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terça-feira, 4 de outubro de 2011

HENRIQUE CASTRICIANO

ARTISTA INACABADO

Nilo Pereira

A memória, por mais fiel, não saberia reproduzir o meu primeiro encontro com Henrique Castriciano. Para nós estu­dantes, era sempre o homem chegado de alguma parte: ­Paris ou o Oriente. Parece-me revê-lo: lento, o ar distraído que era o da própria cidade que ele refletia. Quase tudo em que tocou, deixou inacabado, menos a Escola Doméstica, da qual já se disse que é o seu maior poema. Dele se poderia afirmar que soube construir as suas capelas imperfeitas. Imperfeitas no tempo: a perfeição estaria na arte do inacabado.


Que representava ele na vida cultural do Rio Grande do Norte? Era nessa orografia literária o ponto culminante. Otacílio Alecrim, que tanto o admirou, dedicou-lhe o seu livro ENSAIOS DE LITERATURA E DE FILOSOFIA’ (1955).
No Prefácio logo o associa a Noiré e a Kant: - era uma de­corrência lógica, acentua o escritor. Não esquece que as QUESTÕES VIGENTES, de Tobias Barreto, são o seu livro preferido, conforme confissão pessoal. E, no entanto, era um contemplativo. Sobre o Jordão, por exemplo, um doce misticismo lhe invade a alma. A página que não se perdeu, graças a Waldemar de Sá, escrita no Álbum de Madalena Antunes Pereira, está publicada no ‘Boletim Universitário’, da UFRN, janeiro/março de 1966. É um canto de quem volta a si mesmo; uma liturgia do poeta itinerante, que tem ali a lembrança feliz da sua vida.
O Jordão não é o Letes. Ali é para lembrar; não para esquecer. Impossível falar sobre Henrique depois que Luiz da Câmara Cascudo publicou o seu livro NOSSO AMIGO CASTRICIANO, Recife, Imprensa Universitária, 1965, que tive a honra de prefaciar. O que cabem, agora, são recor­dações pessoais, as nossas capelas imperfeitas pela ânsia de não atingirmos o modelo de uma geração romântica e par­nasiana, o grande poeta cujo centenário estamos cele­brando.
Não sei de intelectual que, mais do que Henrique Castriciano, tenha cultivado a solidão. Não nos podíamos aproximar dele tão facilmente quanto de Cascudo ou do Padre Luiz Gonzaga do Monte. Henrique era a leitura solitária. Vi-o no seu universo estético, a mesa atulhada de livros, revistas francesas, jornais. Movia-se lentamente. Também foi assim em Lousanne, conta o irmão Eloy: no seu quarto estava a maior livraria de viajante e doente que José Vieira havia visto. A impressão era a de que, curado, temia a Dona Branca, embora não a tenha cultivado em versos como Manuel Bandeira.
Nesse ambiente estava o sonhador. Creio que será certo dizer que Henrique sonhou a vida toda, sem ter conseguido, talvez por temperamento, concretizar tudo quanto havia imaginado. O inacabado é nele uma maneira de acabar, isto é, de não prosseguir.
Depois da Escola Doméstica tudo o mais lhe viria por acréscimo. E quedou-se contemplativo. Nem escreveria o seu tão anunciado livro sobre Nísia Floresta Brasileira Augusta nem completaria o seu romance OS MORTOS. Semeava, mas nem sempre colhia. Outros levaram por diante alguns dos seus planos. Homem sem pressa, via o mundo marchar. Co­locado entre dois séculos, seria uma síntese do liberalismo já esgotado. Nós todos sabíamos que ele era essa história vi­vida em tantas dimensões quantas o espírito humano pudesse ter. Mas suas janelas estavam fechadas. Lá dentro meditava o monge. Não se entregava logo à conversa fácil e arrebatada. Talvez fosse melhor segui-lo na rua do que procurá-lo em casa. E, contudo, havia nele uma imensa do­çura. O poeta olhava o mundo do seu recanto. E sua alma lúcida penetrava nos segredos da vida. Em torno dele as ge­rações viviam a sua perplexidade. Ele sentia isso. Mas era humilde. Nunca se fez de mestre; e valia por uma Univer­sidade. Ainda assim, não sabia os alunos que tinha.

