado de cenas de miséria, pôde soltar um riso de alegria e exalar o pensamento de sua individualidade ? Não, as ciências, a poesia e as belas-artes, filhas da liberdade, não são partilhas do escravo, irmãos da glória, fogem do país amaldiçoado, onde a escravidão rasteja e só com a liberdade habitar podem.
Se refletirmos, veremos que não são poucos os escritores, para um país que era colônia portuguesa, para um país onde, ainda hoje, o trabalho do literato, longe de assegurar-lhe com a glória uma independência individual, e um título de mais reconhecimento público, parece, ao contrário, desmerecê-lo e desviá-lo da liga dos homens positivos que, desdenhosos, dizem: é um poeta sem distinguir se apenas é um trovista ou um homem de gênio, como se dissessem: eis aí um ocioso, um parasita, que não pertence a este mundo. Deixai-o com a sua mania.
Aí canta o poeta por mera inspiração celeste, por essa necessidade de cantar, para dar desafogo ao coração. Ao princípio, cantava para honrar a beleza, a virtude e seus amores. Cantava ainda para adormentar as amarguras da alma, mas logo que a ideia da pátria apareceu aos poetas, começaram eles a invocá-la para objeto dos seus cânticos. Sempre, porém, como o peregrino no meio dos bosques que vai cantando sem esperança de recompensa, o poeta brasileiro não é guiado por nenhum interesse e só o amor mesmo, da poesia e da pátria o inspira. Ele pode dizer com o épico português:

Vereis amor da pátria, não movido
De prêmio vil.

Se em total esquecimento muitos deles existem, provém isto, em parte, da língua em que escrevem, que tão pouco conhecida é a língua portuguesa na Europa, principalmente em França, Inglaterra e Alemanha, onde mais alto soa o brado da fama e colossal reputação se adquire. Em parte, sobre nós deve recair a censura, que tão pródigos somos em louvar a admirar os estranhos, quão mesquinhos e ingratos nos mostramos para com os nossos e, deste jeito, visos damos que nada possuímos. Não pretendemos que a esmo se louve tudo o que nos pertence, só porque é nosso; vaidade fora insuportável.
Mas por ventura vós que consumistes vossa mocidade no estudo dos clássicos latinos e gregos, vós que ledes Racine, Voltaire, Camões ou Felinto Elísio e não cessais de admirá-los, muitas vezes mais por imitação que por própria crítica, dizei-me: apreciastes vós as belezas naturais de um Santa Rita Durão, de um Basílio da Gama e de um Caldas ? Toca ao nosso século restaurar as ruínas e reparar as faltas dos passados séculos. Cada Nação livre reconhece hoje mais que nunca a necessidade de marchar. Marchar para uma Nação é engrandecer-se moralmente, é desenvolver todos os elementos da civilização. É pois mister reunir todos os títulos de sua existência para tomar o posto que justamente lhe compete na grande liga social, como o nobre recolhe os pergaminhos da sua genealogia para na presença do soberano fazer-se credor de novas graças.
Se o futuro só pode sair do presente, a grandeza daquele se medirá pela deste. O povo que se olvida a si mesmo, que ignora o seu passado, como o seu presente, como tudo o que nele se passa, esse povo ficava sempre na imobilidade do império Indochinês.
Nada de exclusão, nada de desprezo. Tudo o que poder concorrer para o esclarecimento da história geral dos progressos da humanidade merecer deve a nossa consideração. Jamais uma Nação poderá prever o seu futuro, se não conhece o que ela é comparativamente com que ela foi. Estudar o passado é ver melhor o presente, é saber como se deve marchar para um futuro mais brilhante. Nada de exclusão; a exclusão é dos espíritos apoucados, que em pequena órbita giram, sempre satélites, e só brilhantes de luz emprestada. O amante da verdade porém, por caminhos não trilhados, em tudo encontra interesse e objeto de profunda meditação; como o viajor naturalista que se extasia na consideração de uma florzinha desconhecida, que o homem bronco tantas vezes vira com desprezo. O que era ignorado, ou esquecido, romperá destarte o envoltório de trevas, e achará devido lugar entre as coisas já conhecidas e estimadas.
Depois de tantos sistemas exclusivos, o espírito eclético anima o nosso século; ele se levanta como um imenso colosso vivo, tendo diante dos olhos os anais de todos os povos, em uma mão o archote da filosofia aceso pelo gênio da investigação, com a outra aponta a esteira luminosa onde se convergem todos os raios de luz, escapados do brandão que sustenta. - Luz e progresso; eis sua divisa. Não, oh Brasil, no meio do geral movimento tu não deves ficar imóvel e apático, como o colono sem ambição, e sem esperanças. O gérmen da civilização, lançado em teu seio pela Europa, não tem dado ainda os frutos que devia dar; vícios radicais têm tolhido seu desenvolvimento. Tu afastaste de teu colo a mão estranha que te sufoca; respira livremente, cultiva com amor as ciências, as letras, as artes e a indústria, e combate tudo o que entrevá-las pode.

III

Não se pode lisonjear muito o Brasil de dever a Portugal sua primeira educação, tão mesquinha foi ela que bem parece ter sido dada por mãos avaras e pobres; contudo boa ou má dele herdou, e o confessamos, a literatura e a poesia, que chegadas a este terreno americano não perderam o seu caráter europeu. Com a poesia vieram todos os deuses do paganismo; espalharam-se pelo Brasil, e dos céus, e das florestas, e dos rios se apoderaram.
A poesia brasileira não é uma indígena civilizada; é uma grega vestida à francesa e à portuguesa, e climatizada no Brasil; é uma virgem do Hélicon que, peregrinando pelo mundo, estragou seu manto, talhado pelas mãos de Homero, e sentada à sombra das palmeiras da América, se apraz ainda com as reminiscências da pátria, cuida ouvir o doce murmúrio da castalha, o trépido sussurro do Lodon e do Ismeno, e toma por um rouxinol o sabiá que gorjeia entre os galhos da laranjeira. Enfeitiçados por esse nume sedutor, por essa bela estrangeira, os poetas brasileiros se deixaram levar por seus cânticos, e olvidaram a simples imagem que uma natureza virgem com tanta profusão lhes oferecia. Semelhante à Armida de Tasso, cuja beleza, artifícios e doces palavras atraíram e desorientaram os principais guerreiros do exército cristão de Gofredo. É rica a mitologia, são belíssimas as suas ficções, mas à força de serem repetidas e copiadas vão sensivelmente desmerecendo; além de que, como o pássaro da fábula, despimos nossas plumas para nos apavorar com velhas galas, que nos não pertencem.
Em poesia requer-se mais que tudo invenção, gênio e novidade; repetidas imitações o espírito esterilizam, como a muita arte e preceitos tolhem e sufocam o gênio. As primeiras verdades da ciência, como os mais belos ornamentos da poesia, quando a todos pertencem, a ninguém honram. O que mais dá realce e nomeada a alguns dos nossos poetas não é certamente o uso dessas sediças fábulas, mas sim outras belezas naturais, não colhidas nos livros, e que só o céu da pátria lhes inspirará. Tão grande foi a influência que sobre o engenho brasileiro exerceu a grega mitologia, transportada pelos poetas portugueses, que muitas vezes poetas brasileiros se metamorfoseiam em pastores da Arcádia, e vão apascentar seus rebanhos imaginários nas margens do Tejo e cantar à sombra das faias.
Mas há no homem um instinto oculto que o dirige a despeito dos cálculos da educação, e de tal modo o aguilhoa esse instinto que em seus atos imprime um certo caráter de necessidade, a que chamamos ordem providencial ou natureza das coisas. O homem colocado diante de um vasto mar, ou no cume de uma alta montanha, ou no meio de uma virgem e emaranhada floresta, não poderá ter por longo tempo os mesmos pensamentos, as mesmas inspirações, como se assistisse aos olímpicos jogos, ou na pacífica Arcádia habitasse. Além dessas materiais circunstâncias, variáveis nos diversos países, que muito influem sobre a parte descritiva e caráter da paisagem poética, um elemento há sublime por sua natureza, poderoso por sua inspiração, variável, porém, quanto à sua forma, base da moral poética, que empluma as asas do gênio, que o inflama e fortifica, e ao través do mundo físico o eleva até Deus; esse elemento é a religião.
Se sobre tais pontos meditassem os primeiros poetas brasileiros, certo que logo teriam abandonado essa poesia estrangeira, que destruía a sublimidade de sua religião, paralisava-lhe o engenho, e o cegava na contemplação de uma natureza grandiosa, reduzindo-os afinal a meros imitadores. Não, eles não meditaram, nem meditar podiam; no princípio das coisas obra-se primeiro como se pode, a reflexão vem mais tarde. Acreditava-se então que mitologia e poesia era uma e a mesma coisa. O instinto, porém, e a razão mais esclarecida os foram guiando e posto que lentamente, as encanecidas montanhas da Europa se humilharam diante das sempre verdes e alterosas montanhas do Novo Mundo; a virgem homérica, semelhante à convertida esposa de Eudoro, abraça o Cristianismo, e, neófita ainda, mal iniciada nos mistérios arcanos de sua nova religião resvala às vezes, e no enlevo da alma, no meio de seus sagrados cânticos se olvida e adormentada sonha com as graciosas mentiras que ao berço lhe embalaram. Não, ela não pode ainda, posto que naturalizada na América, esquecer-se dos sacros bosques do Parnaso, à cuja sombra se recreara desde o albor de seus anos. Dirias que ela é combatida pela moléstia da pátria, e que nos assomos da nostalgia à Grécia transportada se julga, e com seus deuses delira; saudosa moléstia que só o tempo curar pode. Mas enfim é já um passo, e praza ao céu que a conversão seja completa, e que os vindouros vates brasileiros achem no puro céu da sua pátria um sol mais brilhante que Febo, e angélicos gênios que os inspirem mais sublimes que as Piérides.
Se compararmos o atual estado da civilização do Brasil com o das anteriores épocas, tão notável diferença encontraremos como se entre o fim do século passado e o nosso tempo presente ao menos um século medeara. Devido é isso a causas que ninguém ignora. Com a expiração do domínio português muito se desenvolveram as ideias. Hoje o Brasil é filho da civilização francesa, e como Nação é filho dessa revolução famosa que abalou todos os tronos da Europa, e repartiu com os homens a púrpura e os cetros dos reis.
O gigante da nossa idade mandou o justo com as suas baionetas até à extremidade da Península ibérica e o neto dos Afonsos, aterrorizado como um menino, temeu que o braço vitorioso do árbitro dos reis cair fizesse sobre sua cabeça o palácio dos seus avós. Ele foge e com ele toda a sua corte; deixam o natal país, atravessam o Oceano e trazem ao solo brasileiro o aspecto novo de um rei, e os restos de uma grandeza sem brilho. Eis aqui como o Brasil deixou de ser colônia e foi depois elevado à categoria de Reino Unido. Sem a revolução francesa, que tanto esclareceu os povos, esse passo tão cedo se não daria. Com esse fato abriu-se para o Brasil uma nova série de coisas favoráveis ao seu rápido desenvolvimento, tornando-se o Rio de Janeiro a sede da Monarquia. Aqui pára a primeira época da sua história. Começa a segunda, em que, colocado o Brasil em mais larga estrada, se apresta para conquistar a liberdade e a independência, consequências necessárias da civilização.
Os acontecimentos notáveis da história do Brasil se apresentam neste século como espécies de contrapancadas ou ecos dos grandes fastos modernos da Europa. O primeiro, como vimos, devido foi à Revolução Francesa; o segundo à promulgação da constituição em Portugal, que apressou o regresso do rei D. João VI a Lisboa, deixando entre nós o herdeiro do trono. O Brasil já não podia então viver debaixo da tutela de uma metrópole, que de suas riquezas se nutrira, e pretendia reduzi-lo ao antigo estado colonial. A independência política tornou-se necessária; todos a desejavam, e impossível fora sufocar o grito unânime dos corações brasileiros ávidos de liberdade e de progresso. E quem pode opor-se à marcha de um povo que conhece a sua força, e firma a sua vontade? A independência foi proclamada em 1822 e reconhecida três anos depois. A Providência mostrou mais tarde que tudo não estava feito!
Coisas há que se não podem prever. Em 1830 caiu do trono da França o rei que o ocupava, e no ano seguinte deu-se inesperadamente no Brasil análogo acontecimento! A coroa do Ipiranga que cingia a fronte do Príncipe português, reservado pela Providência para ir assinalar-se na terra pátria, passou à fronte de seu filho, o jovem Imperador, que fora ao nascer bafejado pelas auras americanas e pelo sol dos trópicos aquecido.
De duas distintas partes consta a história do Brasil: compreende a primeira os três séculos coloniais; e a segunda o curto período que decorre desde 1808 até os nossos dias. Examinemos agora quais são os escritores desses diversos tempos, o caráter e o progresso que mostra a nossa literatura.
No século décimo sexto, que é o do descobrimento, nenhum escritor brasileiro existiu de que tenhamos notícia. No seguinte século alguns aparecem poetas e prosadores dos quais trataremos mais em particular em um capítulo separado, limitando-nos agora a dizer em geral que, fundando-se as primeiras povoações do Brasil debaixo dos auspícios da religião e pelos esforços dos Jesuítas, a literatura nesse século mostra instável propensão religiosa, principalmente a prosa, que toda consiste em orações sagradas.
É no século XVIII que se abre verdadeiramente a carreira literária para o Brasil, sendo a do século anterior tão minguada que apenas serve para a história. Os moços que no século passado iam à Europa colher os frutos da sapiência, traziam para o seio da pátria os germes de todas as ciências e artes; aqui benigno acolhimento achavam nos espíritos ávidos de saber. Destarte se espalhavam as luzes, posto que a estrangeiros e a livros defendido fosse o ingresso no país colonial. Os escritos franceses começaram a ser apreciados em Portugal; suas ideias se comunicaram ao Brasil; dilataram-se os horizontes à inteligência; todos os ramos da literatura foram cultivados, e homens de subida têmpera mostraram que os nascidos nos incultos sertões da América podiam dilatar seu voo até as margens do Tejo e emparelhar com as Tágides no canto.
No começo do século atual, com as mudanças e reformas que tem experimentado o Brasil, novo aspecto apresenta a sua literatura. Uma só ideia absorve todos os pensamentos, uma ideia até então quase desconhecida; é a ideia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela, ou em seu nome.
Independência, liberdade, instituições sociais, reformas políticas, todas as criações necessárias em um nova Nação, tais são os objetos que ocupam as inteligências, que atraem a atenção de todos, e os únicos que ao povo interessam.
Tem-se notado, e com razão, que contrárias à poesia são as épocas revolucionárias; em tais crises a poesia, que nunca morre, só fala a linguagem enfática do entusiasmo e das paixões patrióticas, é a época dos Tirteus. Mas longe estamos por isso de amaldiçoar as revoluções que regeneram os povos; reconhecemos sua missão na história da humanidade; elas são úteis, porque meios são indispensáveis para o progresso do gênero humano, e até mesmo para o movimento e progresso literário.
É verdade que quando elas agitam as sociedades, pára um pouco e desmaiar parece a cansada literatura; mas é para de novo continuar mais bela e remoçada na sua carreira; como o viajor se recolhe e repousa assustado quando negras nuvens trovejam e ameaçam a propínqua tempestade; mas finda a tormenta, continua a sua marcha, gozando da perspectiva de um céu puro e sereno, de um ar mais suave, e de um campo por fresca verdura esmaltado.
Aqui terminaremos a vista geral sobre a história da literatura do Brasil, dessa literatura sem um caráter nacional pronunciado, que a distinga da portuguesa. Antes, porém, de entrarmos na exposição e análise dos trabalhos dos nossos primeiros escritores, uma questão se levanta e requer ser aqui tratada, questão toda concernente ao país e aos seus Indígenas.

