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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

DOM NIVALDO MONTE

TRACOS DE SUA CULTURA

Hélio Galvão
Dom Nivaldo Monte

Para chegar até aqui, acolhendo com gratidão o convite, não foi pequeno o esforço nem menor a violência para vencer o desen­canto e o cansaço. Os anos que vivi já me permitem cantar o Nunc dimittis, esperando o dia do Senhor, que virá sem aviso prévio, como um ladrão, de noite (1 Tes 5,2).
Vai para três anos, me foi desferido o golpe, rude, brutal, inesperado, contundente como uma pedrada, violento quanto um raio. A esse impacto, o ânimo se me abateu, e se não afundei nas cavernas da depressão, é que me sustentou, amorosa, a mão do meu Deus, que desceu sobre mim. Et ponis super me manum tuam (S1 138, 5).
Outros terão passado pela mesma dolorosa experiência e terão reagido por outras maneiras. Não me envergonho de minhas fraquezas e ao peso da tragédia baixei a cabeça, em gesto de sub­missão, para aceitá-la. Fiat voluntas tua. Mergulhei num mar sem praias, e de mim se apoderou uma tristeza incurável. Fiquei desde então naquele estado de pecado, que Amado Nervo censurou em um dos seus poemas:

Viste, cantando, el traje que el Señor te viste,
Y no estés triste nunca, que es pecado estar triste.

Secou a caneta, criou ferrugem o teclado da máquina, en­torpeceram as mãos. Estancaram as fontes da inspiração e estiola­ram as faculdades criadoras, que dão espírito e vida à palavra e fazem vibrar as emoções, sem as quais toda obra intelectual perde o vigor, murcha e fenece.
Recolhi-me ao convívio da família desfalcada, e reunindo pedaços de resistência, ao estímulo de amizades que não faltaram, refugiei-me no silêncio da biblioteca, para extrair dos livros que juntei, a seiva que dá força à fragilidade destes restos de ida. Ainda Amado Nervo me vinha lembrar, em outros dos seus poemas:

Un rastro siempre adusto es un dia nublado
es un paisage lleno de hosquedad, es un libro
en idioma estranjero

Não. Não vim aqui para falar de mim. Venho falar do ou­tro. E o outro é um daqueles que veio para perto de mim na hora molhada, de lágrimas quentes e de amarguras incontidas. O outro é este que acaba ingressar no grêmio da Academia, entrando sem lhe forçar as portas, que alçaram os dintéis para dar-lhe passagem, larga e franca. E entra com credenciais muito legítimas, títulos muito autênticos, ornado de valores com que o agraciou a Provi­dência. Não os ornamentos litúrgicos do seu munus episcopal, mas aqueles outros adornos inapreciáveis do talento sem ostentações, da cultura para o momento oportuno, do saber para a hora adequada.

