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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

AUGUSTO SEVERO

EVOCAÇÃO A AUGUSTO SEVERO

Enélio Lima Petrovich,
presidente do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte


Na magnitude desta manhã tropical e votiva, cabe-nos, neste instante solene, evocar a memória de Augusto Severo de Albuquerque Maranhão, sintetizando a homenagem mais justa, mais sentimental e mais espontânea a esse mártir norte-riograndense, nascido em Macaíba, em 11 de janeiro de 1864, quando, nesta data de 12 de maio, comemora-se o centenário de seu encantamento, na velha e fascinante Paris, pelo idealismo que o levou ao pedestal da glória.

Augusto Severo de Albuquerque Maranhão

Sem dúvida, não poderia o nosso secular Instituto Histórico e Geográfico, com o apoio da Força Aérea Brasileira, aqui representada pelo Exmo. Sr. Coronel Aviador Luiz Antônio Rezende Lima e seus comandados, estudantes em geral, confrades, descendentes do herói, autoridades, ficar ausente às comemorações pelo evento histórico.
Daí estarmos reunidos nesta praça que tem o seu próprio nome, mirando a sua estátua.
Decerto, jamais devem ser olvidados, no presente, os feitos de nossos maiores, em prol da terra comum, à luz da liberdade, esta que para Victo Hugo, “tem as suas raízes no coração do povo, como as tem a árvore no coração da terra”.
Foi a conquista do espaço o ponto convergente do progresso internacional. Através dela, espargiram e se irradiaram as realizações no campo do desenvolvimento tecnológico, embora ensejando um misto de alegria e de temor, porque o homem às vezes procura ser o seu próprio lobo, na expressão de Hobbes, face a uma perspectiva de futuro incerto e duvidoso.
Mas, do ideal de Augusto Severo, na recordação do dirigível PAX- semi-rígido, até o 14-BIS, de Santos Dumont, cortam a amplitude do infinito, na contemporaneidade, os aviões supersônicos.
E tudo isso, na trajetória do tempo, oriunda da semente plantada em 12 de maio de 1902 - há cem anos, quando Augusto Severo subiu aos céus de PARIS, imortalizando o seu gesto heróico.
Augusto Severo - 4 anos antes da façanha de Santos Dumont - despontava com o seu invento. Indo morar na velha capital federal, sempre se preocupou com a navegação aérea.
Foi um dos talentos mais genéricos de seu tempo.
Gilberto Freire, sociólogo de renome, o cognominava “o grande romântico, figura esplêndida da aristocracia do Norte”.
O seu 1º balão, de 1893 - o Bartolomeu de Gusmão - antecipou-se ao Zepelin. Tanto que a 1ª viagem que o GRAF ZEPELIN fez ao Brasil, voou sobre Natal, em 28 de maio de 1930, e sacudiu uma corbeille de flores naturais sobre esta estátua. Nela continha os seguintes dizeres:

“Homenagem da Alemanha ao Brasil, na pessoa de seu filho Augusto Severo”.

Eis, portanto, a presença viva, imorredoura, desse vulto que engrandece não só o país, mas o mundo inteiro.
Nesta data, assim, 12 de maio de 2002 - cem anos de seu falecimento, exaltemos, também, a Força Aérea Brasileira e, à sua sombra, no correr do tempo, os avanços da modernidade e do progresso.
Se Augusto Severo, no discurso que proferiu na Câmara dos Deputados, em 1901, com a idade de 27 anos, fez justiça a Santos Dumont - Patrono da Aeronáutica - nos compete, nesta hora, em frente a sua estátua, render nosso preito de gratidão ao valoroso e intrépido norte-riograndense.
Ele soube, como raros, ser digno, solidário, corajoso e justo, graças ao seu bom senso e a sua genialidade.
Sigamos ainda a lição de Paulo Viveiros, que fora nosso mestre do Direito e da História, quando proclamou:

“A exemplo de Camarão e do Padre Miguelinho, o nome de Augusto Severo cobre e enche o Estado, através de gerações e é venerado como um grande filho do Rio Grande do Norte. Os jovens formam-se no respeito à sua pessoa, os aviadores perfilam-se perante a sua estátua e todos os anos, num dia como este, coberto o céu natalense de aviões em grupo, juntam-se estudantes e soldados, com o povo e as autoridades, na mais sincera homenagem ao brasileiro, sacrificado em Paris, onde, acima de qualquer lugar, honrou a sua pátria e enalteceu a sua geração”.

Também sobre ele, um outro Augusto, seu neto, não mais entre nós, assim nos confessou, em outubro de 1979:

“Eu volto ao tempo e penso em Severo, o homem e não apenas o cientista. Imagino seus sonhos, suas andanças pelas ruas de Paris, sua vida com Natália, seus papos nas cadeiras da calçada de um café, bebendo um  “rouge” e discutindo vida. Penso num Severo, como todos nós, amando, sofrendo, tendo dúvidas, vivendo finalmente.”

E nós acrescentamos:
Severo, realmente, foi um herói. Pobre, muitas vezes ridicularizado pela sua iniciativa, irmão de Pedro Velho - o primeiro governador republicano do Rio Grande do Norte, e de Alberto Maranhão, também governador - o mecenas da Cultura potiguar, nunca se abateu diante das críticas e, vencendo os obstáculos, tornou-se o pioneiro da aviação.
Esta, pois, a nossa reverência sentida e jubilosa a Augusto Severo, olhando, alegres e comovidos, a sua imagem, pela valorização da inteligência, da cultura e da fraternidade humana.
Pisando terra firme ou conquistando o espaço infindável, servimos, na lição e testemunho de Severo, à família e à pátria.
Aliás, Câmara Cascudo, genial e humilde, nos dá este depoimento;

“Na última vez que Severo esteve em Natal, passeou com Henrique Castriciano, no bairro de Petrópolis. E portanto para o leste, até os montes, disse que aquela era a pista de sua vinda. No alto, as muralhas do  “Forte dos Reis Magos, beijadas pela sombra do dirigível vitorioso.”

