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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

ASSIS CHATEAUBRIAND

Ernani Sátyro

[...] Diante de uma personalidade como a de Assis Chateaubriand, só existem dois caminhos a seguir: ou um estudo sério, profundo, na medida do seu valor, ou palavras despretensiosas, que tenham apenas o propósito de uma homenagem, de trazer mais uma pequena coroa para o seu túmulo ou mais uma rosa para ser colocada ao lado de seu retrato.
Na impossibilidade de trazer uma contribuição valiosa, uma interpretação que exige, além dos requisitos próprios do artista ou do intérprete, a perspectiva do tempo, o estudo, a meditação, quero agora,  sem fingida modéstia, trazer, sob forma de palavras, algumas flores, que expressem a minha simpatia, a minha admiração e, mais do que isso, a minha compreensão. E começarei esforçando-me por esconder os espinhos, nesta hora em que ainda estamos diante de um túmulo quente, cercado de espanto e curiosidade de uma nação inteira, mas não propriamente molhado de lágrimas por um povo. Nem gostaria de prantos esse homem estranho, tão cheio de interrogações diante de todos os aspectos do grande quadro do mundo, tão pleno de realizações, de coisas lógicas e absurdas, de gestos de ternura para muitos de quem gostava, de violência – a violência da palavra – para todos a quem combatia.