Dom Nivaldo Monte

A carreira eclesiástica abraçada com decisão por Nivaldo Monte, ainda nos anos verdes da juventude, iniciou-a no Seminá­rio de São Pedro. Prima tonsura, 17 maio 1956. Subdiaconato, 29 junho 1940. Diaconato, 15 agosto 1940. Ordenação, 12 janeiro 1941. Primeira missa no Colégio Imaculada Conceição, 14 janeiro 1941.
O mistério iniciou na Paróquia de São Gonçalo do Amarante (1941), depois na Paróquia de Goianinha (1942) onde fui encon­trá-lo ardendo em febre, e por algumas horas lhe servi de enfermeiro, no momento preciso em que chegava o irmão, o saudoso e querido Padre Monte. Assistente eclesiástico da Juventude-Feminina Cató­lica Brasileira de Natal (1944-1963) e do Secretariado Arquidioce­sano de Ação Social (1946-1957 e 1965-1966). Capelão do Abrigo Juvino Barreto (1945), Colégio Nossa Senhora das Neves (1947­1963), Secretário do Bispado (1959), Diretor Espiritual do Semi­nário de São Pedro. Monsenhor camareiro do Papa João XXIII (1959). Bispo Titular de Eluza, na Palestina, e Auxiliar do Arce­bispo de Aracaju, D. José Vicente Távora (25-04-1963), sagrado em Natal a 21 julho 1963, permanecendo na capital sergipana até 1965, quando foi designado Administrador Apostólico da Arqui­diocese e finalmente Arcebispo de Natal, nomeação de 20 de abril, posse a 9 de maio de 1965.
Seu brasão episcopal, cujos motivos heráldicos aproveitam sugestões do próprio nome (Nivaldo Monte) tem como lema mihi vivere Christus, tirado do célebre e denso versículo da teologia pau­lina, mihi enim vivere Christus est (Ef 1,21).
Professor de ensino médio e superior: Latim e Grego, no Se­minário de São Pedro; Psicologia Geral, História e Filosofia da Educação, na Escola Normal de Natal; Psicologia; na Escola Do­méstica e no Instituto de Ciências Humanas.
Conferencista, seu auditório não se circunscreve no Rio Grande do Norte, mas dilatou-se a outros horizontes. São Luis do Maranhão, Belo Horizonte até Viena, na Áustria, e Louvain, na Bélgica; abordando temas os mais variados: ‘Psicologia da Espiri­tualidade’, ‘Situação da Igreja no Nordeste’, Psicologia das Reli­giosas’, ‘Pastoral da vocação no Brasil, segundo a Conferência de Medellin e as diretrizes do Episcopado Brasileiro’, ‘Conceito de Relações Humanas’, etc.
Botânico, psicólogo, educador, poeta, compositor, cronista, es­critor, conferencista, jornalista, eis os traços da múltipla e poli­morfa cultura de Dom Nivaldo Monte. 
De sua vasta bibliografia, os títulos se destacam para reve­lar que foi na Psicologia o campo que mais lavrou. Esta tendên­cia, que se harmoniza com as exigências do sacerdócio ministerial, do magistério ensinante e do mister perigoso de diretor de consciên­cias, justificam a preferência do escritor, arando em campo intonso; onde as contribuições mais antigas estavam em desacordo com a evolução das técnicas de direção e a observação do comportamento humano no mundo em mudança, na civilização de um mundo mais curto pelas técnicas de comunicações, mas extremamente diversi­ficado nos problemas sociais e nas perspectivas pluralistas da política.
A área de sua atividade de escritor se situa principalmente na linha do sacerdote, que é também educador. Nesse contexto, po­dem ser incluídos alguns de seus livros como ‘Formação do Caráter’ estréia vitoriosa, destinado à formação da mocidade, escrito ‘com carinho e competência’, segundo o registro bibliográfico da Revista Eclesiástica Brasileira (26, pág. 184), já em 7ª edição e ainda ‘Os Temperamentos’, em 6ª edição, para educadores, ‘tão antigo e sério que conserva os prestigiosos quatro temperamentos e tão moderno e prático que os adaptou à ciência psicológica atual’ (REB, 20, pág. 561). ‘Formando para a Vida’, 7ª edição, e ‘Toda Palavra é Uma Semente’, 3ª edição, não se afastam da linha de pensamento do escritor. ‘Clima’ e ‘O Coração é para Amar’, sem se afastar daque­les temas, contêm mensagens ao leitor, que sente palpitar nestas páginas suas próprias aspirações (REB, 25, pág. 184). ‘A Dor’ é livro que retoma o velho tema do sofrimento, em pano de fundo iluminado pela fé. Pensamentos, edição esgotada, com reflexões em torno da problemática da mocidade.
Poeta e compositor, seu livro de poemas Se todos os homens... conhecessem o dom de Deus, está esgotado na única edição.
Sua curiosidade onímoda levou-o até aos segredos da Botâ­nica. A granja que fundou para seu recreio, hoje recreio do Clero ele a transformou em laboratório de experimentações, desde a en­xertia até a adaptação de plantas exóticas. Dessa experiência nas­ceram dois livros, inéditos, aguardando apenas oportunidade de publicação: ‘Experiência nos Tabuleiros do Rio Grande do Norte’ e ‘A Granja e eu’. Este eu o li, nos originais, por gentileza sua, e se agora, inconfidente, faço esta revelação, é para dizer que este livro é um hino em prosa, uma obra de fino lavor, trabalhado com amor e emoções vividas.
Recordo também - e aqui ainda sou levado à inconfidên­cia - do seu desgosto, quando o progresso e a tecnologia exigiram o sacrifício da sua granja, partindo-a ao meio. Ele viu então aque­las irmãs plantas que sua mão plantou, que seu carinho abonou e regou, cujo desenvolvimento acompanhou, cujas feridas de pra­gas curou, ele viu, sim, as irmãs plantas empurradas pela impiedade da máquina, arrancando-as como uma árvore bruta das matas, mortalmente feridas, as raízes expostas para o ar. O sacrifício das afeições mais caras ao deus implacável do Progresso.
Muitas vezes temos conversado sobre outras coisas, simples e gratas, porque além de outras, nossa amizade se firma na con­vergência desse amor franciscano pela natureza, obra também do mesmo Deus criador.
“Sou um homem ambivalente aparentemente contraditório. A alegria sempre foi uma meta na minha vida, mas sinto-me en­volvido por certa angústia no mistério. Enfim, sou esquisotímico” - foi como ele autodefiniu-se para Sanderson Negreiros (O Poti, 13.8.1967, pág. 5).
Ia esquecendo de dizer do seu bom gosto literário, na di­vulgação de alguns livros mestres. Foi por sua influência que o Pequeno Príncipe alcançou um número enorme de leitores em Natal, outro tanto acontecendo com a Montanha de Sete Patamares, o be­líssimo livro autobiográfico de Thomas Merton.
Algumas de suas poesias estão – transformadas em hinos e canções, como Barcarola, Cascatinha, Acalanto, Saudades da Serra. Iremos ouvir, pelo coral formado por muitos amigos, antigas alunas ou senhoras da antiga JEC, algumas que, por isto, deixam de ser incluídas no texto do discurso. Ele revela, traduzindo sua música: “As três canções por mim compostas guardam na sua melodia um tom marcial” (O Poti, cit)
Retomando o fio das palavras, interrompidas para este sur­preendente intervalo, recordo a tradição já antiga da presença de eclesiásticos nas Academias. Fundada por um Cardeal, a Academia Francesa, apenas no interrégno da Segunda República o Clero es­teve ausente, como durante o Reinado de Luís Filipe. Quando, porém, dissolvida pela Convenção, em 1793, aos dezesseis membros sobreviventes o Primeiro Cônsul acrescentou doze ao ordenar que fosse restaurada, dentre os quais cinco eclesiásticos: Mons. Roque­laure, Arcebispo de Malines; Mons. Boisgelin, Arcebispo de Tours e os padres Morellet, Sicard e Villars, futuro Arcebispo constitu­cional. Por suas lustres poltronas, uma delas ocupada por mais de um século somente por sacerdotes, passaram ate hoje grandes figuras da Igreja de França: Cardeal d'Estrées, Cardeal Mathieu, Cardeal Dubois, Cardeal Baudrillart, Cardeal Grente; Mons. Per­raud, bispo de Autun; Mons. Salvandy, bispo de Orleans; Mons. Chamillart, bispo de Senlis, padres como Dupanloup, Gatry, Bre­mond, Lacordaire, o verbo ardente e o corpo machucado nas mor­tificações, a grande voz da ortodoxia na crise provocada por Lam­menais. Ao todo - é um informe do Cardeal Grente - 131 ecle­siásticos, dos quais 17 cardeais e uma trintena de bispos e arcebis­pos (Eccelesia, nº 145, abril, 1961, págs. 91-104).
Na Academia Brasileira não se criou a tradição, apenas re­presentado o Clero por Dom Silverio Gomes Pimenta, Arcebispo de Mariana, e Dom Aquino Correia, Arcebispo de Cuiabá. Não sei porque lá não estiveram o Cardeal Sebastião Leme e o Cardeal Au­gusto Álvaro da Silva. Teria seguramente entrado um bispo emi­nente, cedo roubado à vida, Dom José Gaspar de A. Fonseca e Silva, Arcebispo de São Paulo, orador de inesgotáveis recursos, escritor de famoso talento, bispo de comprovada coragem pastoral.
A nossa, com o Padre Luís Monte, o Cônego José Adelino depois Bispo de Caicó, e agora com o primeiro Arcebispo, que é o mais novo acadêmico, irmão do primeiro, a cuja memória ren­demos culto fiel, firmou a tradição que não teve solução de conti­nuidade. Falta completar, com a convocação do Mons. Eymard Mon­teiro, um dos escritores mais fecundos da nossa pouco movimentada província literária.