E arremata:
“Onde estiver o PAX está o Brasil. E se podemos evocá-lo no PAX, Augusto Severo era grande sem ele”.

Enfim, onde quer que estejamos, obscuros ou no ápide dos episódios que dignificam esta existência fugaz, não nos esqueçamos, de igual modo, do aviador, protótipo de bravura e de civismo, emergindo de seus corações e chama do dever, pelo amor ao Brasil.
No epílogo desta breve exaltação telúrica e emocional, in memoriam de Augusto Severo - no centenário de sua morte, dignitários que somos desta mensagem evocativa, em nome do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, também centenário, ainda recorremos ao poeta Gotardo Neto, no simbolismo e significado deste ato solene e singelo, para com ele repetir:

“Nobre vulto da pátria fecunda,
Alma feita das luzes do bem.”

E como no deslumbrante  exemplo de Fernão Capelo Gaivota, que não era um pássaro vulgar, Augusto Severo, à nossa frente, imortal, vive na lembrança de todos nós, pelos caminhos da História.
Vive nos céus do Brasil, em dimensões universais, sob as bênçãos de Deus.


_______________
Discurso proferido no dia 12 de maio de 2002 - centenário de falecimento de Augusto Severo, em frente à sua estátua, na Praça Augusto Severo, em Natal-RN.

domingo, 24 de julho de 2011

CORTEZ PEREIRA

EM DEFESA DO NORDESTE




Discurso do Deputado CORTEZ PEREIRA, representando o Rio Grande do Norte, no II CONGRESSO BRASILEIRO DE ASSEMBLÉIAS LEGISLATIVAS, realizado em Porto Alegre-RS, em 30 de outubro de 1961.


O SR. PRESIDENTE – Concedo a palavra ao nobre Deputado Cortez Pereira que falará em nome do Nordeste. O Deputado Cortez Pereira pertence à delegação do Estado do Rio Grande do Norte.
O SR. CORTEZ PEREIRA – Exmo. Sr. Presidente João Goulart, Exmo. Sr. Primeiro Ministro Tancredo Neves, Exmo. Sr. Governador do Estado, Leonel Brizola: Exmo. Sr. Presidente da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Justiça, Exmos. Srs. Ministros, Autoridades Civis, Religiosas e Militares, Srs. Congressistas.
O nordeste não me perdoaria se numa oportunidade com esta onde se encontra o Brasil, através do comparecimento das delegações de todos os recantos da pátria à face com as autoridades mais altamente responsáveis pelos destinos deste país, o Nordeste, não me perdoaria se aqui, eu viesse para não falar a sua linguagem característica, para não falar o seu dialeto, que não sei se é formado mais de palavras ou de gemidos, mas que escondem o sentimento mais íntimo, para não dizer o ressentimento mais doloroso. Falo em nome do Nordeste, esta vasta extensão de terra onde vivem morrendo 25.000.000 de brasileiros e constitui a mais vasta. A mais extensa região subdesenvolvida do hemisfério ocidental. Eu falo em nome do Nordeste, onde, o Sr. Presidente, a media de vida não vai em alguns Estados, além da idade de 30 anos e onde a mortalidade infantil não é um escândalo, por ser uma tragédia; onde as crianças parecem que nascem para morrerem crianças. (Palmas).
Nordeste esquecido e ressentido, Nordeste castigado pela calamidade da seca, seca que é muitas vezes uma queda na precipitação normal das chuvas, atingindo 90%, constituindo por esta característica no mundo uma originalidade que só se pode comparar às secas que existem no interior de Madagascar. Nordeste terra queimada, terra quase morta, onde vivem 70% dos homens, arrancando desta terra morte sua própria vida.
A economia do Nordeste é uma economia de regresso, quando muito da estagnação. Para que se tenha uma idéia, para que se compreenda o drama do Nordeste, basta lembrar que o período e a fase em que viveu mais intensamente, em que o rendimento “per capita” atingiu seus mais altos limites, foi nos fins do segundo século da colonização do Brasil. De lá pra cá, o andar do Nordeste tem sido sempre um andar pra trás, uma espécie de procura de abismo, uma espécie de destinação para a fome e, através da fome, para a morte. Nordeste que até 1900 teve sua economia inteiramente paralisada para que nestes últimos 50 anos encontrasse um estremeço de vida, através de avanços e recuos que exigem do Poder Público uma exata interpretação das causas e conseqüências.
Para que se tenha uma idéia de como tem regredido e como tem caminhado para trás, a nossa economia, basta que se diga que antes da guerra de 1939, nós do Nordeste, produzíamos 30% da renda bruta nacional, e hoje estamos reduzidos a menos de 10%; basta que se diga que, antes da guerra de 1939, nos produzíamos 18% da renda industrial e estamos reduzidos, hoje, a menos de 8%.
Acreditamos que uma complexa causação nos impõe essa realidade, realidade de uma região que só tem conseguido ser um mercado fornecedor de matéria prima, vivendo um regime de economia primária, criando produtos exportáveis sem termos capacidade de nos defender das esmagadoras leis do capitalismo internacional, que são as mesmas leis que estabelecem o ritmo de desenvolvimento e atraso de regiões como o Nordeste e o Centro Sul quando se encontram para o diálogo das transações.
Nós somos vítimas, não só da seca. Mais grave do que ela é este fenômeno econômico que nos vitima e condena a um atraso crescente. Somos vítimas da lei de concentração de capitais e riquezas. O Centro Sul ao alcançar o estágio da capitalização industrial passou a manter com o Nordeste um relacionamento econômico que o fortalece na proporção em que os enfraquecemos. São relações economicamente colonialistas.
Dizem os economistas que quando um sistema econômico qualquer alcança a fase de debilidade alcançada pelo Nordeste, institucionaliza-se, e qualquer processo de modificação é espontaneamente impossível. Diante dessa impossibilidade, temos só um caminho: esperar a intervenção do Poder Público para que se quebre o círculo vicioso que nos sufoca. Se o capital estrangeiro é impiedoso, mais ainda serão as meias-leis dentro da mesma pátria, dividindo-a. Isto porque, com a concentração dos capitais nos grandes centros, além de se processar a alienação de uma região em favor de outra, processa-se, ainda, o fluxo migratório em direção dos grandes centros. E, com esta vinda de nordestinos para os grandes centros, apenas não perdemos braços, mas braços mais jovens dos mais inteligentes e ousados. Os capitais que precariamente formam no Nordeste seguem também o rumo de seus filhos a procura de mais alto e estáveis multiplicadores.
E o que fez o Poder Público até hoje pelo Nordeste, além de plataformas, de discursos impressionantes, emocionais e inúteis? Não posso dizer que o Poder Público não tenha feito nada por ter feito muito, porém contra o Nordeste. Basta que se diga, Senhores Deputados, que o governo em 1947, quando fixou o preço do dólar, criando um verdadeiro imposto de exportação, através do denominado confisco cambial, o governo de então, condenou-nos a nós do Nordeste, produtores de matéria prima exportável, a termos de um prejuízo anual da ordem de vinte e cinco milhões de dólares, importando apenas quinze milhões.
Para que se pese o que representou a política cambial do governo federal contra o Nordeste, basta que se diga que só a Bahia exortava cento e setenta milhões de dólares, importando apenas quinze milhões.
Mas dirão com certeza: o Poder Público fez açudes no Nordeste. Realmente fez açudes no Nordeste, mas açudes não significam nada se só forem açudes, lâminas d’água exposta ao sol e cobrindo as poucas terras férteis da região. Barrar a passagem da água numa garganta de serra qualquer não representa coisa alguma se só for isto.
Os grandes açudes não têm significação se não forem complementados pela irrigação. (Palmas prolongadas).
O Poder Público construiu açudes no Nordeste armazenando 14 milhões de metros cúbicos. Admitindo a proporção internacionalmente aceita para as irrigações, eu direi: com 14 milhões de metros cúbicos armazenados em açudes, poderíamos ter cerca de 200.000 hectares de terras irrigadas com alta produtividade e diferentemente de 200.000 hectares o governo federal irrigou apenas 5.132 hectares, o que é escândalo de irracionalidade.
Daí, Sr. Presidente, Sr. Primeiro Ministro, a explicação porque a palavra do nordestino deve ser uma palavra diferente.
Talvez preferível fosse divagar procurando coisas amenas que o Nordeste também possui para não falar do seu drama, quase tragédia. Talvez devesse saudar a bravura do gaucho, mas entendi que o estômago com fome do nordestino impõe-me, neste instante, uma palavra carregada e marcada pela energia. (Palmas demoradas).
Nesta hora não podemos pensar em fazer poesia e se houvesse a imposição de fazê-la, haveríamos de cantar amargamente como o poeta, que viu o Nordeste como “uma paisagem sem folhas verdes, para o vento brincar, toda crivada de espinhos como a fronte de Jesus”.
O certo, todavia, é dizer objetivamente que no Nordeste temos açudes sem irrigação, que somos vítimas de um sistema de espoliação que poderá fomentar o problema mais grave e mais sério da unidade nacional. (Palmas prolongadas).
Ao Centro-Sul do país eu digo, e nome do Nordeste, nosso ressentimento e nossa mágoa não vos atinge. Não temos nenhum rancor, nenhum sentimento de revolta contra o Centro-Sul. Pelo contrário, aplaudimos o seu dinamismo. Registramos apenas, a existência de uma lei de sociologia econômica, que nos esmaga e, através deste registro, pedimos a intervenção do Poder Público, para que estanque as fontes que possam alimentar um grave sentimento de irmão contra irmão.
E por fim, a última palavra do Nordeste à terra que nos recebeu, à terra do rancho gaúcho, o rancho que nos abriga, pertence realmente a todos nós, o rancho é brasileiro. Nesta grande terra muitas e muitas vezes nos inspiramos, no seu povo muitas e muitas vezes aprendemos deste imenso Rio Grande, as grandes lições de bravura, de resistência e de heroísmo.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