O MÍSTICO DE LAUSANNE

Falar em Henrique Castriciano é, segundo Otací1io Alecrim, fugir ao político, que ele não foi, para considerar o ‘clérigo’, o intelectual puro. No artigo publicado no ‘Diário de Pernambuco’ de 15 de agosto de 1933, intitulado ‘Re­descoberta do Místico de Lausana’, Alecrim se refere a uma revista argentina que, fazendo um registro sobre as ‘Me­mórias’ do Sr. Muret, alude a Castriciano. O artigo fere de frente o velho problema da dissociação entre o escritor e a política. É o que o articulista chama o fenômeno da ‘clericatura’, lembrando a linguagem de Julien Benda, em TRAHISON DES CLERCS. Essa dissociação - observa Ota­cílio - levou Henrique a não ser político: não o permitiam os modelos do tempo.
O ‘místico de Lausanne’ se refugia na literatura. Não podia ser político - salienta o articulista e ensaísta - quem tanto se batera pela inteligência pura, como um ‘clérigo’ fiel, quem fundara a Liga do Ensino e a Escola Doméstica; quem escrevera - é ainda Alecrim quem o registra - aque­les capítulos do romance OS MORTOS, debatendo problemas da cultura moderna. Mas isso não nos levará a esquecer a sua figura barroca de Vice-Governador do Estado, um clás­sico da política sem o gosto da cena. Desengonçado na sua maneira de ser homem como que desajustado a si mesmo, se bem que tão provinciano quanto universal. Um outro Quixote gordo, como chamou Gilberto Freyre a Oliveira Lima, outro amigo de Henrique, por ele levado ao alto de Petrópolis para ver o encontro talássico do mar com o rio, como Nabuco levara Ramalho Ortigão ao alto da Sé, em Olinda, para ter a mesma impressão. E já que se fala em Nabuco, venha a influência de Renan no nosso escritor, recolhido ao seu ascetismo filosófico, em busca do estilo, que é o seu feitiço.

O FIEL DISCÍPULO

Henrique Castriciano foi talvez o mais fiel discípulo, que Renan teve no Brasil. Nem Joaquim Nabuco, que, em MINHA FORMAÇAO, confessa tão rasgadamente a influência que recebeu do escritor francês, pôde manter essa fidelidade de maneira tão liturgicamente castriciana. Nabuco voltou à Fé, em Brompton. Seu livro FOI VOLULUE – MYSTERIUM FIDEI, editado pela Universidade de Provence, 1971, - é a história desse retorno. Havia nisso, ainda uma vez, o que ele chamou ‘a saudade do escravo’. Foi nas litanias dos es­cravos, na senzala, em Massangana, que ele ouviu o canto sagrado evolando-se para o céu em preces de ternura africana.
Cascudo surpreendeu Henrique recitando a ‘Oração na Acrópole’, de Renan. Tudo faz crer que, em Renan, não era o filósofo que ele procurava, nem o historiador de Jesus: era o estilo. O feitiço da frase. Era aquele a quem Nabuco chamou ‘o bicho de seda da prosa francesa’. Sua admiração seria estética; mas é impossível compre­ender Henrique fora desse ângulo e dessa influência literá­ria, que à humanização de Jesus - sutilmente tentada por Ernesto Renan - acrescentava o esteticismo da construção. Não se concluiria daí que o escritor norte-riograndense se deixasse arrastar todo inteiro pelo mestre da prosa, a quem o neto Psichari daria mais tarde a resposta quando fixasse, num agudo momento da vida francesa, as linhas mestras da Igreja, que Renan abandonara.
Dando a impressão de ser um eclético, não adotando uma filosofia que fosse a de guias indiscutíveis, pois que preservava a sua liberdade de espírito pela maneira como entendia que devia preservá-la, não seria um descrente, em­bora fosse um cético.
Na ‘Revista do Rio Grande do Norte’, do Centro Poli­mático, Natal, julho, nº 17, em artigo intitulado ‘Um Sinal da Época’, Henrique se ocupa da Questão Religiosa. Estra­nho assunto, talvez, num homem sem essa preocupação, a menos que, dentro das conotações renanianas, o motivo fosse oportuno para alguma dissertação (aliás, Henrique não era dado às dissertações) contra a Igreja. Sobre Dom Vital escreve o eminente escritor:
“Seja como for, D. Vital ficou sendo uma das figuras mais salientes do clero brasileiro, arquétipo raro de combatente abroquelado na fé e no dogma.
“Teve a coragem de suas convicções: respeitamos-lhe a memória”.
Era sobretudo pela coragem das convicções que Hen­rique admirava o bispo de Olinda. Porque quanto à sua posição, também eram claras as suas palavras, como a reclamar do Catolicismo figuras que enchessem o mundo da cultura, da ciência e da arte. Eis o que ele diz: - “Que me apresentem, na Europa, um Spencer, de batina, e, no Bra­sil, um Tobias Barreto calçando botinas de fivelas de prata ou usando colarinhos rendados”.
Aí Spencer e Tobias ocupam o universo castriciano da cultura e do saber. Tudo muito de acordo com a interpretação de Otacílio Alecrim, inclusive quando alude à admi­ração que Henrique tinha pela chamada Escola do Recife, embora fosse ele bacharel, na época, estranhamente de For­taleza e do Rio de Janeiro, e não do Recife, para cuja Fa­culdade acorriam os jovens do Rio Grande do Norte.