IV

Pode o Brasil inspirar a imaginação dos poetas e ter uma poesia própria ? Os seus indígenas cultivaram porventura a poesia ?
Tão geralmente conhecida é hoje esta verdade que a disposição e caráter de um país grande influência exerce sobre o físico e o moral dos seus habitantes que a damos como princípio e cremos inútil insistir em demonstrá-lo com argumentos e fatos, por tantos naturalistas e filósofos apresentados.
Aí estão Buffon e Montesquieu que assaz o demonstram. Ainda hoje, poetas europeus vão beber no Oriente as suas mais belas inspirações; Byron, Chateaubriand e Lamartine sobre seus túmulos meditaram.
Ainda hoje se admira o tão celebrado céu da Grécia e da Itália, o céu que inspirou a Homero e a Píndaro e o que inspirou a Virgílio e Horácio. Vimos esse céu que cobre as ruínas do Capitólio e do Coliseu.
Sim, é belo esse céu, mas o do Brasil não lhe cede em beleza! Falem por nós todo os viajores que, por estrangeiros, não os tacharão de suspeitos. Sem dúvida que eles fazem justiça e o coração do Brasileiro, não tendo por hora muito do que se ensoberbeça quanto às produções das humanas fadigas, que só com o tempo se acumulam, enche-se de prazer e palpita de satisfação, lendo as brilhantes páginas de Langsdorff, Neuwied, Spix et Martius, Saint-Hilaire, Debret e de tantos outros viajores que revelaram à Europa as belezas da nossa pátria.
Este imenso país da América, situado debaixo do mais belo céu, cortado de tão pujantes rios, que sobre leitos de ouro e de preciosas pedras rolam suas águas caudalosas; este vasto terreno revestido de eternas matas onde o ar está sempre embalsamado com o perfume de tão peregrinas flores que em chuveiro se despencam dos verdes dóceis [sic] formados pelo entrelaçamento de ramos de mil espécies; estes desertos remansos onde se anuncia a vida pela voz estrepitosa da cascata que se desempenha, pelo doce murmúrio das auras e por essa harmonia grave e melancólica de infinitas vozes e quadrúpedes; este vasto Éden, entrecortado de enormíssimas montanhas sempre esmaltadas de copada verdura, em cujos topes o homem se crê colocado no espaço, mais perto do céu que da terra, vendo debaixo de seus pés desenrolar-se as nuvens, roncar as tormentas e rutilar o raio; este abençoado Brasil com tão felizes disposições de uma pródiga natureza, necessariamente devia inspirar os seus primeiros habitantes; os Brasileiros - músicos e poetas - nascer deviam. E quem o duvida ? Eles foram e ainda o são.
Por alguns escritos antigos, sabemos que algumas tribos indígenas se avantajam pelo talento da música e da poesia, entre todas, os Tamoios, que no Rio de Janeiro habitavam ,eram os mais talentosos.
Em seus combates, inspirados pelas cenas que os rodeavam, repetiam hinos guerreiros com que acendiam a coragem nas almas dos combatentes e, nas suas festas, cantavam em coros alternados de música e dança, cantigas herdadas de seus maiores.
Em um manuscrito antigo, cujo autor ignoramos quem seja*, lemos o seguinte: “São havidos estes Tamoios por grandes músicos entre o gentio e bailadores os quais são mui respeitados dos gentios por onde quer que vão”. Não era só a tribo dos Tamoios que se distinguia pelo gênio musical e poético, também os Caetés a ainda mais os Tupinambás que em paz vivam com os primeiros e pela língua e costumes mais com aqueles se assemelhavam. No mesmo manuscrito, lemos ainda: “Os Tupinambás se prezam de grandes músicos e a seu modo cantam com sofrível tom os quais têm boas vezes [sic] mas todos cantam por um tom e os músicos fazem motes de improviso e suas voltas que acabam no consoante do mote, os quais cantam e bailam juntamente em roda”.
Do respeito religioso que tais bárbaros consagram aos seus homens inspirados, uma prova nos dá o mesmo autor dizendo: “Entre os gentios são os músicos muito estimados e, por onde quer que vão, são bem agasalhados e muitos atravessam já o sertão por entre os seus contrários sem lhes fazerem mal”.
Tal veneração os [sic] seus cantores lembra-nos esses trovadores que, de país em país, peregrinavam e ante os quais se abriam as portas dos castelos dos senhores da idade média e ainda a respeitosa magnanimidade do grande conquistador antigo para a família do Lírico grego. É que à poesia e à música e dado o assenhoriar-se da liberdade humana, vibrar as fibras do coração, abalar e extasiar o espírito. Por meio dessas duas potências sabiamente empregadas pelos Jesuítas missionários do Brasil, os selvagens abandonavam os seus bosques e se amoldavam ao cristianismo e à civilização. Só as teorias de alguns homens que se inculcam de positivos, e mal estudam a natureza, desmerecer podem a importância social dessas duas irmãs e apenas considerá-las como meras artes de luxo e de recreação dos ociosos. Mas não é nosso intento agora tecer o panagírico [sic] da poesia e da música.
Os apóstolos do Novo Mundo, tão solícitos entre os Indígenas do Brasil, na propaganda da fé católica, compunham e traduziam em língua túpica [sic] alguns hinos da Igreja, para substituir aos seus cânticos selvagens, mas não consta que se dessem ao trabalho de recolher, ou de verter em língua portuguesa, os cânticos dos Índios. Posto que nenhum documento sobre isso tenhamos, contudo, talvez, a todo tempo alguns se encontrem na poeira das bibliotecas conventuais, com especialidade nas da Bahia. Que precioso monumento para nós não fora desses povos incultos que quase têm desaparecido da superfície da terra, sendo tão amigos da liberdade que, para evitar o cativeiro, caíam, de preferência, debaixo dos arcabuzes dos Portugueses que tentavam submetê-los ao seu jugo tirânico! Talvez tivessem eles de influir na atual poesia brasileira como os cânticos dos bardos influíram na poesia do Norte da Europa, harmonizando seus melancólicos acentos com a sublime gravidade do cristianismo.
Do que fica dito, podemos concluir que o país se não opõe a uma poesia original, antes a inspira. Se até hoje a nossa poesia não oferece um caráter inteiramente novo e particular, é porque os nossos poetas, dominados pelos preceitos, limitaram a imitar os antigos que, segundo diz Pope, é imitar mesmo a natureza, como se a natureza se ostentasse em todas as regiões e, diversos sendo os costumes, as religiões e as crenças, só a poesia não pudesse participar dessa atividade, dessa variedade, nem devesse exprimi-la. Faltou-lhes a força necessária para se despojarem do jugo dessas leis arbitrárias dos que se arvoram em legisladores do Parnaso. Depois que Homero, inspirado pelo seu próprio gênio, sem apoio de alheia crítica, se elevou à grandeza da epopeia, criação sua, e Píndaro do mesmo modo à sublimidade da lírica, vieram, então, os críticos e estabeleceram as regras. Convém, é certo, estudar os antigos e os modelos dos que se avantajaram nas diversas composições poéticas, mas não escravizar-se pela cega imitação. “O poeta independente”, diz Schiller, “não reconhece por lei senão as inspirações de sua alma e, por soberano, o seu gênio”.
Só pode um poeta chamar-se grande se é original, se de seu próprio gênio recebe as inspirações.
O que imita alheios pensamentos, nada mais é que um tradutor salteado, como é o tradutor um imitador seguido e igual é o mérito de ambos. E por mais que se esforcem, por mais que com os seus modelos emparelham, ou mesmo que os superem, pouca glória por isso lhes toca, tendo só, afinal, aumentado a daqueles.
Como não estudamos a história só com o único fito de conhecer o passado, mas sim com o fim de tirar úteis lições para o presente, assim, 1836.