JOAQUIM NABUCO

DISCURSO AOS ARTISTAS DO RECIFE NO CAMPO DAS PRINCESAS


A 29 de novembro de 1884

A

fração pequena, quase insignificante, do eleitorado das cidades, no Recife como na Bahia e no Rio.
Eu vejo que os candidatos contrários recomendam-se quase sempre ao comércio e à lavoura, como se neste país quem não tem negócio ou não possui terras não merecesse em eleições a honra de ser mesmo lembrado.

Joaquim Nabuco falando às multidões

Vós sabeis que, para eles, o comércio são os grandes negociantes de açúcar, e a lavoura não compreende os cultivadores, mas somente os proprietários do solo. Mesmo nas capitais não há recomendação igual à de candidato dessa aristocracia do comércio e da lavoura, dois aliados que em tempo de paz se detestam e não cessam de mostrar a má opinião que um tem do outro.
Pois bem, eu se pudesse, do eleitorado todo, invocar o auxílio de uma só classe e identificar-me com ela, não o faria nem com o comércio e a lavoura, poderosos pela sua riqueza e sua clientela, nem com os funcionários públicos, formidáveis pelo número, nem com os proprietários e os profissionais; fá-lo-ia com a mais insignificante de todas as parcelas do eleitorado – com os operários que vivem do seu trabalho de cada dia. (Aplausos.)
Eu sei bem que vós não pesais pelo número, e não influís pela fortuna, e, além disso, estais desarmados por falta de organização; mas, como na frase revolucionária de Sieyés, podeis desde já dizer: “O que é o operário? Nada. O que virá ele a ser? Tudo.” (Aplausos.) É que o futuro, a expansão, o crescimento do Brasil está em vós, depende de vós, e enquanto não fordes um elemento ativo, enérgico, preponderante, vós que sois a democracia nacional (aplausos), enquanto grandes correntes de idéias não vos moverem e não tiverdes consciência da vossa força, não teremos chegado ainda ao nível das nações emancipadas.
Comparado convosco, é imenso o número dos funcionários eleitores.
O funcionalismo afogaria o trabalho, mas quem não prefere estar identificado com os artistas a representar os funcionários? Entre nós o funcionalismo é uma doença, e doença mortal. Todos querem ser empregados públicos; artistas de talento estão prontos a deixar a oficina pela repartição.