Nada abalaria no seu espírito o culto de Renan. E, to­davia, vale a pena lembrar, um escritor do seu tempo Graça Aranha - no seu livro A ESTÉTICA DA VIDA - ­escreveu estas palavras quase contundentes: - “Renan não foi um pensador do seu tempo e por isso não foi respeitado pelo tempo”. Termina vendo nele “uma mistura de enci­clopedista e humanista do século XVIII”. Enquanto isso Graça Aranha aponta como figuras imorredouras Platão, Tomás de Aquino, Descartes ou Spinoza.
Henrique não teria posto Renan nesse enfoque, como se diz hoje. O estilo do “bicho de seda” estava na raiz do seu artesanato estético. E bastava. Sem essa explicação, o prosador não alcança as dimensões intelectuais do seu gosto provinciano de ser universal. Era para a Província que trazia todo o seu entusiasmo criador, sua intuição em cer­tos casos bergsoniana, sua capacidade de refletir sobre pro­blemas do mundo sem esquecer as coisas miúdas do coti­diano. Dentro dessa perspectiva de esteta, não se podia esperar que ele fosse um político, como o irmão Eloy, nem um poeta como a irmã Auta, em quem a meditação da vida - como salientou Jackson de Figueiredo - era o caminho do que então tanto se chamou a Poesia em Cristo.
Para ele, essencialmente um poeta, a vida carecia duma fuga estética, à procura da beleza universal, que tanto pode estar no mármore da sua estátua, que fala sem precisar que o criador, como Miguel Ângelo, a mandasse falar, como no aboio, que é uma orquestração de sofrimentos humanos, ou em tudo quanto a arte tenha produzido em qualquer tempo onde o homem tenha posto o sinal indelével do seu gênio. E à semelhança do grande poeta Jorge Fernandes - que Veríssimo de Melo nos trouxe de volta ­ele, o poeta, o Henrique tão sensível à beleza das coisas, podia exclamar: ­

Que linda manhã parnasiana...
Que vontade de escrever versos metrificados,
Contadinhos nos dedos...

Caminhando, silencioso, pela cidade, como que trazia consigo o peso do mundo. E pensava em tudo: em Renan como em Itajubá. No que diziam as revistas francesas ou no que podia dizer - e porque não? - a do Centro Polimático, ou ‘A República’, que era uma escola de escritores, de jornalistas, de poetas, de políticos, revivida com excepcional brilho no governo Juvenal Lamartine.

