TORRES HOMEM
Quem era o homem a quem se dizia que o Imperador sacrificara o gabinete Zacarias? Os princípios da sua vida são pouco conhecidos.
Filho duma quitandeira, deve ter tido, contudo, do lado paterno uma assistência vigilante nos primeiros anos. Será parente por linhas naturais de Evaristo da Veiga, mais velho que ele apenas onze anos? Fá-lo crer o fato de que foi Evaristo que o mandou para a Europa ajudando-o pecuniariamente nessa viagem e nos estudos. É verdade que tinha o lugar de adido à Legação de Paris. Mas é indubitável que Evaristo o auxiliou.
Colaborou na Aurora Fluminense mas sem continuidade. Trouxe dos estudos em Paris uma grande bagagem literária e política. Foi com esses elementos que redigiu o célebre Libelo do Povo, sob o pseudônimo de Timandro. Desde aí que foi uma personalidade. Seu livro foi um acontecimento que o colocou desde logo na primeira plana das sumidades intelectuais.
FRANCISCO SALES TORRES HOMEM
O Libelo do Povo era bem um libelo no sentido jurídico da palavra. Não poupava a família Imperial. Arrastava-lhe os antepassados, mesmo os mais próximos, pela rua da Amargura. Os Bourbons de Nápoles, família da Imperatriz, esses eram os mais impiedosamente tratados.
O Imperador ressentiu-se profundamente desses ataques. Só a sua magnanimidade poderia perdoá-los. Mas ele próprio não poderia nem admitir essa hipótese, a menos dum milagre. O milagre deu-se. Salles Torres Homem, especializando-se em assuntos financeiros, mostrou tal superioridade e tão grandes mestria que o Imperador lhe deu uma pasta de ministro para executar as suas ideias. Honório Hermeto aprovou-lhe a resolução, não é exato que a ditasse. O Imperador escreveu uma vez: "o Honório não se curva". Honório podia inverter-lhe a frase.
Do seu primeiro encontro com o Imperador tem havido várias versões e vários desmentidos. É inexato que ele se tivesse ajoelhado. Mas a verdade é que proferiu a célebre frase: "Senhor, para os grandes crimes, as grandes expiações. Esmagado pela generosidade de Vossa Majestade, forçado a retratar-me dos erros de uma mocidade petulante, a expiação do meu orgulho não podia ser maior".
O Imperador perdoou. Não assim a Imperatriz. Quando Torres Homem, partindo para a Europa, foi ao Paço despedir-se, D. Pedro II acolheu-o afavelmente. Timandro, reabilitado, sentiu-se com coragem para pedir-lhe permissão de apresentar à Imperatriz as suas homenagens de profundo respeito.
O Imperador atalhou-o. "Não, não, sr. Salles, não pense nisso. Eu sou homem e posso esquecer e perdoar. Depois, não só posso como devo. Sou brasileiro e o Brasil precisa de homens como o Senhor. Mas a Imperatriz é mulher e não esquece. Demais, embora brasileira, hoje, ela não esquece que é Bourbon e nasceu na Itália. Não se despeça da Imperatriz. Eu buscarei que com o tempo ela lhe perdoe".
O grande período do Salles (assim lhe chamavam os contemporâneos) foi o da questão financeira, o da luta com Souza Franco, partidário e realizador da pluralidade bancária.
Os desastres da política financeira de Souza Franco deram-lhe razão ponto por ponto. Tornou-se o grande financeiro do Império, na opinião geral. Não chegou a ter o conceito externo de Itaborahy e, talvez, lhe faltasse a capacidade de execução deste. Mas superava-o no talento e na instantaneidade de visão.
Retratemo-lo fisicamente. Baixo, gordo, pernicurto, pesadão, lábios grossos, óculos de ouro sobre os olhos esbugalhados, tinha um aspecto fechado, convencido e solene. A cor de cera da tez e a longa cabeleira postiça atenuavam-lhe o mascavo da raça. Não tinha um deslize no trajar: pensava que não se deve deixar aos tolos a superioridade de andar bem vestido. Tinha sege e coupé particular, com trintanário. Andava sempre de luvas, não na mão, como Quintino Bocayuva, mas calçadas. Variava diariamente de gravatas e alfinetes, de que tinha verdadeiro sortimento, comprazendo-se nas várias combinações com que quebrava a monotonia da eterna sobrecasaca. Acreditava nas propriedades das pedras preciosas e dava-lhes preferência segundo os dias da semana e a feição da atmosfera.
Nabuco de Araújo, referindo-se ao seu orgulho e à sua fealdade, dizia: "Se ele não tivesse tanto talento, poderiam chamar-lhe peru de roda. Pavão é que nunca. Para pavão, falta-lhe algum tanto de beleza..."