Joaquim Nabuco, o abolicionista 

A esse respeito circulam as noções mais extravagantes e promessas escandalosas.
Como tive ocasião de dizer em Afogados, onde essas promessas, para quando o Partido Conservador subir, são oferecidas em maior escala ao aceite de eleitores necessitados e crédulos, se todo o mundo fosse empregado público cada qual teria que pagar a si mesmo o seu próprio ordenado...
Vós compreendeis que quem sustenta os empregados públicos são os produtores, os contribuintes: se o funcionalismo chegasse para quantos o procuram, o ordenado de cada empregado teria que sair da sua própria algibeira. (Riso aprobativo.) Mas nós temos um tão pequeno número de empregos disponíveis que é duro ver o jogo que se faz com eles para desmoralizar e corromper os que deviam viver do seu trabalho manual, os que deviam ser forçados às artes. Vós tendes interesse na barateza de todos os artigos e cômodos necessários à vida, e, portanto em que os impostos sejam brandos e não elevem os preços acima das vossas posses. O funcionalismo, pelo contrário, ou melhor, a empregomania só pode viver com um grande orçamento, grandes impostos e grandes déficits. No entanto, senhores, a representação dos artistas é quase nenhuma, e a dos funcionários públicos é enorme. Não serei eu, porém, quem se preste a desmoralizar as artes e as profissões mecânicas, prometendo empregos públicos e estimulando assim uma propensão nacional, que é uma forma da incapacidade moral para o trabalho e da inferioridade em que ele é tido, ambas efeitos da escravidão... e que efeitos! De que tristes, duradouras e multiformes conseqüências! Que terrível causa de atraso e de retrocesso!
É por isso que vos repito: se eu tivesse que escolher uma classe com a qual devesse identificar a minha candidatura, não procuraria nem os proprietários do solo a quem chamam – a lavoura; nem os descontadores de safras, a quem chamam – o comércio; nem os empregados públicos, que representam a enfermidade nacional por excelência; nem as profissões científicas, que formam uma aristocracia intelectual, grande demais para um povo tão deprimido como o nosso; escolheria, sim, o insignificante, o obscuro, o desprezado elemento operário, porque está nele o germe do futuro da nossa pátria; porque o trabalho manual, somente o trabalho manual, dá força, vida, dignidade a um povo, e a escravidão inspirou ao nosso um horror invencível por toda e qualquer espécie de trabalho em que ela algum dia empregou escravos. (Aplausos.)
Mais de uma vez tenho mostrado, nesta campanha, a simpatia que sinto pela principal classe de nossa comunhão, a que cultiva a terra, ou sem salário, como os escravos, ou sem garantia de ordem alguma, como os moradores livres do interior. Por uma série de circunstâncias serão precisos, talvez, 30 anos para se fazer compreender a essa classe, a qual é uma população, que ela também tem direitos. Vós, porém, artistas das cidades, não levareis todo esse tempo a adquirir a noção da vossa dignidade e dos vossos direitos, e em minha opinião não há neste momento medida mais urgente do que a de educar-vos para a posição que ocupais – não somente de cidadãos a cujo alcance a Constituição pôs todos os cargos públicos, mas também de classe chamada nada menos do que a salvar o país pela reabilitação do trabalho. (Aplausos.)
Para isso o primeiro passo é abolir a escravidão. Escravidão e trabalho repelem-se tanto como escravidão e liberdade. O que é a escravidão senão o roubo do trabalho e a degradação, desde o berço, do trabalhador?
O que é o senhor de escravos senão um patrão que reduziu a coisas, e possui como coisas os seus operários? Vede, bem, vós homens do trabalho, que a escravidão é um atentado contra vós mesmos! Além disso, o trabalho manual que existe em nosso país é quase todo de descendentes de escravos, de homens em cujo sangue cristalizou algum sofrimento de escravo. Ora, vós sabeis que a escravidão passa de geração em geração: que ela força os músculos da primeira, paralisa os movimentos voluntários da segunda, enerva o coração ou deprime o cérebro da terceira, e assim por diante. (Aplausos.)