O ARTISTA

Henrique Castriciano, nascido na então vila de Macaí­ba em 15 de março de 1874, está em Natal em 1891. Era ‘xaria’. Foi na antiga Rua dos Tocos que o visitei. Ali es­tava o mundo dos seus livros dispersos. Bem que se podia colocar na atual Rua Princesa Isabel, que era a dos Tocos, uma placa indicando a casa onde residiu o poeta. Aos dezessete anos foi convidado por Pedro Velho para escrever n‘A República’. Não sei quem mais teria essa glória nessa ida­de. Em 1892 publica pela Tipografia do Governo seu livro de versos IRIAÇÕES, ‘versos de menino-grande’, escreve Cascudo. O poeta tem dezoito anos. Iniciava uma carreira que ia mostrando seu talento e lhe abria um horizonte que poucos viram tão cedo rasgar-se à inquietação intelectual. Em Fortaleza, 1898, publica RUINAS. No dia 28 de março de 1897 ‘A Republica’ estampa o seu famoso poema ‘A Es­tátua’, que revela o cinzelado esplendido do verso: o mármore estremece e vibra e fala à medida que o poeta lhe infunde uma alma. Em Natal publica VIBRAÇÕES, prefácio de Clóvis Beviláqua: são versos de 1894 a 1903.
América de Oliveira Costa, no seu livro VIAGEM AO UNIVERSO DE CAMARA CASCUDO, prêmio nacional da Fundação José Augusto, Natal, 1969, registrando valiosas pesquisas feitas pelo escritor Hélio Galvão, assinala, entre outras, uma carta de Graça Aranha a Henrique, datada de Lausanne, 5/12/1911, na qual diz que Nabuco leu com muito prazer, e em voz alta para mim, os primeiros versos de suas ‘Vibrações’. O testemunho não podia ser mais consagrador.
Em 24 de março de 1904, quando da inauguração do Teatro ‘Carlos Gomes’, foi representada por crianças a peça de Henrique Castriciano ‘A Promessa’. N‘A Republi­ca’, de 9 de junho de 1904, o poeta publicava o seu famoso poema ‘O Aboio’. Depois desse poema, que é duma bele­za virgiliana, Castriciano podia considerar-se consagrado. Muitas outras publicações - iniciadas, mas sempre inter­rompidas - dão ao crítico, ao exegeta, a medida desse ar­tista que encontrava no verso o modelo por excelência da sua estesia literária.
Antes de qualquer análise da sua Poesia, não será des­cabido voltar ao ambiente em que Henrique Castriciano ia realizando a sua obra de escritor, de jornalista e de poeta. Natal era a cidade quieta, lírica, sonhadora, que por largo tempo permaneceu assim, lembrada em noite memorável nesta Academia por Peregrino Júnior e Paulo Pinheiro de Viveiros, quando o primeiro tomou posse na cadeira com que tanto nos honrou. Era a cidade do bondezinho do Tirol, recordada por Lauro Pinto.
Na imprensa, como acentua Polycarpo Feitosa, no seu livro QUASE ROMANCE/QUASE MEMÓRIA, pesquisa e introdução de M. Rodrigues de Melo, Imprensa Oficial. Na­tal, 1967, predominava o editorial. Era ‘A própria essência do jornal’, diz o memorialista. Henrique jamais seria o edi­torialista, como foi o irmão Eloy, mestre do jornalismo. O jornal seria para ele o meio de ir publicando poemas. Ou ‘Cartas Holandesas’, que são uma crítica, por vezes, à ma­neira errada como construíram a cidade: ela devia ter nas­cido do outro lado do Potengy, como diria no seu ensaio sobre Lourival Açucena. Essa cidade idílica, por onde tam­bém passeio as minhas recordações de estudante, encantava Castriciano. Disse-me uma vez: - “Nenhuma cidade mais bela no mundo do que Natal”. – É possível que a cidade enfeitiçada pelo seu ar romântico tenha influído para que Henrique Castriciano fosse, a seu modo, um romântico por dentro e um parnasiano por fora, um homem, como Rousseau, de passeios solitários.


Que vamos encontrar na poesia de Henrique? Não sei se me engano mas acredito que o seu ‘élan’ poético de inspi­ração por vezes grega, como a de Bilac, é um trabalho de artesanato literário. Nisso ele é um ourives pronto sempre a dar-nos a jóia completa. Mas não bastaria ao trabalhador do verso a filigrana de ouro. É necessário o que Carlos Drummond de Andrade chamou ‘o sentimento do mundo’. Penso muito no privilégio de ser poeta. Para mim ninguém resumiu melhor esse dom - tantas vezes realçado por Alceu Amoroso Lima como uma graça divina - do que o meu sau­doso amigo, o grande poeta Jorge de Lima, quando disse num poema que imortaliza os poetas:

Alta noite, quando escreveis um poema qualquer
sem sentirdes o que escreveis,
olhai vossa mão - que vossa mão não vos pertence mais;
olhai como parece uma asa que viesse de longe.
Olhai a luz que de momento a momento
Sai entre seus dedos recurvos.
Olhai a Grande Mão que sobre ela se abate
e a faz deslizar sobre o papel estreito,
com o clamor silencioso da sabedoria,
com a suavidade do Céu
ou com a dureza do inferno!
Se não credes, tocai com a outra mão inativa
as chagas da Mão que escreve.