domingo, 25 de março de 2012

LITERATURA BRASILEIRA

ENSAIO HISTÓRICO SOBRE AS LETRAS NO BRASIL [1847]


Francisco Adolfo de Varnhagen


Com efeito, o castelhano e o português, que tiveram a sorte de passar primeiro que outras línguas do velho ao novo continente, subiam então pelas suas literaturas à categoria de línguas, graças ao impulso que lhes davam os respectivos centros governativos.
Ao descobrir-se a América, ou antes, ao colonizar-se ela, durante o século XVI, achavam-se no seu maior esplendor as duas nações do extremo ocidental da Europa, que nisso se empenhavam: assim as línguas e literatura, sempre em harmonia com a ascendência e decadência dos estados, como verdadeira decoração que são de seus edifícios, tocavam então o maior auge.

Francisco Adolfo de Varnhagen

O português poliu-se sem degenerar quase nada de sua filiação galego-asturiana, nem corromper o valor das articulações latinas. O castelhano, procedente da mesma filiação, só chegou àquele resultado, depois de arabizar-se muito, de adotar o gutural árabe, e de alterar insensivelmente outras articulações latinas. O português de hoje é o mais legítimo representante do antigo castelhano e do domínio romano na Espanha; e o castelhano moderno serve a comprovar quanto o domínio de uma nação estrangeira pode fazer variar um idioma já bastante formado.
Mas, apesar desse polimento da língua e literatura portuguesa, na época em que se colonizava o Brasil, como se as letras se encolhessem com medo do Atlântico, não passam elas com os novos colonos. Não era no Brasil que os ambiciosos de glória tratavam de buscar louros para colher, pois que essa ambição elevada se satisfazia melhor na África ou na Ásia. Ao Brasil, ia-se [sic] buscar cabedais, fazer fortuna; e as miras do literato alcançam mais alto, não é aos gozos, nem mesmo às glórias terrenhas a que aspira: é à glória imortal.
Os troncos colonizadores não trazem, pois, da árvore-mãe seiva poética bastante para produzirem frutos com ajuda do clima e da terra. A atividade intelectual que emigrava da metrópole nem bastava toda para se estender pelos Algarves d’Além e pela Índia, onde feitos heroicos se passavam. Os acontecimentos, que na Ásia e na África se representavam, eram eternizados em versos por um Camões, um Corte-Real, um Vasco Mousinho; e em prosa por um Gaspar Corrêa, um Castanheda e um Barros. A única obra que nesse primeiro século se escreveu com mais extensão sobre o Brasil, só ultimamente se imprimiu: referimo-nos à do colono Gabriel Soares, cujo trabalho, feito em 1587, foi o fruto da observação e residência de dezessete anos na Bahia; tantos como passara na Pérsia o naturalista Ctésias, que foi quem primeiro fez conhecer aos gregos as riquezas naturais da Ásia. Ao Brasil não passavam poetas; é, pois, necessário esperar que ele se civilize e que os poetas aí nasçam e vigorem seus frutos. Os indígenas tinham um gênero de poesia que lhes servia para o canto; os seus poetas, prezados até pelos inimigos, eram os mesmos músicos ou cantores que em geral tinham boas vozes, mas eram demasiadamente monótonos; improvisavam motes com voltas, acabando estas no consoante dos mesmos motes. O improvisador, ou improvisadora, garganteava a cantiga e os mais respondiam com o fim do mote, bailando ao mesmo tempo e ao mesmo lugar em roda, ao som de tamborins e maracás. O assunto das cantigas era em geral as façanhas de seus antepassados; e arremedavam pássaros, cobras e outros animais, trovando tudo por comparações, etc.
Eram também grandes oradores e tanto apreciavam esta qualidade que aos melhores faladores aclamavam muitas vezes por chefes. Os missionários jesuítas, conhecendo estas tendências, trataram de empregar a música e a poesia como meios de catequese. Nos seus colégios, começavam logo a ensinar a cantar aos pequenos catecúmenos filhos da terra e, mais tarde, compunham até comédias, ou autos sacros, para eles representarem; daí proveio o primeiro impulso da poesia e do teatro no Brasil. Assim, a respeito deste último, sucedeu neste país o mesmo que nos séculos anteriores se passara na Europa, pois, como é sabido, o teatro na Idade Média se conservou e se aperfeiçoou depois, ocupando-se exclusivamente de assuntos religiosos, como até se depreende da lei das Partidas.
Na América Espanhola sucedeu diversamente. A Espanha não tinha Áfricas, nem Ásia, as suas Índias eram só as ocidentais. Do território hispânico não havia já mouros que expulsar e às Índias tinham de passar os que queriam ganhar glória. Assim, enquanto Camões combatia em África e se inspirava em uma ilha dos mares da China, Ercilla, soldado espanhol no Ocidente, deixava gravada uma oitava sua no arquipélago de Chiloe, e, quando Os Lusíadas viam a luz (1572), havia já três anos que corria impressa a primeira parte da Araucana. Os passos de Ercilla eram, no Chile, seguidos por Diego de Santistevan Osório e Pedro d´Oña (já filho d´América), que, em 1605, publicou em dezenove cantos o seu Arauco Domado. Já então se tinha organizado em Lima uma Academia Antártica e havia, na mesma cidade, uma tipografia na qual, em 1602, Diogo d´Avalos y Figueroa imprimiu sua Miscelanea Austral y Defensa de Damas, obra que faz lembrar a Miscelanea Antártica y origen de Índios, que o presbítero Miguel Cabello Balboa deixou manuscrita. Da mencionada Academia Antártica nos transmite, em 1608, os nomes de muitos sócios a introdução, feita por uma senhora, às Epístolas d´Ovídio, por Pero Mexia. Aí se mencionam, como mais distintos árcades, Mexia e os mencionados Oña, Cabello e Duarte Fernandes. Por esse tempo, compunha, também em Lima, fr. Diego de Hojeda a sua épica Christiada, publicada em 1611, e Fernando Alvarez de Toledo o seu Puren Indomito, que nunca se imprimiu. A regularmo-nos pelos tons dos cantos do berço, estes montuosos países da América Ocidental deveriam ter que representar um importante papel no desenvolvimento futuro da literatura americana.
O México não deixava também de participar do estro ibérico, mas aqui, com ar de conquistador, e não com formas nacionais, como no Chile, onde o próprio poeta soldado é o primeiro, não só a confessar, mas até a exaltar generosamente as proezas do mesmo Arauco que ele combatia com armas. Com razão diz a tal respeito d. Gabriel Gomes:

Al valiente Araucano
Alonso venció y honró: la ira
Recompensó la lyra.