Joaquim Nabuco, o pensador
A escravidão, a história natural o mostra, não é uma instituição exclusivamente humana. Há outra espécie animal que a adotou nas suas repúblicas subterrâneas: é a formiga. (Riso.) Pois bem, entre as formigas, como entre os homens, ela produz os mesmos efeitos. Os observadores das formigas descobriram que as espécies dentre elas que empregam escravos não podem sequer alimentar-se por si mesmas... Nesses pequenos animais, que são, entretanto, o símbolo da atividade incessante, a qual nada desanima, a escravidão produziu durante séculos esse mesmo efeito infalível: o de inabilitar os que se acostumaram a ela para viver sem socorro estranho... É assim nas sociedades humanas: os povos que vivem da escravidão não sabem, não podem trabalhar, e os povos que não trabalham vivem por favor alheio... (Aplausos.)
Eu sei bem que em tais condições, abolida a escravidão no Brasil, o organismo paralisado não adquiriria de repente a energia que levou gerações a consumir, mas, já que a salvação, única possível, está no trabalho, quanto antes começar a reação e quanto menos adiantada estiver a decomposição da vontade e da força, mais esperança haverá de que os efeitos da doença não sejam mortais...
Mas não é somente essa enervação que prejudica o desenvolvimento do trabalho já emancipado. É o estigma lançado sobre ele. Esse estigma precisa, não de anos, mas de séculos para apagar-se. Ainda hoje na Europa, em países mesmo onde a escravidão acabou na Idade Média, a causa de certos desprezos e inferioridades, de preconceitos e desigualdades, entre ramos diversos do trabalho, é um resto da escravidão sepultada entretanto sob profundas camadas sociais... Por muitas gerações ainda a nódoa infamante que a escravidão lançou sobre o trabalho em toda a América, e principalmente no Brasil, há de continuar a ser a maldição da nossa pátria. Mas, por isso mesmo, quanto antes revogarmos a condenação do trabalho manual, quanto antes ferirmos de morte o poder que a fulmina, mais cedo teremos libertado as classes operárias da inferioridade em que estão colocadas. (Aplausos.)
Vede, senhores, que passos agigantados vai dando essa repulsão pelo trabalho, conseqüência da escravidão. Já entre nós muitos preferem mendigar a trabalhar. A mendicidade, chaga dos governos despóticos e dos países congestos, começa a aparecer em nossas capitais. Em parte na aparência a mendicidade é de emprego, breve sê-lo-á exclusivamente de dinheiro.
Nessa mendicidade têm caído descendentes de antigas famílias, netos de morgados. Para a aristocracia, educada na escravidão, quando não hoje, gerações atrás, pedir é menos humilhante do que trabalhar. (Aplausos.)
Vós sabeis como as artes nasceram entre nós e que vida difícil elas têm tido. O seu nível pouco tem subido do que era no tempo colonial, a sua organização é ainda rudimentar. As altas tarifas necessárias para sustentar a fantasmagoria das nossas finanças não bastam para dar-lhes impulso, para habilitá-las a lutar com a indústria estrangeira. Os altos preços da vida, a falta de economia, a frouxidão dos princípios sociais, tudo opera para elevar o custo da mão-de-obra, e isto, junto a nenhuma educação mecânica do operário, impossibilita o que todos devêramos tanto desejar – a nacionalização das indústrias essenciais à vida.
Pensou-se muito tempo entre os artistas, mesmo do Recife, que a nacionalização do comércio a retalho produziria o milagre de espalhar entre eles a abundância. Não há maior erro. Qualquer restrição à liberdade de comércio só teria o efeito de arruinar este país. Seria uma desonra e uma calamidade, ainda que não fosse mais do que uma restrição ilusória.
Afastar o estrangeiro estabelecido, repelir o capital, criar um privilégio para alguns brasileiros à custa da comunhão toda, quem pensaria hoje em cometer tal suicídio? Mas a nacionalização do comércio não deixa de ser um ideal patriótico, uma vez que seja realizada naturalmente, por meio da livre concorrência, pela vitória da atividade, do espírito mercantil, da solidez do crédito, do comércio nacional. Assim também com as artes, nada mais patriótico do que todos concorrermos para que os artigos produzidos em nossas oficinas possam substituir e dispensar a importação estrangeira. Para este fim, senhores, estou pronto a promover todos os meios de proteção às artes que eu julgar legítimos e eqüitativos.
Começarei por dizer-vos francamente que não acredito na proteção das tarifas. Pelo nosso sistema tributário, que apoiando-se sobre as fraquezas psicológicas do nosso povo, sobre a ignorância e a covardia do contribuinte, o qual só paga impostos não sabendo quanto paga, os impostos do Brasil são na sua maior parte indiretos. Em tal sistema a tarifa é sempre protecionista, e a nossa está caminhando para ser proibitiva. Não creio que se pudesse mudar de repente a incidência geral da nossa taxação e recorrer a outros impostos, e por isso não pedirei que se tire às artes e indústrias nacionais a proteção de que já gozam, mas também não concorrerei para constituir monopólio e criar indústrias de falsificação tornando a tarifa proibitiva. Essa espécie de proteção é o roubo do pobre, e num país agrícola é um contra-senso. Não, senhores, não será elevando o preço de todos os produtos, tornando a vida mais cara, obrigando a população a pagar impostos exagerados a cada fabricante, que eu me hei de prestar a proteger as artes... A proteção que prometo reclamar é outra, e quase que toda indireta.
As indústrias a que devemos entregar-nos são as indústrias naturais do país, aquelas em que o estrangeiro não possa competir conosco, as que deixem ao produtor lucro razoável saído do produto mesmo e não da equivalência aos direitos da tarifa que obrigam o consumidor a pagar-lhe. Mas, senhores, criado o mercado de salário no país, aberta a terra ao pequeno cultivador, nascendo os centros locais, começando-se a destruir o estigma lançado sobre o trabalho, o progresso das artes acompanhará a transformação do país e elas crescerão com ele. (Aplausos.)
Do que vós precisais é principalmente de educação técnica, e, se eu entrar para a Câmara, tratarei de mostrar que os sacrifícios que temos feito para formar bacharéis e doutores devem agora cessar um pouco enquanto formamos artistas de todos os ofícios.(Aplausos repetidos.) É tempo de pensarmos na educação do operário de preferência à educação do bacharel. (Riso.) É tempo de cuidarmos do nosso povo, e pela minha parte pelo menos não pouparei esforços para que o Estado atenda a esse imenso interesse do qual ele parece nem ter consciência. (Aplausos.)
É essa a dupla proteção que vos prometo promover: a primeira, leis sociais que modifiquem as condições do trabalho, como ele se manifesta sob a escravidão, e façam da indústria nacional a concorrente vitoriosa da estrangeira em tudo que for seu legítimo domínio, e, a segunda, o que o Estado vos deve e tem tardado demais a vos dar: a educação de cidadãos e de artífices. (Aplausos.)
Mas vós também, pelo vosso lado, podeis ajudar-vos muito, unindo-vos, associando-vos. Não sois muitos, é certo, mas ligados um ao outro pelo espírito de classe e pelo orgulho de serdes os homens do trabalho, num país onde o trabalho ainda é malvisto, sereis mais fortes do que classes numerosas que não tiverem o mesmo sentimento da sua dignidade.
Vós sois a grande força do futuro, é preciso que tenhais consciência disso, e também de que o meio de desenvolver a nossa força é somente a associação.
Para aprender, para deliberar, para subir, é preciso que vos associeis. Fora da associação não tendes que ter esperança.
Amanhã, meus senhores, falarei ainda uma vez antes da eleição sobre a minha candidatura. Vós sabeis o alcance imenso que teria vosso pronunciamento a favor dela. Homens do trabalho, mostrai que a escravidão, se ainda possui as senzalas, já não possui as oficinas (aplausos); protestai contra esse poder implacável que tendo feito ouro com o sofrimento e a vida de trabalhadores, como vós, quer empregar esse ouro manchado de sangue em corromper o voto de homens livres. (Aplausos.) Há entre vós homens de cor, mas neles não haverá um só desses Judas que por 30 dinheiros vendeu a sua raça, a sua Mãe. (Aplausos.) Esse último ultraje da escravidão à dignidade humana não partirá de vós, artistas pernambucanos. Identificados com a causa da liberdade, o vosso voto será no dia 1o de dezembro, ao mesmo tempo uma petição e uma ordem ao Parlamento convocado, para que liberte, levante e proteja o trabalho em toda a extensão do país sem diferença de raças nem de ofícios...; a escravidão retardou de dois séculos a emancipação do proletariado nacional, mas hoje, que ele começa a pensar e a querer, é preciso que a sua primeira intimação aos poderes delegados seja a favor dos escravos, de cuja classe em sua maior pane ele saiu... (Aplausos.)
Sim, senhores, é preciso que as primeiras palavras desse proletariado, que hoje surge em nossa política, sejam de liberdade, de justiça e de igualdade, porque nenhum povo pode ser grande sem ser livre, feliz sem ser justo, unido sem ser igual. (Aplausos unânimes e repetidas aclamações.)