No seu grande poema ‘A Estátua’, que é o mármore humanizado, há um momento em que ele pergunta:

Sinto desejos de rezar, enquanto
O ângelus repercute nas encostas...
Tem compaixão, tem pena do meu pranto
Por que não me fizeste de mãos postas?

Esse segredo das mãos, Henrique põe na sua estátua, eternizando um gesto que seria talvez o seu sentimento íntimo.
O fino esteta, que tem como modelo nem sempre alcançado pela poesia brasileira o soneto ‘Sonho grego’, dedicado a Sebastião Fernandes, outro ourives do verso, um quase dionisíaco da frase, o mesmo que escreve o poema rural ‘O Aboio’, cuja beleza nativa, telúrica, talvez não seja igualada por quem quer que tenha tratado das dores e ansiedades da nossa gente sertaneja.
O canto vem da alma do povo:

Ah! Como é triste o aboio!
Ah, como é triste o canto
Sem palavras - tão vago! - a saudade exprimindo
Das selvas do sertão, no mês de junho rindo
Pelos olhos azuis das crianças, enquanto
No tamarindo verde, asas abertas, trina
A beira dos currais, o galo de campina!

E mais adiante:

É isso o que nos diz, às horas da Trindade,
A voz do sertanejo, ansiando de saudade,
Nessa triste canção, doce como uma prece,
Cuja letra ninguém advinha ou conhece,
Mas cujo pensamento, ungido de emoção,
Se coubesse num ritmo, era o do coração.

Que é o aboio? Diga-o Manuel de Oliveira Paiva, no seu romance DONA GUIDINHA DO POÇO:

"E entrou a aboiar, trepado na porteira. Ao som pro­longado e continuo o gado punha-se à escuta. O jovem ergue-se da rede. Produzia-lhe aquilo um 'vivo efeito, verda­deiro gozo poético. A voz do vaqueiro serpeava como o rio, e tinha como estes marulhos e frescura. Sussurrava como as árvores, e lembrava o cheiro acre e a salutar monotonia do verde. Ia indefinidamente, cálida e aguda, como um raio de sol, e retraia-se como o sol quando passa uma nuvem. Parou, depois recomeçou.
“No jovem civilizado vinha à tona com aquela toada rústica, a nostalgia do bárbaro e do selvagem. O homem primitivo lhe emergia de dentro, lá se ia o cérebro rumi­nando fantasias imensas com o tempo, em mundo de delei­tes, num torpor de sonho”.

O quadro rural dava ao poeta uma força criadora, como se tivesse diante de si motivos outros de que se serviu sem­pre - o mar, por exemplo - ou essa obra-prima de arte poética, que é o ‘Monólogo de um Bisturi’: ­

Primeiro o coração. Rasguemo-lo. Suponho
Que esta mulher amou: tudo está indicando
Que morreu por alguém, este ser miserando,
Misto de Treva e Sol, de Maldade e de Sonho.

Isto não me comove: adiante! Risonho
Fere, nevado gume! E, ferindo e cortando,
Aço, mostra que tudo é lama e nada, quando
Sobre os homens desaba o destino medonho. . .

Fere esse braço grego! E as pomas cor de neve!
E as linhas senhoris que a pena não descreve!
E as delicadas mãos que o pó vai dissolver!

Mas poupa o ventre nu, onde repousa um feto;
Por que hás de macular o sono fundo e quieto
Desse verme feliz que morreu sem nascer?