Nem sequer um canto de bardo se levantou a favor do, por enganado, não menos herói, tão simpático, Montezuma.
Com o título de elegias canta Juan de Castelhanos, em milhares de fluentes oitavas, a história dos espanhóis que, desde Colombo, mais se ilustraram na América.
Gabriel Lasso (1588) e Antonio Saavedra imaginaram epopéias a Cortez, mas foram tão mal sucedidos como século e meio depois o mexicano Francisco Ruiz de León.
O pequeno poema Grandeza Mexicana, publicado no México em 1604 pelo ao depois bispo Balbuena, autor da epopéia El Bernardo, é, apesar de suas hipérboles e exagerações sempre poéticas, o primeiro trecho de boa poesia que produziu a vista desse belo país, que logo se começou a corromper: primeiro, com falsidades na guerra; depois, com a sede do ouro. Força é confessar que a obra de Balbuena é, de todas as que temos mencionado, a que mais abunda em cenas descritivas, por se haver ele inspirado, mais que todos os outros, de um dos grandes elementos que deve entrar em toda a elevada poesia americana: a majestade de suas cenas naturais. Todos os demais poetas queriam ser demasiado historiadores, no que caiu algum tanto o próprio Ercilla e muito mais outros que chegam a ter a sinceridade de assim o declarar. Deste número, foi Saavedra e o capitão Gaspar de Villagra que, em 1610, publicou em Alcalá (em trinta e quatro cantos de verso solto, aos quais melhor chamara capítulos) a sua História de la Nueva (sic) Mexico , e nesta descreve os feitos do Adiantado Oñate e seus companheiros. Mais poeta nos parece que seria o pe. Rodrigo de Valdés, de quem possuímos a Fundação de Lima, mas, infelizmente, escrito em quadras, que deviam ser a um tempo espanholas e latinas, é, às vezes, obscuro e, com mira de fazer heroico o panegírico, o deixa aparecer antes, a trechos, demasiado empolado.
Buenos Aires, de si terra pouco hospitaleira, ocupou as atenções de Martín del Barco Centenera. Mas a Argentina é também mais uma dessas histórias em verso que um poema.
Não cabe aqui seguirmos a história das produções poéticas nos países que hoje constituem as diferentes repúblicas hispano-americanas, contudo, deixaremos consignado que tanta seiva emprestada de pouco lhes valeu, por secarem, talvez, as árvores antes que as raízes fossem assaz vigorosas para nutrir novos rebentões. Por nossa parte, fazemos votos para que uma tal literatura se eleve à eminência de que é suscetível: o altíloquo Heredia e o mimoso Plácido abriram caminho, não há mais que segui-lo. Haverá quem o siga? Quanto a nós, temos nisso inteira fé; quando as ambições se cansem por si mesmas, quando chegue o desengano de que a política atual quebranta a alma e deixa um vago no coração, o gênio terá que buscar, na cultura do espírito, o mais seguro e mais glorioso refúgio.
Lancemos as vistas para o nosso Brasil. Deus o fade igualmente bem, para que aqui venham as letras a servir de refúgio ao talento, cansado dos esperançosos enganos da política!
Deus o fade bem, para que os poetas, em vez de imitarem o que leem, se inspirem da poesia que brota com tanta profusão do seio do próprio país e sejam, antes de tudo, originais - americanos.
Mas que por este americanismo não se entenda, como se tem querido pregar nos Estados Unidos, uma revolução nos princípios, uma completa insubordinação a todos os preceitos dos clássicos gregos e romanos, e dos clássicos da antiga mãe-pátria. Não. A América, nos seus diferentes estados, deve ter uma poesia, principalmente no descritivo, só filha da contemplação de uma natureza nova e virgem, mas enganar-se-ia o que julgasse que para ser poeta original havia que retroceder ao abc da arte, em vez de adotar e possuir-se bem dos preceitos do belo, que dos antigos recebeu a Europa. O contrário podia comparar-se ao que, para buscar originalidade, desprezasse todos os elementos da civilização, todos os preceitos da religião que nos transmitiram nossos pais. Não será um engano, por exemplo, querer produzir efeito e ostentar patriotismo, exaltando as ações de uma caterva de canibais que vinha assaltar uma colônia de nossos antepassados só para os devorar?Deu-nos Deus a inspiração poética para o louvarmos, para o magnificarmos pela religião, para promover a civilização e exaltar o ânimo a ações generosas, e serão amaldiçoados, como diz o nosso poeta religioso:

(...) os vates em metro perigosos
Que abusaram da musa (...)
(Assumpção, c. 2o )

Infeliz do que dela se serve para injuriar sua raça, seus correligionários e, por ventura, a memória de seus próprios avós!
Mas, voltando aos tempos em que deixamos as letras e a poesia entregues aos desvelos dos jesuítas, é, sem dúvida, que dos colégios destes que se haviam apoderado da instrução da mocidade, saíram os primeiros humanistas e os primeiros poetas que produziu o Brasil.
Nessas aulas se educaria primeiro o franciscano, Vicente do Salvador, nascido na Bahia, em 1564, e autor de uma história do Brasil que existe manuscrita; nas mesmas estudaria o seu compatriota, o pe. Domingos Barbosa, que escreveu em latim um poema da Paixão. Delas sairiam os dois amigos de Vieira, Martinho e Salvador de Mesquita, dos quais o primeiro imprimiu obras em Roma (1662-1670), e o segundo deixou tragédias e dramas sacros. Delas saiu, finalmente, o escritor paulistano Manoel de Moraes, queimado em estátua pela Inquisição.
Mas é singular como a atividade literária só começa depois que a guerra dos holandeses, despertando, por assim dizer, os ânimos, os distraiu da exclusiva ocupação de ganhos e interesses mesquinhos, para ocupar-se mais em apreciar as artes do engenho. Toda a guerra de alguns anos, quando bem dirigida, convém , de tempos a tempos, às nações, para as despertar de seu torpor. O sangue é fecundo, quando bem derramado, e a conquista de glórias é tão necessária a um povonação como o aumento de suas rendas.
O pe. Vieira, com seu gênio vivo e grande eloquência, foi, por meio de seus sermões, um dos mais poderosos agentes que contribuíram para a regeneração moral, e até literária, da nova colônia. As suas lições e os seus estímulos deram ainda aos púlpitos, além de outros pregadores brasileiros, Antônio de Sá e Eusébio de Mattos. Este foi, além disso, o primeiro brasileiro que se deu à poesia religiosa. E, por uma notável singularidade, a guerra contra os holandeses, que foi um tônico para o povo, que serviu de motivo de inspiração a Vieira de muitos de seus rasgos mais eloquentes, que lembrou mais uma comédia ao imortal Lopes de Vega, essa mesma guerra foi a causa de que passasse ao Brasil um dos maiores homens, que contam nos anais de literaturas  Portugal e Castela: referimo-nos a d. Francisco Manoel de Mello que, como testemunha de vista, escreveu por esta ocasião a Epanáfora bélica, sobre a expulsão dos mesmos holandeses de Pernambuco.
Algum tempo depois da aclamação do duque de Bragança, um filho do Brasil, Diogo Gomes Carneiro, foi nomeado cronista geral deste país, a quem o novo monarca brindou com o título de principado na pessoa do herdeiro do trono.
Antes de passarmos adiante, diremos, em poucas palavras, as nossas opiniões acerca do acento do Brasil que, não obstante variar em algumas entoações e cacoetes segundo as províncias, tem sempre certo amaneirado, diferente do acento de Portugal, pelo qual as duas nações se conhecem logo reciprocamente; a não ser que os nascidos em uma passassem a outra em tenra idade, sobretudo desde os oito aos dezesseis anos. Alguma observação a este respeito nos chegou a convencer que as diferenças principais que se notam na pronunciação brasileira procedem de que a língua portuguesa no Brasil, desde o princípio, se acastelhanou muito. Estas diferenças que, principalmente, consistem na transposição dos possessivos, no fazer ouvir abertamente o som de cada uma das vogais, sem fazer elisões no e final, nem converter o o em u e em dar ao s no fim das sílabas o valor que lhe dão os italianos, e não o do sh inglês, ou do sch alemão, esta alteração na pronúncia, que se estende até a alguns modismos e usos, procedeu não só de que os primeiros descobrimentos e colonização foram feitos com ajuda de castelhanos, como de que, para a recuperação da Bahia contra os holandeses, passaram outros muitos que aí ficaram estabelecidos; além disso, no interior da província do Rio Grande, fala-se hoje, pelo menos, tanto espanhol como português e o contato dos negociantes de gados e tropeiros com estes países fez que se adotasse deles quase tudo quanto é nomenclatura da gineta, por exemplo: lombilho, etc.
Dadas estas razões, parece óbvio que a pronunciação ou acento peculiar ao Brasil, já na época de que nos vamos ocupar, seria a mesma que hoje. Havia de ser, pois, a do pe. Vieira, pelo menos criado no Brasil desde muito moço. Também seria a pronúncia de Eusébio de Mattos que nunca do Brasil saiu e, talvez, mesmo a de seu irmão, Gregório de Mattos, poeta satírico, de que adiante trataremos com mais extensão.
Desejáramos agora dar algumas amostras das primeiras cantigas religiosas, ensinadas pelos jesuítas, ou de alguma modinha das que devia de entoar a bela colona, sentada junto ao rio, a gozar da suave viração da tarde! - Mas só o tempo poderá recolher esses monumentos da primitiva poesia nacional.
Quanto aos jesuítas, sabemos que, em 1575, fizeram representar em Pernambuco o Rico Avarento e Lázaro Pobre, que produziu o efeito de darem os ricos muitas esmolas. Nos anos de 1583 e seguintes não temos mais que ler a narrativa da visitação às diferentes províncias do pe. Cristóvão de Gouvêa, escrita por Fernão Cardim, para nos convencermos dos muitos progressos que haviam feito os discípulos dos jesuítas que, na Bahia, tinham já um curso d’artes e duas classes de humanidades. Na obra de Cardim se lê, também como ouviram os índios representar um diálogo pastoril em língua brasílica, portuguesa e castelhana, língua esta que falavam com muita graça.
Cardim nos dá notícia de uns versos compostos então ao martírio do pe. Inácio de Azevedo, além de muitos epigramas que se faziam sobre vários assuntos; também nos refere uma procissão das onze mil virgens em que estas iam dentro de uma nau à vela (por terra) toda embandeirada, disparando tiros, com danças e outras invenções devotas e curiosas, celebrando depois o martírio dentro da mesma nau, descendo a final uma nuvem do céu, e sendo as mártires enterradas pelos anjos, etc.; também o mesmo descreve a representação de certo diálogo (que se julgava composto por Álvaro Lobo) sobre cada palavra da Ave-Maria.
Os escassos fragmentos que chegaram a nós de poesias principalmente religiosas em língua guarani não pertencem à presente coleção.
Das modinhas, poucas conhecemos e, essas, insignificantes, e de época incerta, a não ser a baiana: “Bangué, que será de ti!” glosada por Gregório de Mattos; essa mesma sabemos ser antiga, mas não foi possível alcançá-la completa.
Não deixaremos de comemorar a do Vitu, que cremos ter o sabor do primeiro século da colonização, o que parece comprovar-se com ser em todas as províncias do Brasil tão conhecida. Diz assim:

“Vem cá Vitu! Vem cá Vitu!
- Não vou lá, não vou lá, não vou lá! -
“Que é dele o teu camarada?”
- Água do monte o levou: -
“Não foi água, não foi nada,
Foi cachaça que o matou”

Igualmente antiga nos parece a modinha paulista:

Mandei fazer um balaio,
Para botar algodão, etc.