NABUCO, Joaquim. Campanha abolicionista no Recife: Eleições 1884. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005, p. 132-139.

JUSCELINO KUBITSCHEK

DOR NACIONAL: FALECIMENTO DE JUSCELINO KUBITSCHEK


Tancredo Neves
Câmara Federal. Sessão de 15-9-1976.


O
 SR. TANCREDO NEVES – Crescemos, fortalecemo-nos e nos dignificamos sempre na linha da generosidade cristã, no respeito do direito, no culto da liberdade, sem a qual as nações se transformam em imensos campos de concentração e os povos se estiolam no medo, na covardia e na mediocridade.
Com o advento da República, Rui Barbosa retoma os princípios fundamentais da nossa história. Com o seu gênio político, com o seu verbo potente e a intrepidez do seu caráter, incendeia a alma nacional contra os perigos da violência, contra as deformações da força e, sobretudo e principalmente, nos deixa a lição imortal, que penetrou a consciência da Nação e nela se cristalizou, dos tribunais íntegros e livres, da submissão à lei e, acima de tudo, do horror a todas as formas de tirania, que se extravasam sempre na intolerância, na opressão e no sangue.

JUSCELINO KUBITSCHEK

A Primeira República – e o afirmo sem nenhum demérito para os ilustres varões que a presidiram com honra e patriotismo – foi Rui Barbosa.
Quando ele morre, ela também se exaure e perece, extinguindo-se num melancólico crepúsculo de vil e apagada tristeza.
E rompe 1930, uma alvorada redentora, uma clarinada de fé e civismo, uma mensagem de esperança em todos os corações, trazendo, no bojo dos acontecimentos de um mundo convulsionado e em crise, a figura consular de Getúlio Vargas, que, com a fascinação de sua forte personalidade, haveria de dominar o cenário histórico do seu tempo.