No livro citado informa Américo de Oliveira Costa que alguns poemas de VIBRAÇÕES foram traduzidos e publi­cados na ‘Littératura Brésilienne’, de Victor Orban, na Antologia sueca de Goran Bjorkmann, da Universidade de Estocolmo. Essa dimensão universal do poeta não causa admiração. Henrique diria a Aldo Fernandes em Goianinha - conforme relata Cascudo - que, tendo de fazer um levantamento econômico-estatístico para uma autarquia federal, exclamava como a libertar-se desse estranho peso: ­Sou apenas poeta!
E dizia tudo. Fazia o seu próprio retrato. E fazia-o na melhor ocasião: fora da moldura.       
Compreenderia como ninguém a - poesia da irmã. Na ‘Nota’ que escreveu para o HORTO terminaria assim: ­“A tormenta se desfizera ao pé do túmulo; e do naufrágio em que se abismou esta singular existência resta o Horto, livro de uma santa”. Livro mais do que duma poetisa: livro de uma santa.
O artista não chegaria a esse grau de perfeição inte­rior. Seria, porém, maior do que a irmã na forma do verso, no artesanato literário, na ânsia estética - que em Auta era metafísica - de atingir a beleza e a profundidade das coisas, o doloroso sentido da vida.
A irmã estaria sempre presente ao artista inacabado. Na página que escreveu no Álbum de Madalena Antunes Pereira, sexta-feira Santa de 1915, hoje indispensável ao conhecimento do poeta e do homem, ele diz: - ‘Enfim, encontro de novo o coração da minha mocidade extinta, desfeita em milhares de versos dolorosos’. - Nada mais autobiográfico. E mais adiante:
“Eis-nos sobre o Jordão. Instintivamente, calados e pensativos, no êxtase do dia agonizante. Faz-se-me no pensamento inexplicável acuidade. Vejo toda minha vida, a casa onde nasci, os lugares da infância, o sertão, as dunas das praias do Norte e em tudo, como Vesper, a estrela soli­tária, mesmo quando o firmamento está coberto de estrelas, o perfil magoado da irmã desaparecida na morte”.
Oliveira Lima compreendeu muito bem essa influência da irmã sobre o irmão. Quando, em 1919, veio pronunciar em Natal o seu discurso de paraninfo, convidado e eleito por sufrágio feminino, como gostava de salientar, pela pri­meira turma concluinte da Escola Doméstica, viu nessa criação henriquina, que é um orgulho pioneiro do Rio Grande do Norte, a influência, ainda que discreta, da irmã do grande educador que se revelou então, Henrique Castriciano. E disse no seu discurso: 
“Sobre esta instituição paira a memória de um espírito gentil que cedo em demasia se desprendeu da terra e cujo influxo poético, emanado da região misteriosa onde se de­vem congregar as almas associadas pela comunidade de sentimentos e pela afinidade dos sonhos, deve ter inspira­do o Dr. Henrique Castriciano na sua generosa concepção”.
Artista inacabado, não terminaria o seu romance OS MORTOS, do qual publicou apenas dois capítulos na Re­vista do Centro Polimático. Nem escreveria o seu livro o sonho da sua vida - sobre Nísia Floresta Brasileira Augusta. O artigo que a respeito da escritora norte-riograndense publicou no Livro do Centenário do ‘Diário de Pernam­buco’, 1925, nem de longe corresponde ao que seria de es­perar dele. Dizendo em carta a Jayme Adour da Câmara, que vinha para Natal escrever o NÍSIA - como chama­va - apenas traçava um plano. Sua Nísia era a européia, a mulher de talento extraviada na Europa. A outra, a bra­sileira augusta, é a de Adauto da Câmara, da qual o sau­doso escritor e homem público nos deu uma biografia crí­tica do mais alto interesse.
Por que Henrique ficaria sempre assim ao meio do ca­minho? Só a Escola Doméstica o tomou todo inteiro numa iniciativa arrojada que se concretizou na maior realidade educacional do seu tempo, no Brasil. Talvez ele tivesse a ânsia da perfeição. E isso - quem sabe? - o detivesse para ir e vir, meditar, refundir, começar de novo, mudar de rumo, insatisfeito sempre.
Talvez nunca achasse que tudo estava perfeito e aca­bado. Daí não ter deixado uma obra que fosse a afirmação toda do seu enorme talento. Temperamento reflexivo, o ‘filósofo’, como o chamavam, andava apenas à cata da Be­leza, como um caçador de símbolos e de magias.
Esse mágico às vezes surpreende. Não se considerava mais do que um poeta. E, no entanto, o seu Relatório sobre o vale do Ceará-Mirim, que, como Secretário do Governo, apresentou ao Governador - do Estado em 1º de junho de 1907, é um dos mais completos estudos que há, ainda hoje, sobre o problema econômico que ali reclamava, mais do que nunca, numa fase de transição do trabalho escravo para o trabalho livre, as vistas do poder público. O Relatório, transcrito na íntegra no meu livreco IMAGEM DO CEARÁ-­MIRIM, edição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1969, prefácio de Edgar Barbosa, nos mostra um Henrique surpreendente: - o ‘filósofo’, o abstrato, o fugi­tivo da realidade e do terra-a-terra, o homem do devaneio e da fantasia criadora surge como um economista. Surpreende, por exemplo, quando escreve: - “Há uma circunstância que prova, exuberantemente, a nossa capacidade de ação, em­bora sem método e sem o critério positivo da cultura moderna. Por mais paradoxal que pareça, a verdade é que a história do nosso desenvolvimento acha-se intimamente ligada ao aparecimento das secas”.
Acredito ter sido um desafio para Henrique esse Relatório: comportar-se como economista diante dum vale que pedia o poeta.