Cabe agora ocupar-nos do primeiro poeta que se fez notável no Brasil. Foi o satírico Gregório de Mattos, que já em Coimbra, onde se formou, e depois em Lisboa, nas Academias dos Singulares e na dos Generosos, a que pertenceu, começara a manifestar as tendências de seu gênio. Passando ao Brasil, terra que, segundo ele, o criara para “mortal veneno”, o descontentamento e mal-estar o irritaram a ponto tal que, em vez de satírico, era muita vez insolente. Se nas descrições das festas ou caçadas, em geral demasiado prolixas, nos entretém e diverte, nas sátiras pessoais temos sempre que lamentar que o poeta ultrapasse os limites da decência e que, algumas vezes, deixe de ser cavalheiro. A maledicência que emprega contra o governador Antônio Luís, a par dos elogios que de sua administração nos deixou Botelho, e principalmente Rocha Pitta, fazem acreditar, que não a justiça, mas a vingança o movia contra esse representante do poder.
Poderíamos, acerca dos seus versos satíricos, dizer o que de outras cantigas análogas diz um ilustre contemporâneo: - “Eram verdadeiros fascininos [sic]; eram jambos de Arquiloco refinados; eram estocadas de varar até as costas, e catanadas de abrir em dois até aos arções; iam os nomes estendidamente; iam pelo claro as baldas públicas e secretas, até os defeitos involuntários: os do corpo e os da geração, isto tão sem resguardo nos termos, que até as obscenidades se despejavam com um desembaraço digno de Catulo, Marcial ou Beranger.”
Mattos, pelas tendências do seu caráter, fez-se, não discípulo, mas escravo imitador de Quevedo, portanto, assim como sucede a este, se muitos lhe acham graça e chiste, outros o acharão em oposição com o decoro de engenho, em vez de senhor e gracioso; o encontrarão truão e chocarreiro; quando quer ser filósofo, o acharão cínico. Como de Quevedo, o estilo é cortado e desigual; a par de um belo conceito, traz Mattos uma sandice, um disparate ou uma indecência. Sua imaginação era talvez viva, mas descuidada. O seu gênio poético faísca, mas não inflama; surpreende e não comove; salta com ímpeto e força, mas não voa nem atura na subida.
Com Quevedo e com os poetas portugueses dessa época, cultiva os assoantes, sobretudo nos romances. Os espanhóis ainda hoje em dia conservam essa meia rima; em português, foi ela inteiramente abandonada e, quanto a nós, com razão.
Não é este o lugar mais apropriado para entrar na questão da conveniência ou não conveniência do uso dos assoantes na poesia portuguesa; harmoniosa e bela é a nossa língua para, no heróico elevado, contentar-se com o solto. Os redondilhos, que são para poesia menos elevada, tornam-se monótonos se a rima os não abrilhanta e, nos líricos menores, até às vezes se requer que aquela seja aturada. Só aos ouvidos mais delicados é dado apreciar a arte do assoante e, por esta razão, nunca ele será popular.
Das poesias, que damos por litigiosas, entre os dois irmãos Mattos, confessamos que nos inclinamos a que sejam pela maior parte de fr. Eusébio. Há nelas em geral mais unção religiosa e mais viva crença, que é natural ao gênio do poeta satírico. Quando muito, será de Gregório a glosa à Salve-Rainha, entretenimento semelhante ao de Quevedo, glosando o Padre-Nosso.
Seguia-se neste lugar tratarmos de um poema descritivo dos sertões brasileiros – O Descobrimento das Esmeraldas - obra composta em 1689 por Diogo Grasson Tinoco e da qual era herói Fernão Dias Paes. Infelizmente, de tal poema não conhecemos mais que as estâncias 4ª, 27ª , 35ª e 61ª,  que Cláudio Manuel da Costa transmite nas notas da sua Vila Rica. Fazemos votos para que o manuscrito que possuiu Cláudio ou algum outro venha a aparecer em Minas e seja dado ao prelo.
Bernardo Vieira Ravasco, filho da Bahia, irmão do padre Antônio Vieira, deixou muitas poesias manuscritas, mas parece haverem-se perdido. Outro tanto terá sucedido aos Autos Sacramentais que compôs seu filho, Gonçalo Ravasco, e à comédia A Constância e o Triunfo, de José Borges de Barros, ao depois vigário-geral da Bahia. Fazemos aqui, muitas vezes, resenha destas obras, que não conhecemos, para chamar sobre elas a importância a fim de que se publiquem, se se chegam a encontrar.
Manuel Botelho de Oliveira foi o primeiro brasileiro que, do Brasil, mandou ao prelo um volume de poesias. Aí confessa ele a existência de outros poetas que haviam [sic] então no Brasil, e são seguramente, esses contemporâneos, de cujas poesias apenas se conhecem os títulos. Botelho de Oliveira talvez nascesse poeta, e não lhe falta imaginação, como se conhece quando segue sua natural inspiração, nos momentos em que não quer ser demasiado culto – como então se dizia - e nós hoje diríamos contorcido. O pior que ele fez foi querer demasiado imitar os poetas de Itália e Espanha (expressões suas) dessa época, pois, insensivelmente, toma por modelo a Gôngora, e Gôngora, apesar do seu grande talento, nunca podia imitar-se, pois coisas que ele diz, só ele as sabia dizer com arte. Botelho tinha nímia erudição para poder obedecer sempre às próprias inspirações e encher todo o seu extenso volume da Musica do Parnasso (que à imitação talvez de d. Francisco Manoel dividiu em choros), com mais composições semelhantes à silva, em que descreve a pitoresca ilha baiana da Maré. Quis passar pela vaidade de compor nas quatro línguas, portuguesa, castelhana, italiana e latina, e melhor fora ter-se estreado em uma bem. Ao seu castelhano, falta-lhe sempre o jeito de tal, nem que escrevesse primeiro em português e, depois, lhe cambiasse as terminações. No italiano e latim, a dificuldade da empresa prendeu-lhe a veia poética. Nas suas obras, se compreendem duas comédias, uma das quais Hay amigo para amigo já antes fora publicada anônima entre as Famosas. É o título da outra - Amor, enganos y zelos - três inimigos da alma, diz a comédia, que se dão nos amantes e no mundo todo. O enredo destas duas composições é mui insignificante, nem sequer o autor soube para elas inspirar-se com os socorros de Calderón e outros poetas dramáticos dessa época. Em ambas, fala-se de amor e mais amor, mas em ambas há pouca paixão. Na primeira, um amigo cede a outro a dama, por quem ambos estavam apaixonados. Nota-se, de uma e outra, que o autor possuía muito pouca arte, ou pouco conhecimento deste gênero de literatura dialogada; em vez de pôr em diálogo o que lhe convém, tira-se de cuidados e manda muita vez cada qual à cena dizer o que lhe aconteceu e o que intenta fazer. Além disso, as jornadas ou atos são, em geral, demasiado extensos. Em defensa, porém, do autor, cumpre-nos dizer que ele, por certo, nunca destinou para o teatro estas composições, a que chama Descante cômico reduzido em duas comédias, título que lhe quadra, pois vê-se uma certa forma para servir de pretexto a dizerem-se, segundo o gosto da época, descantes de trocadilhos e conceitos amorosos ou com pretensões de tais, pois mal das finezas amatórias que não foram inspiradas em algum sentimento ou alguma reminiscência da paixão do amor. Se existiu deveras a Anarda de Botelho, duvidamos que se enternecesse com tais declarações desenxabidas. Além da silva, acima mencionada, das comédias e das poesias amorosas, deixou-nos Botelho várias canções, um panegírico em 34 estâncias ao marquês de Marialva, que nos parece digno, com mais algumas outras suas composições, de ser condenado, para nos servirmos de uma expressão querida na época em que ele viveu, a afogar-se no Lethes.
Quase contemporâneo a Botelho de Oliveira deve ter sido o autor que, no Florilégio, designamos pelo nome de Anônimo Itaparicano e hoje temos a certeza que era o pe. fr. Manuel de Santa Maria Itaparica, da ordem seráfica, e que ainda vivia em 1751, em que consagrou várias composições aos funerais do rei d. João V. Filho da baiana ilha de Itaparica, não só disso se prezou no seu nome, como nos seus versos, por pouco merecimento que se encontre nessa descrição da ilha de Itaparica. O Eustaquidos, tão recomendado pelo assunto e que tem sido escolhido para empresa de mais de um poeta, contém algumas belas oitavas, não inferiores às do moderno poema castelhano do pe. fr. Antônio Montiel , que começa com as três belas oitavas seguintes:

Divina Musa, inspira favorable
Conceptos à mi mente confundida:
Dime, ¿ quien fue el varon inimitable,
Que en paz y guerra, en la muerte y vida,
Siempre glorioso, siempre inalterable,
En una y outra suerte padecida,
Con exemplo notable de heroismo,
Sopo vencer al mundo, y à si mismo
Aquel hombre, mayor que la fortuna,
Y que à pesar del tiempo y del olvido,
Roma se acordará de ser su cuna;
Buen amigo, buen padre, buen marido;
Ni la desgracia le abatió importuna,
Ni la felicidad le há envanecido:
Aquel, que problemático há dexado,
Si fue mas infeliz, que afortunado.
Dime, pues, ¿ como Eustaquio haya podido
Llenar la tierra y mar de sus hazañas
¿ Como despues de poco haya caido
De tanta altura ¿ como tan extrañas
Aventuras sufrió! ¿ como há perdido
El fructo de su amor y sus estrañas
¿ Como há pagado su valor el suelo
¿Como há premiado su virtud el cielo

Cabe aqui fazer menção de um jesuíta, filho do Rio de Janeiro, que então se exercitava na poesia latina. O Carmem De Sacchari opificio de Prudêncio do Amaral só foi impresso no fim do século passado e corre incorporado nos quatro livros de rebus rusticis brazilicis, em que José Rodrigues de Mello trata da cultura da mandioca e outras raízes, da do tabaco, etc. Cumpre reconhecer que a obra brasileira tem menos desenvolvimento do que a de Raphael Landivar, autor de quinze livros latinos que podemos chamar Geórgicas Mexicanas. O mencionado Amaral nos deixou o Stimulus amandi Dei param que julgamos nunca foi impresso; e em prosa, são seus os elogios dos bispos e arcebispos que acompanham as Constituições da Bahia.
Mais tarde, também se exercitou na poesia latina o pe. Francisco de Almeida, natural da Cachoeira, o qual, no seu Orpheus brazilicus trata das virtudes do pe. José de Anchieta.
Gonçallo Soares da Franca e o pe. João Álvares Soares ocuparam-se de algumas insignificantes poesias à morte de d. Pedro II que correm impressas. O primeiro começou Brazilia, poema sobre o descobrimento do Brasil; o segundo é o erudito Soares Bahiense, autor do Progymnasma Litterario.
Contentemo-nos com fazer menção da pernambucana d. Joana Rita de Sousa e de Luís Canelo de Noronha, do qual diz Brito de Lima:

“Nas loas do Parnaso as brancas aves
Avantajou no harmônico e sonoro
Luís Canelo, que em métrica harmonia
É modulado cisne da Bahia.”