Bom humanista, como os seus grandes contemporâneos, sabia latim como um padre e trazia Lucrecio de cor. Falava francês como um parisiense, sem o mínimo sotaque. Seus escritores preferidos foram Chateaubriand, Benjamin Constant, Paul Louis Courier e Cormenin.
Grande orador, dos maiores de seu tempo, era simples e magnífico. Não há na história parlamentar da Monarquia dia mais memorável do que o em que respondeu a Zacarias que atacava o projeto Rio Branco sobre a emancipação dos nascituros (5 de setembro de 1871).
A asma, de origem cardíaca, que o devia fulminar pouco tempo depois em Paris, já lhe dificultava a respiração e o uso da palavra.
Zacarias fora, além de mordaz, eloquente. Dera o máximo contra essa reforma, a que atribuía, e com razão, a perda da simpatia imperial. Salles não quis deixar a outrem a honra e o perigo do revide. Os contemporâneos, quando ele começou a falar, interrompido por espasmos, assistiam a uma cena quase trágica: a luta do espírito querendo alar-se contra a matéria, buscando conter-lhe o voo.
Mas a vontade venceu. Salles conseguiu domar a máquina rebelde. E continuou a falar. O seu discurso, a que Nabuco, aliás, preferiu o de Otaviano sobre o mesmo assunto, é uma peça maravilhosa. Eclipsa não só o de Otaviano, como ainda o de Nabuco de Araújo, e, talvez, seja por isso que Joaquim Nabuco não o transcreve nem o analisa devidamente. Há nele gritos do coração e imprecações que tocam as raias do sublime. Enquanto este não for proscrito do pensamento, como incompatível com a grosseria ambiente, será lido com emoção o discurso de Salles.
Principia ele chamando à banca dos réus o escravismo. O hábito de parlamentarizar os discursos, espontando-os de todos os espinhos que pudessem arranhar a etiqueta, edulcorou nos Anais a amarguidão dessa figura. Mas a verdade é que ele chamou o escravismo à barra do Tribunal, como um criminoso, e que desde aí o seu discurso começou a causar sensação.
O grande argumento dos escravocratas era o direito de propriedade, era o partus sequitur ventrem dos semoventes. A humanidade do escravo desaparecia: ele era animalizado como um bicho qualquer, de que o dono tem direito às crias.
Salles Torres Homem combate esse argumento em nome da humanidade e da religião:
"Não será no recinto augusto do Senado, onde, a par de tantas luzes e experiências, dominam os mais elevados sentimentos, que virei provar que criaturas inteligentes e dotadas, como nós, dos mesmos atributos e dos mesmos destinos, não podem ser equiparadas, no ponto de vista da propriedade, ao potro, ao novilho, ao fruto das árvores e aos objetos inanimados da natureza, submetidos à dominação do homem. Doutrina absurda e execrável
"Aqueles seres não vivem ainda; a poeira de que seus corpos serão organizados inda flutua dispersa sobre a terra, a alma imortal que os deve animar ainda repousa no seio do poder criador serena e livre e já o ímpio escravagista os condena, os reclama como propriedade sua, já os reivindica do domínio de Deus para o inferno da escravidão".
O Imperador buscava à viva força esconder a sua responsabilidade na emancipação. Torres Homem entreabre respeitosamente o reposteiro cor de pêssego da sala dos Ministros em São Cristovão, atrás do qual se queria ocultar D. Pedro II. Não nega a interferência direta da Coroa, alegada por Zacarias como capítulo de acusação.
Antes deixa entrevê-la para reivindicá-la como uma glória.
"Se o Imperador, como homem e cristão, se associou a esse voto da sua pátria e da humanidade com o ardor de uma consciência piedosa e, como rei, o amparou com os prestígios da sua posição excelsa, sem sair da órbita constitucional, bastaria esse fato, só por si, para imortalizar o seu reinado".
Verberando a escravização dos nascituros, mostra como a sua monstruosidade é incompatível com a família e a religião. "Esperam-se às portas da entrada da vida as criaturas novas que apraz à Providência enviar a este mundo e aí são recrutadas para o cativeiro, embora nascidas no mesmo solo, junto do lar da família, em frente ao templo do mesmo Deus e no meio dos espetáculos da liberdade, que tornam mais sensíveis a sua degradação e miséria".
E, alterando o tom de voz numa frase que resume o seu pensamento e causa prolongada sensação, ajunta: "É, senhores, a pirataria exercida à roda dos berços, nas águas da jurisdição divina e debaixo das vistas imediatas de um povo cristão!"
PEREIRA, Antônio Batista. Figuras do império e outros ensaios. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1931. Coleção Brasiliana, vol. 1.
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