Dom Nivaldo Monte

Senhor Acadêmico Nivaldo Monte: pela minha voz, apagada certamente, a que, entretanto, não falta o indispensável teor de jus­tiça, a Academia vos recebe e vos traz a sua saudação. Saudação que, se é uma praxe, ganha nesta noite outras ressonâncias, pelos altos valores que vos exornam na invulgar contribuição bibliográ­fica, na variedade de sugestões que vossa cultura suscita. Exercendo no nosso meio a difícil arte de ser bispo.nestes anos efervescência e adaptação, tendes demonstrado, na simplicidade cativante do homem, vossas exaltantes virtudes de pastor, dentre as quais a simplicidade governa as demais. Disse uma vez Claudel que ‘un bon moyen de connaítre l'âme est de regarder le corps’ (Oeuvres Completes, t XX, pág. 256).
Projeção da alma, o exterior se manifesta na simplicidade da vossa pessoa, na aliciante presença e na versatilidade de vossa arte de conversar. Nestes anos encrespados da renovação pós-conciliar, em que se chocam conservadores e moderados com renovadores e exaltados mudancistas, a política melhor é esta que vossa prudência de bispo põe em prática: não dizer que o bem é mau, nem que o mal é bom, como aos bispos adverte a Igreja na liturgia da sagração: ne dicas malum bonum nec bonum malum. A Igreja de Natal é um exem­plo de tranqüilidade em meio a crises e problemas. ‘L'Eglise est une societé qui se confesse et se reforme’ - disse o Cardeal Braud­ rillart (apud Claudel, Journal, I, pág. 173). A Igreja de Natal, sob vosso baculo, é esta igreja que se confessa e se reforma, aceitando os sinais dos tempos.
Esta é pois a saudação da Academia, que me fez a honra de delegar-me a função de seu intérprete nesta hora. Salutant tê qui mecum sunt omnes (Fm 13,15). Todos que estão comigo vós saúdam: boas vindas.


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Discurso de recepção na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, publicado na Revista daquela instituição, Ano XXV, nº 13, Natal-RN, novembro de 1977, págs. 123-128.

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