Este Brito de Lima foi um dos poetas da Bahia que mais versos conseguiu fazer imprimir, dedicava-os à adulação e, naturalmente, publicá-los corria por conta dos adulados. Conseguiu por isso mais fama e glória?
Desgraçado do poeta que, em vez de seguir a inspiração, a busca em assuntos alheios a ele, para lhes prestar servil acatamento!
Cabe aqui consagrar algumas linhas à memória dos paulistas Alexandre de Gusmão e de seu irmão, Bartolomeu Lourenço, o voador, ambos os quais cultivaram as letras. Do primeiro, não compreendemos, em nossa coleção, nenhuma das composições ou traduções poéticas que, sem a necessária autenticidade, correm em seu nome, por nos parecerem todas elas inferiores a tão grande homem. Queremos antes ver Alexandre de Gusmão presenteando sua pátria com a colonização das ilhas de Santa Catarina e Rio Grande, com as providências sobre o quinto do ouro e com a confecção do grande tratado de limites de 1750. É nestas obras, e enquanto esse ilustre político escreveu, para as levar a efeito, que se pode sondar o gênio deste brasileiro. Seu irmão não foi entendido no seu tempo: contra a sua invenção choveram sátiras, e até uma comédia manuscrita vimos nós no Porto, expressamente feita naquele tempo para o ridicularizar. Não admira, quando essa, e ainda pior, tem sido a sorte de tantos outros homens de gênio.
Pouco diremos neste lugar do desgraçado Antônio José, remetendo o leitor para a sua biografia e para os trabalhos que sobre suas obras terá talvez já ora publicado o nosso amigo, o Sr. Pontes.
Para o fazer figurar na nossa coleção, separamos de suas óperas alguns versos que publicamos, talvez sem a ordem e as explicações necessárias e sem que se refiram ao Brasil.
Basta-lhe que, por mais de um século, haja o público esquecido o seu nome, não se declarando este nas óperas e apelidando-as do judeu; basta que a Santa Inquisição se vingasse do que ele escreveu, queimando-lhe o corpo! É de saber que o pai de Antônio José, o mestre em artes João Mendes da Silva, natural, como seu filho, do Rio de Janeiro, também cultivava a poesia, mas, por infelicidade, nunca se imprimiram as obras que se lhe atribuem. Barbosa menciona um ofício da cruz em verso; a fábula de Leandro e Ero, em oitavas rimadas; um hino a Santa Bárbara e, finalmente, um poema Christiados. Notamos que, na maior parte dos assuntos, se contêm, pelo menos nos títulos, a não serem paródias, profissões de fé antijudaicas. Dedicar-se-ia ele, pois, a tais composições, só para que o não perseguissem? É certo que João Mendes morreu advogado da casa da suplicação quando a mulher e o filho sofriam os tratos dentro da Inquisição. Se as tais obras foram compostas para defender-se das perseguições destas, desculpemos-lhes a hipocrisia, mas cremos que não seriam elas obras de inspiração, porém poesias de cálculo e, em tal caso, a perda de tais manuscritos não deve muito lamentar-se. É sabido que Christiados fora o título de um poema latino do bispo Balbuena, de cujo manuscrito se apoderaram os holandeses, quando assaltaram a ilha de Porto Rico.
Ao referirmo-nos às operas, ou antes, zarzuelas, de Antônio José, cumpre dizer que não nos consta que fossem jamais representadas em teatros no Brasil. Exigiam elas (como os vaudevilles franceses de hoje), cômicos, vozes e músicos, o que não era fácil encontrar em tempo, em que ainda, na Bahia, não havia teatro regular, nem cômicos de profissão. Só por ocasião de festas se davam extraordinariamente representações, mas de comédias, entremezes e um pouco de dança, e esses, algumas vezes, em espanhol. Temos informação das representações feitas em duas dessas festas e, se bem sejam de época um pouco anterior à das óperas de Antônio José, julgamos a notícia curiosa para não deixarmos de aqui a dar. Em janeiro de 1717, sabemos que se representaram, na Bahia, El conde de Lucanor e os Afetos de ódio y amor de Calderón; em 1729, com a notícia dos casamentos dos príncipes, representaram, do mesmo Calderón, Fineza contra fineza, La fiero, el raio y la piedra e El monstro de los jardines; além disso, La fuerza del natural e El desdén com el desdén, de Moreto. Não negamos boa escolha nas produções acima, mas haveria ali, mesmo na capital do Estado, atores capazes de desempenhá-las? Eis quando, para no-lo contar, é para sentir que já não vivesse Gregório de Mattos.
Estamos chegados ao momento de dever dar conta da primeira sociedade literária regular que teve o Brasil: a Academia dos Esquecidos, criada na Bahia em 1724, sob a proteção do vice-rei, Vasco Fernandes César de Menezes, ao depois, conde de Sabugosa. O nome de esquecidos tomaram, talvez, os sócios da circunstância de não haverem sido lembrados os seus na Academia de História que se criara em Lisboa, em 1720. Daquela Academia chegou a fazer memória o Mercúrio histórico de França, desse mesmo ano, mas os trabalhos delas eram de pouca importância, a regularmo-nos por alguns manuscritos que foram parar à biblioteca dos frades da Alcobaça e [que] tivemos ocasião de consultar, a saber: dissertações dos desembargadores Luís de Sequeira da Gama e Caetano de Brito e Figueiredo, outra do dr. Inácio Barbosa Machado e uma sobre a história eclesiástica do acima mencionado Gonçalo Soares da
Franca. Já que falamos da Academia de História, cumpre dizer que dela foi sócio o baiano Sebastião da Rocha Pita que, em 1730, publicou uma História do Brasil que se recomenda pela riqueza das descrições e elevação do estilo que, às vezes, são tais que mais parecem de um poema em prosa. Antes tinha dado à luz vários escritos e composto poesias, pelas quais pouco se recomenda o autor baiano. O pe. João de Mello, jesuíta pernambucano, também publicou, em 1742, um livrito de poesias que apenas tivemos ocasião de ver. O mesmo nos sucede com as do fluminense Manuel José Cherem, publicadas em Coimbra e com o culto métrico à Senhora da Conceição, do Secretário de Estado do Brasil, José Pires de Carvalho. Todas três possuía um amigo nosso, portuense, mas não nos foi possível obter dele que no-las remetesse para nos servirem nesta notícia. Mais felizes fomos com impressos de fr. Francisco Xavier de Santa Teresa, da Academia de História, e das dos Aplicados, mas estas, exclusivamente panegíricas, de um bispo do Porto e de um dos duques de Cadaval nada teriam com o Florilégio. É, porém, para sentir que em Olinda já em tempo de Jaboatão não se achassem os manuscritos do poema ao Espírito Santo e a tragicomédia de Santa Felicidade e seus filhos, por cujas obras poderíamos ajuizar do gênio do poeta. Este escritor baiano era tido por bom pregador. Do genetlíaco, composto a uma senhora, pelo pernambucano Manuel Rodrigues Corrêa de Lacerda, dos escritos do cônego João Borges de Barros, nada podemos aventurar. O livro deste último, Relação Panegírica, dos funerais (que consagrou à Bahia) à memória de d. João V, contém muitas poesias de brasileiros, as quais excluímos da nossa coleção, não por falta de merecimento, mas por julgá-las só próprias de uma Miscelânea.
Na cidade do Rio de Janeiro, onde, em 1735, se tinha começado a organizar uma sociedade literária, que não vingou, volveu-se, em 1752, a tratar de outra que chegou definitivamente a organizar-se, com o nome de Academia dos Seletos. O mesmo sucedeu mais tarde, no vice-reinado do marquês do Lavradio, à Sociedade Literária, que, sob seus auspícios, se criou. Cinco anos antes da fundação da Academia dos Seletos, em 1747, fora aí estabelecida, por Antônio da Fonseca, uma tipografia em que se imprimiu uma pequena relação composta por Luís Antônio Rosado e também, segundo se crê, o livro Exame de Artilheiros, do lente da Escola militar, José Fernandes Pinto Alpoim. Esta tipografia emudeceu logo, ou porque a fizeram calculadas medidas de uma política desconfiada, ou porque não poderia por si mesma sustentar-se, o que não é para crer, quando tantas outras havia já em várias cidades, muito inferiores da América Espanhola.
O Rio, pelo seu comércio, pelo talento de seus filhos, patenteado em Coimbra, e sobretudo por se achar mais central para acudir de Pernambuco à Colônia do Sacramento, já tinha sobre a Bahia uma grande preponderância quando, em 1763, o marquês de Pombal para ali transferia a sede do vice-reinado.
Mas foi mais que tudo a província de Minas que (por ser pátria de uns literatos e residência de outros) imprimiu um novo e grande impulso na regeneração da literatura brasileira. Se esta nascera da atividade de uma guerra de armas, agora, um século depois, outra guerra com os elementos, com as brenhas e entranhas da terra para extrair-lhe o ouro nelas escondido, produziu a regeneração literária que já traz em si mesma o cunho de ser nascida daqueles sertões do coração do Brasil.
Eram filhos dessa província, mas dela ausentes, José Basílio e Durão; eram nela nascidos e achavam-se aí residentes, Cláudio e Alvarenga Peixoto; Gonzaga desempenhava o lugar de ouvidor em Vila Rica; Silva Alvarenga vivia no Rio de Janeiro; o irmão deste, e Antônio Caetano de Almeida, irmão de José Basílio, também: todos formavam uma espécie de Arcádia, que se chamou Ultramarina.
Se bem [que] destes poetas, Cláudio é o mais antigo, trataremos antes dos ausentes, não só por darmos notícia de suas epopeias de assunto brasileiro, como por deixarmos ou [sic] outros para os atender, conjuntamente, nos fatais acontecimentos posteriores.
E primeiro trataremos de José Basílio e do seu Uraguay. Esta epopeia é das modernas de mais merecimento, se bem que o autor, com pressa, não lhe desse todo o desenvolvimento. José Basílio tinha-se familiarizado muito com a literatura clássica e italiana e deixou nisso frequentes reminiscências, espalhadas pelo poema. O autor do Uraguay, principalmente, se extremou pelo talento da harmonia imitativa, pelo mecanismo da linguagem, sabendo sempre adotar os sons às imagens. Às vezes, faz correr os versos fluidos e naturais, outras, como nas falas de Cacambo, demora no verso de propósito, porque deseja representar distância, sossego ou brandura. Se a imagem é audaz e viva, como quando fala Cepé, faz precipitar os versos; até diríeis que em casos duros e de batalhas, etc., sabe fazê-los roçar asperamente uns com outros.
Durão deixou-nos o Caramuru. Este poema, mais acabado que o anterior, é de fácil e natural metrificação, dicção clara e elegante, nele o poeta, só pelo seu gênio, conseguiu fazer herói um indivíduo que estava longe de o poder ser. Entretanto, cumpre dizer que, se da Ilíada se colhem estímulos de valor, se a Eneida comove à piedade, se o Orlando inspira sentimentos de cavalheirosa abnegação, se os Lusíadas exaltam o patriotismo e a Jerusalém é um modelo de prudência e conselho, o poema Caramuru oferece um tipo de resignação cristã e de virtudes conjugais. O Caramuru ganhará, de dia para dia, mais partido e chegará, talvez, a ser um dia popular no Brasil.