A ÚLTIMA VISÃO

Doente, Henrique procura o Recife. Comigo inicia a sua peregrinação pelos consultórios médicos. Hospedado no Hotel Avenida, aí, após o jantar, tínhamos sempre bons cavacos. O assunto era o mais das vezes a irmã Auta. Um dia perguntou-me se eu sabia algum verso da irmã. Recitei en­tão ‘Caminho do Sertão’, dedicado ao irmão João Câncio. Longe, uma lua imensa nascia no mar. A face do poeta era pálida. Uma lágrima brilhou rápida e fugaz como a exis­tência da ‘pobre moça tuberculosa’. Não nos tornaríamos mais a ver, assim próximos e quase confidentes.
No dia 26 de julho de 1947 faleceu Henrique Castricia­no. Edgar Barbosa dedicou-lhe uma página antológica, com que abre o seu livro IMAGENS DO TEMPO, edição da Uni­versidade Federal do Rio Grande do Norte, 1966. Morreu na Policlínica do Alecrim, aos cuidados incansáveis do Dr. Pedro Segundo, sob as vistas de outro grande idealista, que era Luiz Soares. Deixava uma herança, uma riqueza inex­tinguível: a Liga do Ensino, que o Dr. Varella Santiago continuou; a Escola Doméstica, que eterniza o seu nome; uma visão da mulher brasileira como sustentáculo da socie­dade; um roteiro luminoso no seu programa da cadeira de Educação Social na Escola Doméstica; uma forte quixotes­ca lição de idealismo. Foi um justo que morreu em paz com os homens, diz Edgar Barbosa. Discretamente abismou-se no Mistério.
Figura humana extraordinária, era único na sua ma­neira de ser. Era ‘inadulável’, diz Cascudo, num adjetivo magnífico. Ele marcava por ser ele mesmo. Parece ter es­crito para esse momento final estes versos do seu poema “A Alma das Coisas”.

Esse cortejo todo de Quimeras,
De Sonhos, de Visões eterizadas,
Passou, casto luar das Primaveras!
Passou, doce luar das Alvoradas

Hoje, nada mais resta. Solitário
Eu sou! E sobre mim, tristes chorando,
Bem como as notas de um estradivário,
Voejam as aves da saudade, em bando.

Srs. Acadêmicos: Esta é a Casa de Henrique Castriciano, nosso primeiro Presidente. Voejam aqui as aves da saudade. Mas o que fica - a sua alma criadora de poeta - é o seu legado, a sua presença, a perfeição do artista ina­cabado.
Da sua bela e generosa vida se poderia dizer, em lin­guagem fielmente castriciana, que, se coubesse num ritmo, era o do coração.

____
Discurso pronunciado no Salão Nobre da Academia Norte-Riograndense de Letras, no dia 15 de março de 1974, data do primeiro centenário de nascimento do Dr. Henrique Castriciano de Souza e publicado na Revista da Academia Norte-Riograndense de Letras, Ano XXIII, nº 11, Natal-RN, 1974, págs. 7-20.






2 comentários:

  1. Lindo discurso, parabéns professor! Graziela Rinaldi da Rosa (Rio Grande do Sul)

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  2. ..é preciso postar essas relíquias...
    Graziela Rinaldi da Rosa

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