O voto secreto e a Justiça Eleitoral, a Petrobras, Volta Redonda e Eletrobrás, a Força Expedicionária Brasileira e os seus feitos heróicos e, acima de tudo, a renovação social do Brasil são vigorosas e definitivas dimensões de cultura, força e grandeza que se acresceram ao patrimônio de nossa civilização.
Eclode a guerra, qual um dilúvio apocalíptico de sangue, fogo e ferro, como se fora um imenso e incansável Moloch, de fauces hiantes a devorar implacavelmente os valores de uma civilização perempta, que se avelhantara e se degenerara na impiedade, no egoísmo, na mentira e na injustiça.
Em meio a esse cataclismo gerado nos conflitos ideológicos, quando o mundo desarvorado parecia mergulhar, dilacerado, em meio da hecatombe, os numes tutelares da Pátria convocam Juscelino Kubitschek de Oliveira para comandar-lhe os destinos.
Não vou traçar a biografia esquematizada do grande brasileiro. Outros já o fizeram com a acuidade e o brilho de que eu não seria capaz, e muitos outros ainda o farão. Limitar-me-ei apenas a assinalar que de todas as etapas de sua existência irradia-se uma mensagem que enobrece e dignifica a vida: do menino pobre de Diamantina vem-nos a fé no futuro; do jovem que atravessava a madrugada sobre um aparelho telegráfico remonta a confiança no trabalho; do médico humanitário fica-nos o amor ao próximo, e, do estadista, a lição indelével da servidão cega à Constituição, da dignidade humana elevada à santidade de um dogma, do culto à liberdade, metamorfoseada em religião, que não se apostata impunemente.
Prefeito de Belo Horizonte, oprimido pela angústia dos recursos financeiros, supre, com imaginação e inteligência, a deficiência dos meios, fazendo da então apagada e obscura capital sertaneja, um centro de trabalho intenso, de estudos sérios e de desenvolvimento artístico.
A urbanização e o embelezamento da Pampulha, com a sua primorosa e pioneira igrejinha, são hoje expressões universais do poder criador de artistas desconhecidos na época, mas agora consagrados mundialmente, que atendem pelos nomes de Lúcio Costa, Portinari, Ceschiatti e Santa Rosa.
Era um novo Midas, transformando em ouro, ao toque do seu talento privilegiado, o cascalho duro e informe daquela cidade triste e desconfiada.
Governador de Minas, na sucessão dos dias, meses e anos, de um labor infindável, caracterizou-se pela nobre ambição de tudo fazer para eliminar e reduzir o sofrimento do povo, dando-lhe educação, hospitais, estradas e energia. Não postergou a tradição, mas a ela não se escravizou.
Revoluciona, renova, inova, constrói e destrói, conseguindo milagres verdadeiramente surpreendentes do seu binômio: energia e transporte. E de tal forma se houve no Palácio da Liberdade que o volume das suas realizações e as proporções extraordinárias da sua obra projetaram-no em todos os recantos do Brasil, que passou a ver no governo de Minas um homem público lúcido, presente e atuante, dos maiores do seu tempo.
A sua caminhada para o Catete foi uma epopéia, uma batalha sem tréguas, uma travessia desassombrada por terreno minado, que a qualquer outro teria desanimado, menos a ele, que possuía a fibra indomável de um gladiador.
A campanha que os adversários lhe impuseram foi das mais ásperas, duras e violentas. No rádio, na imprensa escrita, na televisão, nas tribunas parlamentares, nada lhe foi poupado. Não houve expediente, dos mais torpes aos mais desumanos, que não fosse posto em prática.
Era um deliberado acender de fogueiras. Vetos, cédula única, maioria absoluta, a intimidação do devassar impiedoso e inescrupuloso da sua intimidade, mas ele, nem mesmo no paroxismo da luta, quando mais cortantes eram as contumélias, mais contundentes as injúrias, mais infames as calúnias, se deixou atormentar pela paixão ou pela irascibilidade, não admitindo sequer pudesse perder a linha de sua elevada compostura; e, como aquele mar que Xerxes chicoteou, continuava imperturbável e impassível, tranquilo com a sua consciência, intimorato com o seu coração.
Todos nos lembramos dos primeiros dias do seu governo. O estado de sítio amortalhava a Nação, como medida extrema para conter o delírio dos inconformados e impedir a proliferação das maquinações do terrorismo impenitente. A Nação sangrando e dividida em campos nitidamente caracterizados. Crise econômica, crise política, crise militar.
Os mais otimistas vaticinavam: governo agitado, legalidade ameaçada.
Eis que se revela o estadista, em toda a sua plenitude, e o gênio político na força de sua capacidade. Os que nele esperavam vinditas e represálias se surpreendem e se decepcionam. Suspende, por iniciativa própria, no mesmo dia de sua posse, o estado de sítio, restaura as franquias legais, devolve à imprensa e aos veículos de comunicação os instrumentos da liberdade. Cinco anos de trabalho, de estabilidade, de prática ilesa da democracia. A paz interna, a prosperidade. Legislativo e Judiciário intocáveis na sua majestade, imprensa solta e o prestígio internacional que ele consegue, através do respeito inapelável à voz das urnas e da diuturna vigilância e zelo na observância do exercício do sagrado direito do homem.
Seria fastidioso descerrar as monumentais realizações de Juscelino Kubitschek de Oliveira na Presidência da República. E não apenas fastidioso, de todo desnecessário, porque elas estão gravadas, em letras de fogo e para sempre, na gratidão nacional. Mas não se pode falar de Juscelino Kubitschek de Oliveira sem falar de Brasília, o que seria uma omissão imperdoável.
Concepção nacionalista dos primórdios de nossa história, devaneio dos inconfidentes, visão alucinada do patriarca, sonho de inspiração divina de Dom Bosco, mandamento imperativo de todas as nossas Constituições, haveria de encontrar, no garimpeiro de Diamantina – sonhador temerário e ousado – as mãos ciclópicas para plantá-la e chantá-la nas regiões abandonadas no nosso Planalto Central, como âncora da nacionalidade, e lhe apontar permanentemente os horizontes sem fim da esperança.
Lutou e muito sofreu para construí-la. Teve de enfrentar pressões internas e externas, insuportáveis. Quando se viu só na sua determinação, apelou para o candango, em cujos músculos, como avatar, se alojara o arrojo dos bandeirantes. Já se disse que as catedrais medievais não teriam sido levantadas se a fé católica, viva e forte, não morasse no espírito dos seus obreiros.
De Brasília, parodiando, poder-se-á dizer o mesmo: ela teria sido um fracasso oceânico, um himalaia de frustrações, se o coração ardente do candango, com todas as suas veras não se sintonizassem com a fé, a coragem e a decisão de Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Brasília foi, no passado, o seu desafio, hoje é a sua afirmação e amanhã há de ser o marco eterno de sua glória.
Esta bela capital é o cadinho onde se acrisolam as esperanças mais puras da sua nacionalidade, a forja imensa onde se retemperam as energias da brasilidade, o mais alto monumento artístico de uma raça e o atestado inequívoco da determinação de um povo.
Cassaram-no, é verdade. Baniram-no da vida pública. Os vilipêndios que amarguraram os últimos anos de sua vida não o abateram, nem o diminuíram, ele cresceu no coração do povo. Na sua humildade cristã, ele encontrou a força da altivez e da honra para enfrentar e suplantar as maquinações do ódio.
Os interrogatórios inquisitoriais não demoliram o seu ânimo. As ameaças do terror não o amedrontaram. Mas no exílio ele se entibiou e sofreu. A saudade da Pátria distante e o pavor de que não pudesse mais revê-la angustiavam-no e penetravam no seu coração como uma agonia. De Nova Iorque, ele escreve a um amigo palavras ressumadas de dor e de sofrimento. Ouçamo-lo:
O dia de Natal amanheceu triste. São duas horas da tarde e a noite já cobriu a cidade; não se vêem senão as luzes florescentes dos carros e dos anúncios. Ontem tive surpresa comigo mesmo. À noite, por volta das sete horas, senti uma solidão mortal. Não conseguia atender a telefonemas sem quebrar a emoção, porque esta me impedia de falar. Uma tristeza pesada, bruta, dolorosa, invadiu-me.
Por que está acontecendo isto comigo? Nova Iorque é uma cidade construída de rinocerontes de aço. À noite há muita luz que sai dos olhos dos animais, mas que em nada altera o panorama da solidão.
O exílio é o preço que os grandes homens pagam para conseguir um lugar no coração da história. Eles são supliciados antes de serem glorificados, como há pouco na sua notável oração dizia, desta tribuna, o insigne colega brigadeiro Tinoco. Demóstenes o amargou por haver escrito a Oração da Coroa, o mais terrível libelo contra as tiranias e o liberticídio. Cícero, cuja cabeça decepada, colocada no rastro do jejum romano, ainda continua sendo o mais veemente prestígio contra os delitos da força e a insânia da truculência, também o padeceu. Napoleão, que traçou com a ponta da sua espada o mapa do mundo na sua época, encontrou em santa Helena os seus momentos de maior dignidade espiritual e a mais elevada sublimação de sua personalidade. Chateaubriand e Victor Hugo tiveram também de comungar a hóstia do ostracismo, mas em nenhum instante a sua imortalidade foi lesada.
Mas por que buscar tais exemplos em outras histórias e em outros povos, se temos entre nós não menos nobres nem menos belos? Exilados foram os Andradas, que nos deram a Independência. Pedro II, o mais conspícuo de todos os brasileiros, desterrado, morreu longe da Pátria, com o coração estraçalhado de ingratidões e a alma ulcerada de desenganos. O visconde de Ouro Preto e Silveira Martins cobriram-se de honras no degredo. Rui Barbosa e Epitácio Pessoa se avultaram em dignidade e heroísmo quando o preferiram a se acomodarem com o perjúrio da Constituição e o império da violência. Siqueira Campos, Washington Luiz, Otávio Mangabeira, Artur Bernardes, são constelações fulgurantes de civismo que na expatriação nos deram o exemplo de que todo o sacrifício é pequeno quando celebrado com ardor patriótico no altar da pátria.
O exílio era o toque que faltava para compor a imagem histórica de Juscelino Kubitschek de Oliveira; foi a moldura de ouro de sua radiosa personalidade e da sua permanente crença nos acontecimentos do seu tempo.
Sr. Presidente, Srs. Deputados; seja-me permitido, antes do término desta oração, que os sentimentos me vão ditando e que pronuncio por honrosa delegação da direção nacional do Movimento Democrático Brasileiro, que eu quebre, de leve, o protocolo solene desta magna e histórica sessão da Câmara dos Deputados para dirigir uma palavra à Exma. Sra. D. Sarah Kubitschek de Oliveira, que nestes dias tristes nos surpreende com as resistências espartanas do seu espírito. O preclaro Presidente Juscelino Kubitschek, estilista primoroso, como prosador e orador, nunca, ao que me conste, em qualquer fase de sua vida, buscou no ritmo e na rima a expressão de suas emoções. Sei, porém, que talvez o único verso da sua palavra ele o compôs para a sua consorte, incomparável companheira, no esplendor e no tormento, e o fez esculpir numa placa que em sua homenagem e reconhecimento do muito que dela recebera de encorajamento, ternura e amor, afixou na sua fazenda de Luziânia. É singelo e de emocionante beleza: “Solar de Dona Sarah, que, com exemplar dignidade, foi primeira-dama de Belo Horizonte, de Minas, do Brasil e é desta casa.”
Mais não se poderia dizer de dama tão ilustre, em cuja personalidade sedutora e harmoniosa se encastram todas as delicadezas de coração e a resistência inflexível do caráter da mulher brasileira.
Esta oração já vai longa e urge terminá-la.
Falando pela última vez no Senado da República, onde se orgulhava de representar o bravo Estado de Goiás, e quando dúvida já não mais havia da sua proscrição iminente, Juscelino Kubitschek de Oliveira sentenciou:
Mais uma vez tenho nas mãos a bandeira da democracia que me oferecem, neste momento em que, com ou sem direitos políticos,  prosseguirei na luta em favor do Brasil. Sei que nesta terra brasileira as tiranias não duram; que somos uma Nação humana penetrada pelo espírito de justiça. Homem do povo, levado ao poder sempre pela vontade do povo, adianto-me apenas ao sofrimento que o povo vai enfrentar nestas horas que já estão caindo sobre nós. Mas delas sairemos para a ressurreição de um novo dia, dia em que se restabelecerão a justiça e o respeito à pessoa humana.
Esse dia começou a alvorecer com a sua morte. Do fundo da tragédia, ele ainda conseguiu que a alma brasileira, inconformada e democrática, rompesse a reclusão e viesse para as ruas. Foi o seu último encontro com o povo, e esse encontro foi apoteótico, triunfal e consagrador.