Cláudio deve considerar-se o primeiro poeta mineiro, por direitos de antiguidade, pois já em 1751, em Coimbra, começou a imprimir algumas poesias; depois de ir a Minas, serviu de secretário de Governo, correu os sertões com o governador Lobo e foi protegido do conde de Valadares.
Deixou-nos Cláudio mais de cem sonetos, vinte églogas, muitas epístolas, alguns epicédios e romances líricos e um heroico, alem de cantatas e cançonetas em italiano; pulsou a lira, orçando pelo sublime na sua saudação à Arcádia Ultramarina, mas no poema Vila Rica não acertou bem com a embocadura da trombeta épica. Nos sonetos, faz, muita vez, recordar a Petrarca. As suas églogas parecem em tudo modeladas sobre as de Garcilasso. Era Cláudio, como este, exato na impressão e, como ele, amante da literatura italiana. Mais delicados e ternos que sublimes, um e outro eram como nascidos para égloga e elegia. As obras de Cláudio devem estudar-se como modelos de linguagem; e, porém, de temer que o gênero bucólico, em que mais abunda, venha a convidar poucos à sua leitura.
Alvarenga Peixoto era dotado de grande gênio poético e o pouco que dele nos resta é bastante para lamentarmos que nos não deixasse muito mais ou, por ventura, que não apareça o mais que comporia. O seu canto genetlíaco em 19 estâncias e a magnífica composição com que convida d. Maria I a passar-se à América são, por si sós, bastantes para lhe tecer eterna coroa de poeta.
Gonzaga, cuja Marília de Dirceu já vai sendo traduzida em todas as línguas, acabando de sê-lo em castelhano, a rogo nosso, pelo amigo Sr. d. Enrique Vedia, distingue-se pela ternura dos afetos e pela naturalidade da versificação. Ninguém como ele, a nosso ver, tirou tanto partido para expressar seus sentimentos, de tudo quanto o rodeava, inclusivamente na prisão, com a imagem da morte perante os olhos.
Se Gonzaga (Dirceu) nos deixou um cancioneiro por nome Marilia, temos outro de Silva Alvarenga (Alcindo) intitulado Glaura. À maneira de Petrarca, um e outro constam de duas partes: no primeiro, canta o poeta os seus amores, na segunda, chora a perda deles: Dirceu, pela sua prisão e desterro; Alcindo, como Petrarca, pela morte do objeto amado.
Silva Alvarenga, a quem devemos os melhores ensaios, feitos de intento em um gênero erótico novo, tinha grande amor à poesia e elevadas ambições de poeta. É correto na linguagem, poético nas imagens, natural, sensível e melodioso nas redondilhas, mas nem sempre altíloquo no heroico. Seus ensaios eróticos de cor americana perdem por monótonos e convertem, às vezes, o poeta num namorado chorão e baboso. Seu irmão, João Inácio, passava por ser o autor da famosa ode a Albuquerque que, ultimamente, se deu de presente (não sabemos com que fundamento), a Vidal Barbosa.
Do irmão de José Basílio da Gama, nada podemos dizer, por não conhecermos composição alguma sua.
O governador Luís da Cunha de Menezes não soubera ganhar as simpatias da capitania, cujo governo lhe fora confiado em 1783. O seu gênio vaidoso, os seus erros administrativos e o prestar-se ele em pequenas coisas ao ridículo, deram assunto para a violenta sátira que, em novo epístolas, chamadas Cartas Chilenas, contra ele escreveu um dos poetas de Vila Rica. A facilidade da metrificação, a naturalidade do estilo e a propriedade da linguagem fariam atribuir esta obra a Cláudio, a não desmentirem da sua pena, algumas expressões chulas e pouco decorosas. Tão pouco nos atrevemos a atribuí-las a Alvarenga Peixoto, de quem nenhuns versos possuímos deste gênero. É, porém, sem dúvida que tais versos eram de pessoa exercitada em o fazer e não havia então em Minas poetas neste caso mais que os dois e Gonzaga, que fica excluído, por se falar dele nas mesmas cartas. As epístolas supõem-se dirigidas por Critilo a um Doroteu (Teodoro?) que estava na Corte. Correm precedidas de uns versos de outro autor que, em certo lugar, nos previne a favor da nomeada de Critilo como escritor conhecido. Não faltam nas cartas verdades que deviam de ser duras aos ouvidos, não só do governador presente, como até de todos os mandões maus que lhe sucedessem. A sátira foi escrita provavelmente em 1786, isto é, depois das festas, por ocasião dos casamentos dos infantes de Portugal e Espanha.
As cartas chilenas, que melhor podemos chamar mineiras, são o corpo de delito de Cunha de Menezes, cujo desgoverno foi a origem da primeira fermentação em Minas, para a conspiração em que apareceram complicados como chefes e cabeças os poetas de que ultimamente fizemos menção, Cláudio, A. Peixoto e, em aparência, Gonzaga. Talvez nenhuma outra história literária ofereça a novidade de se ver assim inseparável de uma conspiração política em que, segundo parece, tiram os poetas a principal parte.
Em 1788, sucedeu a Menezes no governo o visconde de Barbacena e, à sua chegada, correu voz de que ia forçar a capitania ao pagamento de 700 arrobas de ouro que ela devia pela lei da capitação. Entretanto, as ideias de conspiração e revolução, originadas no governo anterior, haviam amadurecido e a notícia de que se ia violentar o povo e satisfazer aquele tributo fez-se espalhar como conveniente para fazer rebentar a revolução que os conspiradores imaginavam teria tão feliz êxito como a que se acabava de levar a efeito nos Estados Unidos, graças à grande proteção que estes encontraram da parte da França e Espanha contra a Grã-Bretanha.
Alvarenga Peixoto estava entusiasmado pelo futuro da nova nação; improvisou-lhe a bandeira e propôs as providências que deviam adotar para criar partido e para resistir à guerra que, infalivelmente, dizia ele, com razão, devia ter lugar. Mas, como sucede tantas vezes, alguns conspiradores converteram-se em delatores. Antes de rebentar a revolução, foram todos os suspeitos réus presos e depois julgados. Cláudio matou-se no cárcere, enforcando-se com uma liga. Alvarenga Peixoto foi sentenciado à morte, e Gonzaga, talvez inocente à conspiração, a degredo por toda vida para as Pedras Negras, em Angola. Estas sentenças foram comutadas, por uma Carta Régia de perdão, a daquele em degredo perpétuo , ao princípio, para Dande e, depois, para Ambaca, e a deste, em dez anos de degredo para Moçambique. O poeta português Diniz foi um dos juízes signatários destas sentenças de seus colegas.
Já neste século, principalmente desde o marquês de Pombal, vemos filhos do Brasil ocupando os primeiros cargos do Estado e outros distinguindo-se com escritos que ganharam nomeada. João Pereira Ramos, um dos reformadores da Universidade, é guarda-mor do Arquivo da Torre do Tombo. Seu irmão, o bispo de Coimbra, d. Francisco de Lemos, é reitor e reformador da Universidade. d. José Joaquim Justiniano Mascarenhas foi feito bispo do Rio de Janeiro, sua terra natal. O báculo de Pernambuco, confiou-se a d. Francisco da Assunção e Brito, natural de Mariana e, depois, a d. fr. Diogo de Jesus Jardim, do Sabará, e, mais tarde, a d. José Joaquim de Azevedo Coutinho, de Campos. d. Tomás da Encarnação, natural da Bahia, é autor de uma conhecida História Eclesiástica, publicada em Coimbra em quatro tomos. O franciscano Jaboatão, nascido na Vila deste nome, publicou uma história da sua ordem seráfica no Brasil; Pedro Taques de Almeida Paes e fr. Gaspar da Madre de Deus escreveram memórias históricas sobre a sua Província de São Paulo; José Monteiro de Noronha, do Pará, em cuja Sé foi vigário capitular, era um eclesiástico de bastante saber. Na advocacia, distinguiram-se os doutores Inácio Francisco Silveira da Motta, Saturnino, e como magistrado fez-se muito notável o desembargador Velloso.
Além dos advogados mencionados, outro havia de quem nos restam algumas composições poéticas, além de outras que possuem seus netos; só três publicamos do poeta fluminense Mendes Bordallo. Igual nome não daremos, mas sim o de simples versejador a outro fluminense, cuja condição humilde foi para nós grande recomendação para o contemplarmos. Referimo-nos ao sapateiro Silva. Os seus versos devem guardar-se e podem alguns ler-se.
Também nas ciências, alguns brasileiros ganharam celebridade nesta época: Alexandre Rodrigues Ferreira, o Humboldt brasileiro, em suas extensas viagens pelos sertões do Pará; José Bonifácio de Andrada, de cujas poesias adiantando [sic] trataremos, agora viajando como mineralógico pela Europa. Do mesmo modo que o seu patrício (natural do Serro do Frio), o naturalista Manuel da Câmara Bittencourt e o fluminense Antônio de Nola, ao depois, lente em Coimbra; Coelho de Seabra escrevendo tratados de química, além de muitas dissertações científicas; Conceição Velloso, trabalhando em uma grande Flora Fluminense e deixando impressos muitos tratados compostos ou traduzidos; o dr. José Vieira do Couto, naturalista em Minas; Manuel Jacinto Nogueira da Gama (ao depois marquês de Baependi) distinguindo-se, em Coimbra, nas matemáticas, do mesmo modo que Francisco Villela Barbosa (marquês de Paranaguá), e vindo ambos reger cadeiras dessas ciências. Pires da Silva Pontes, encarregado dos tratados de limites e de levantamentos das cartas no Brasil e José Fel. Fernandes Pinheiro (v. de S. Leopoldo) já magistrado e ocupando-se das traduções de obras que podiam ter aplicação à indústria do Brasil; Silva Feijó, naturalista, empregado em explorações nas ilhas de Cabo Verde; José Pinto de Azevedo, médico distinto da escola de Edimburgo, e outros de menos nomeada.
Nos fins deste século, um filho da Bahia, que nesta cidade professou o ensino da gramática, José Francisco Cardoso, compôs em latim um canto heroico sobre a expedição dirigida contra Trípoli e comandada pelo chefe de divisão Donald Campbell, para que o rei entregasse uns franceses aí refugiados. O autor não era de imaginação mui rica, seus versos estão longe da perfeição e o mesmo estilo é, em geral, pouco poético, mas este poema teve a honra de ser vertido em verso português por Bocage, o poeta mais harmônico que tem dado Portugal.
Assim, a obra de Cardoso ganha muito em ser antes lida na tradução portuguesa. Rematemos o que falta dizer dos poetas deste século XVIII, com um, que se pode dizer, concluiu com ele seus dias: aludimos ao pardo Caldas Barbosa. E, com referência à sua biografia no Florilégio,  diremos que este cantor de viola, como se lhe tem querido chamar, merece mais consideração do que se lhe tem dado até agora. Além de que se ensaiou em todo o gênero de poesia, deixou-nos, a par de muitas composições insignificantes, outras que lhe devem conferir o nome de poeta. Possuímos dele elegantes quintilhas, harmônicas estrofes e alguns sonetos, nos quais só o muito desejo de criticar poderá encontrar senões.
Não é por certo seu mérito a comparar com o seu xará, também eclesiástico - o sublime Sousa Caldas. Conta-se que aquele reconhecia tanto essa superioridade que, uma vez, encontrando ao último em sociedade, improvisou a tal respeito a seguinte quadra:

Tu és Caldas, eu sou Caldas;
Tu és rico e eu sou pobre;
Tu és Caldeira de prata;
Eu sou Caldeira de cobre.”

Souza Caldas é talvez o poeta brasileiro que mais orçou pelo sublime e também, com seus versos líricos menores, sabia ser festivo. Como poeta sagrado, rivaliza com ele, não pelo sublime e correto, mas pela viveza das imagens, colorido e facilidade de expressão, o autor da epopeia sagrada, a Assunção da Virgem.
Fr. Francisco de S. Carlos teve a coragem de se abalançar neste século a tratar um tal assunto e só pela fecundidade de seu engenho poderá sair bem da empresa. Com muita arte envolve a América e suas grandezas neste assunto divino, passado em tempos em que aquela não era, é verdade, conhecida dos cristãos, mas já era do Eterno e o podia ser do Arcanjo seu núncio.
Igualmente a ideia de pôr no Paraíso terreal os frutos da América, isto é, o verdadeiro jardim da terra, é belíssima e original.
Na Assunção há mais poesia que no Uraguay e no Caramuru, mas as rimas pareadas serão fatais à popularidade do poema e glória do poeta, sempre que algum leitor, animado pelo assunto piedoso ou prevenido em favor do gênio poético do autor, se dedique boamente à sua leitura, sem fazer reparo a um que a outro lugar de menos castigado estilo. Infelizmente, ao poeta faltou-lhe em vida não só outro poeta amigo a quem pudesse dar a censurar suas composições. E devemos crer, pelo que ele próprio nos diz, que dos outros, em vez de estímulo, só recebia sinais de indiferença, e até o fim do poema se achara sozinho, sem mais valimento que o da sua musa.
Queixando-se a esta, nos diz:

“Aqueles mesmos, que nos meus suores
Deveriam ter parte são piores.
Surdos se têm mostrado, e indiferentes
A tão nobres vigílias... Vê, que gentes,
Que estima pelas musas, que alto brio
Produz o teu Janeiro o ilustre Rio.”
( C. 8º , pág. 211)

Quanta reputação e quanta glória não pudera ter adquirido um dos poderosos de então se houvesse querido e sabido proteger um pobre frade que, com tais versos, implora a benevolência da posteridade! Sem aguardar para mais longe, já os que nascemos depois, quase condenamos todos os que então figuravam no Rio e com quanto prazer, com quanta glória, para ele, não citáramos aqui o Mecenas, se algum tivesse querido então sê-lo!
De Manuel Joaquim Ribeiro, professor régio de Filosofia em Minas Gerais, possuímos alguns sonetos e várias liras e, lástima é que tantas destas composições não passem de puros encômios à pessoa do capitão-general. Vê-se que Ribeiro quis tomar por modelo a Dirceu e, força é dizê-lo, que às vezes o imitou, na graça e naturalidade que chega a iludir-nos.
Ao fazermos menção de Minas nesta época, é impossível deixar no olvido a exata e ingênua descrição desta província, feita em quadras pelo alferes miliciano Lisboa. As suas outras composições patrióticas e contra a invasão francesa em Portugal nem sequer tiveram voga na época de entusiasmo em que se deram à luz.
Mineiro era também o pe. Silvério, chamado da Paraopeba. Suas composições são recomendáveis pela muita originalidade e , quando se colijam, fornecerão uma pintura de muitos usos de nossos sertanejos.
Mais para o interior, em Goiás, pulsava a lira de Píndaro o sublime Cordovil, de quem devemos sentir que não sejam conhecidas maior número de produções. Tendência ao sublime se descobre também nas composições que temos do baiano Luís Paulino. Mais que estes se distinguiu, posteriormente, no lírico elevado, o pernambucano Saldanha, cantando os principais heróis que dirigiram a restauração da sua província contra o jugo holandês. Infelizmente, Saldanha parece não ter tido mais modelo que as odes pindáricas de Diniz que já demasiado se parecem umas às outras.
Restava ocuparmo-nos, mais extensamente, dos últimos quatro autores poetas, com que termina o nosso Florilégio. De alguns outros modernos, falecidos, não possuímos composições bastantes, e dos vivos, não ousamos nós julgar e muito menos a par dos mortos. Assim, Deus faça subsistir por muito tempo os motivos porque [sic] deixamos aqui sem exame as poesias dos Pedra Branca e Alves Branco, dos Odorico Mendes e de tantos outros poetas talentosos de nossos dias.
Reservando-nos, pois, o projeto de publicar um suplemento a esta coleção, quando tenhamos juntado os materiais para ele, igualmente prometemos, para o futuro, um album, contendo duas ou três das composições ou trechos de poesias que cada um dos poetas, que a nós se dirijam, e que são convidados neste lugar, creia preferíveis às outras suas.
Os quatro autores referidos, que terminam o nosso Florilégio, são: José Bonifácio, Paranaguá, Januário e Álvaro de Macedo. Os laços de amizade e veneração que a eles nos prendiam, e nos ligam às suas famílias, quase nos apertam o pulso e fazem que a mão trema ao escrever deles um juízo crítico - prematuro talvez. Digamos, antes de tudo, que nenhum desses brasileiros talentosos cultivou a poesia, senão por distração de mais sérios estudos. José Bonifácio era naturalista; Paranaguá, matemático; Januário, pregador e Álvaro, profundo nos estudos da vária filosofia. Todos eles dedicaram grande parte da sua atividade e tempo aos afãs da política, já como deputados e ministros, já como escritores e jornalistas. De cada um destes dois últimos não pode contar a literatura mais que um pequeno poema, com escasso desenvolvimento. De Paranaguá, faltam ao público a maior parte das composições, com a correção com que as ia limando no decurso de sua vida, sobretudo as primeiras que publicou em Coimbra, no século passado. Não sabemos como haverá modificado a sua Primavera, tão notável pelo estilo e metrificação, mas onde faltava muita cor americana. Sentimos que o poeta fluminense preferisse entre as quadras do ano a que na Europa é mais risonha e fizesse menção de se ter acabado o frio do vento norte, quando o frio no Brasil não vem desse lado e que se lembre da flor da amendoeira, pois se há esta árvore em algum jardim de aclimatação, não é para nós um indício da primavera, etc. As composições amorosas, quando não abundam em nomes mitológicos, e sobretudo as heroicas ao Fundador do Império, e que ouvimos recitadas da própria boca do poeta, cremos que irão à posteridade com unânime louvor e darão a Paranaguá mais glória do que a Primavera a que, por falta de outros modelos do autor, demos a preferência.
José Bonifácio não se pode classificar como poeta; não pertence a nenhuma escola, se bem que se educou na clássica. Não se afeiçoou a nenhum gênero, mas em todos se ensaiou. Não poetava por amor da arte, mas por fugir do tédio em horas que não queria pensar em ciências, nem em política. Isto em nada se opõe a que não sejam de superior mérito algumas poesias que nos deixou. Parece que, juntamente com o brasileiro Mello Franco, muito concorreu para a confecção do poema satírico da Universidade de Coimbra - O Reino da Estupidez.
Se o cônego Januário merece, nos diferentes ramos da literatura brasileira, uma reputação muito maior do que a que lhe dão suas obras na poesia, sobretudo, os seus serviços foram maiores do que os que indica o seu Nictheroy. Januário foi o primeiro coletor de poesias brasileiras, que promoveu o gosto pelas letras americanas e delas foi, na imprensa, na tribuna e até no púlpito, estrênuo e acérrimo campeão. Seu estro, descobriu ele, principalmente, em produções anônimas que, por ora ao menos, não podem pertencer à literatura, pelas muitas personalidades que encerram, nascidas de paixões políticas às quais não foi estranho na idade madura este ativo eclesiástico.
Álvaro de Macedo era um moço de saber e conhecedor profundo da língua e literatura inglesa e desta grande admirador. A Festa de Baldo, apesar de seus defeitos, que consistem em faltas de desenvolvimento de certos pensamentos e no prosaísmo de alguns versos, é o nosso primeiro poema herói-cômico.
A muita convivência que, na qualidade de colega, com Macedo tivemos e a amizade que a ele nos ligava, nos permitiram quase que assistir à composição dos últimos dois cantos do seu poema ao qual, a pedido nosso, o autor decidiu dar uma cor mais americana na parte descritiva.
Lastimamos que não desse ainda mais desenvolvimento a este nosso pensamento quando, quase simplesmente, nomeia as frutas, etc.
A obra de Macedo ganhará, talvez de dia para dia, mais popularidade e, daqui a menos de um século, figurará no país e na literatura mais do que hoje. Nela nos legou o autor uma verdadeira imagem da sua maneira sincera de pensar em religião, em política, em proceder social e doméstico, em tudo finalmente. Nela nos apresentou um espelho do seu caráter que conciliava à profissão de princípios severíssimos, com um trato tão alegre e galhofeiro quanto lho consentiam as queixas que tinha contra a sorte que pouco o favorecera na carreira que abraçara. Essas queixas, reunidas à sua compleição débil, lhe quebrantaram a existência aos quarenta e dois anos de idade. Faleceu em Bruxelas, onde servia como representante do Brasil.

F. A. DE VARNHAGEN

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