ASSIS CHATEAUBRIAND

Creio ter encontrado, quase ao acaso, a palavra que melhor define o meu pensamento. Ele foi um homem diferente. Sei que rigorosamente todos somos diferentes uns dos outros, embora semelhantes nas características essenciais da natureza humana. Nele, porém, as diferenças são maiores ainda, até mesmo pelas proporções do seu talento. O talento de falar, o talento de escrever, o de conversar, o de realizar, o de gostar ou de ofender. Foi diferente, muito mais que a grande maioria dos outros, até de si mesmo.
Não falo como amigo íntimo de Assis Chateaubriand, que nunca fui, apesar de guardar, de algumas de nossas conversas, de alguns de nossos encontros, lembranças que só as personalidades incomuns são capazes de deixar registradas. Tenho depoimento de alguns de seus íntimos. E também o observei de longe, como todo brasileiro que acompanha os acontecimentos do seu país.
Direi então, com esses elementos de que posso dispor – e o que importa é oferecer uma contribuição, por mais modesta que ela seja –, direi que a sua maior diferença consistia na conciliação do regional com o universal. Ele era um espírito universal. E, sendo universal, participava da natureza do regional, não apenas nos tempos comuns, na medida em que o gênero participa de espécie. Ele participava do regional, do local, com toda a forma, direi até – com toda a fúria de sua enorme natureza.
Estivesse em Londres, ou na China, ou na África, era o mesmo paraibano
de Umbuzeiro. E digo paraibano sem qualquer conotação de paraibanismo, porque, reconhecendo sempre o lugar onde nasceu, bem próximo à fronteira de Pernambuco, Assis Chateaubriand gostava de sua terra, como gostaria de qualquer outra onde tivesse nascido ou vivido.
Como desgostaria dela se, no meio de suas lutas – e uma luta foi a sua vida inteira –, se visse por ela contrariado. E aí encontro outra de suas diferenças. Depois de ter perdido a segunda eleição para senador pela Paraíba, esperei encontrá-lo uma fúria, revoltado contra o seu estado. Desconcertou-me nem tocando no assunto. Era como se não tivesse tomado conhecimento. Tratou logo de arranjar outra senatoria pelo Maranhão e prosseguiu caminho. Ele, que não parava nunca, não ia perder tempo com lamúrias. O brocardo de que “águas passadas não movem engenho” para ele existia mesmo. Era tocar para a frente.
Quero deixar registrado, aqui, pelo menos um dos episódios de meus raros contatos com Assis Chateaubriand. Disputava ele a sua segunda eleição de senador pelo nosso estado. Da primeira vez não teve competidor.
Não cabe explicar agora as razões de nossa abstenção. Mas o certo é que, da segunda vez, Chateaubriand nos teve pela frente. Realizava ele um animado comício na minha cidade de Patos. Levara para ali rádio, televisão e tudo o mais de que a propaganda moderna dispõe. Não sei por qual processo levou a televisão. Era uma emissora portátil. O vídeo reproduzia a imagem no próprio comício. Encontrava-me na minha residência, disposto a ouvir pelo rádio o comício que ia começar, quando fui informado de que amigos meus de outro município tinham chegado a Patos, com uma caravana, para perturbar o comício do PSD, atirando ovos e tomates em Chateaubriand. Imediatamente corri para o local, onde se encontravam de fato os meus amigos. Tive a intervenção que as circunstâncias aconselhavam e evitei a cena desagradável e certamente o conflito também. Terminado o comício, voltei para casa. Fiz tudo para que nem sequer fossem observadas as minhas gestões. Lembro-me bem de que ameacei os meus correligionários – bravos, leais, corretos, mas que tinham uma raiva especial de Chateaubriand, e por isso estavam apaixonadíssimos na campanha –; ameacei-os de subir ao palanque e receber também as ofensas que fossem feitas ao nosso hóspede. Esse foi o argumento decisivo. Nada aconteceu. Apesar do meu esforço, pois, para que fosse abafada a notícia da ameaça, no outro dia, bem cedo, Assis Chateaubriand bateu à minha porta e, quando me viu, foi dizendo mais ou menos isso: Seu miserável, você ontem me derrotou. Imagine o que seria aquilo gravado no rádio e na televisão, espalhado por toda a Paraíba, por todo o Brasil. O que eles iam me atirar eram votos, e você me roubou esses votos. Mas não pense que fica posando de bom moço.
Você é um cangaceiro como os outros. Agora, tem que me pagar, votando em mim e mandando a sua canalha também votar. Depois, convidou-me a ir à casa de meu irmão Clóvis, o verdadeiro chefe do município e seu velho conhecido. Lá ficamos muito tempo, quase até a hora do seu embarque, para espanto e desgosto de seus correligionários.
Os jornais da época deram notícia do fato. Narro o episódio, não para me engrandecer. Fiz o que faria qualquer homem responsável, de elementar educação política e até de normal habilidade. Não nos interessava, a nós patoenses, oferecer ao país aquele triste espetáculo. Nem ao nosso partido aproveitava fazer uma vítima. O que há de importante no episódio é a originalidade, a graça, o imprevisto com que Assis Chateaubriand foi agradecer o meu gesto. Sim, porque o que ele queria era isso, e o resto da conversa, amável, afetuosa, bem o demonstrou.
Não resisto à tentação de narrar um segundo episódio, anterior, também expressivo da largueza de sua compreensão. Há alguns anos foi publicado um livro brilhante, que considerei ofensivo à memória de alguns paraibanos eminentes, já mortos, inclusive Epitácio Pessoa, de quem sempre fui devotado admirador. Escrevi uma série de três artigos, que não consegui publicar, apesar de já ser deputado federal e relativamente conhecido. Colaborava, então, em alguns jornais do Rio de Janeiro. Mesmo assim, não consegui publicar os artigos. Reconheço, hoje, quando o episódio está inteiramente encerrado, que o meu trabalho era muito pessoal e violento, embora dele não me envergonhe, mesmo do ponto de vista literário. Se fosse hoje, faria a mesma defesa de Epitácio Pessoa e dos outros paraibanos, mas tiraria muitos dos conceitos e das expressões então empregados. Não é que esteja arrependido – é que mudei, pela força dos anos. Pois bem, não tendo encontrado acolhida, na imprensa, para os meus artigos, resolvi transformá-los em discurso, que li da tribuna da Câmara. E afinal o meu protesto ia ficar em relativo silêncio, apenas registrado nos anais e com ligeiras referências no noticiário parlamentar. Foi quando Assis Chateaubriand, sem que eu nada lhe pedisse – nem tínhamos relações pessoais para tanto –, abriu-me toda a cadeia dos Associados e, embora reconhecendo que o meu discurso era injusto em muitas de suas passagens, deu-lhe a mais ampla divulgação. O discurso foi publicado, em seus trechos principais, quase na íntegra, em todo o país. Aos que foram reclamar-lhe o gesto, ele respondeu que, como paraibano, embora pouco me conhecendo, não podia deixar que um debate daquele fosse abafado. Logo depois, o deputado Janduí Carneiro, que comigo assinou, agora, o requerimento desta homenagem, respondeu ao meu discurso, numa longa e bem feita oração. E Chateaubriand divulgou também o trabalho de Janduí, com a mesma imparcialidade, com o mesmo amor à controvérsia por ele mesmo então proclamado.
Convém não esquecer que muitos desses paraibanos ilustres ele os conhecera pessoalmente, no próprio estado. Na mocidade, frequentara assiduamente Campina Grande, onde morava seu tio e padrinho, o Dr. Chateaubriand Bandeira de Melo, grande médico, conhecido popularmente por Dr. Chatô. Era sogro do nosso prezado colega de Congresso, senador Pereira Diniz. Datam de então as mais profundas recordações que o nosso homenageado conservou na memória. Tinha verdadeira veneração pelo tio e padrinho.
Muitos dos contemporâneos – dos que me ouvem e dos que porventura me venham a ler – terão melhores depoimentos a prestar, mais justas e interessantes observações a fazer. Diante desse homem genial, pela inteligência, pela vibração, pela capacidade de realizar, muito e muito ainda existe a dizer, apesar do muito que já se tem dito. Fique, porém, esta pequena contribuição ao monumento que se erguerá, sem nenhuma dúvida, na história de nossa pátria. Monumento cheio de saliências e reentrâncias, de gestos cavalheirescos e generosos, e também de atitudes cruéis, mas onde nada é pequeno, onde nada é medíocre. Retomo as palavras iniciais. Este foi um homem diferente. Cuidado com ele, mesmo depois de morto.

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