O trágico fim
Assistimos à antecipação do seu julgamento histórico, sua entronização no Panteon da Pátria, um ato público apoteótico, solene e majestoso de revogação de todas as injustiças e agravos que os ódios e as paixões lhe irrogaram.
Ele foi um predestinado que soube cumprir com grandeza a sua missão. Ilustrou, enriqueceu e elevou a sua Pátria. Dignificou o povo.
Prestigiou e fortaleceu as nossas instituições livres. Preservou e opulentou o patrimônio dos nossos princípios sagrados. Sonhou, lutou e sofreu para reduzir entre nós a área dos miseráveis e apaziguar o espírito revoltado dos que têm fome e sede de justiça.
Outro assim, para repetir o vate andaluz, tardará muito a nascer. Diante de seu vulto, que a morte transfigura e ilumina, com os clarões da imortalidade elevando-o aos páramos onde se encontram os espíritos tutelares da Pátria, outras palavras não encontro, para encerrar esta oração, senão aquelas que o gênio de Shakespeare, na mais famosa de suas tragédias políticas, colocou nos lábios de Marco Antônio, diante do cadáver mutilado de César: Dos nobres era o mais nobre. A sua vida era pura. Os elementos que compunham o seu ser de tal forma nele se conjugavam, que a natureza inteira poderia levantar-se e bradar ao Universo: aqui está um Homem.

Do livro: Tancredo Neves. Lucilia de Almeida Neves Delgado (organização e ensaio introdutório). 2 ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2010, p. 485-491 (Série perfis parlamentares, n. 56).

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