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domingo, 3 de janeiro de 2010

CÂMARA CASCUDO


ACTAS DIURNAS


VESPÚCIO NÃO SUBIU O RIO ASSU

Depois da publicação do Falsos Precursores de Cabral, do historiador Duarte Leite (1922) não apareceu resposta para defender a prioridade espanhola no descobrimento do litoral brasileiro. Diego de Lepe, Pinzon, Alonso de Hojeda continuam chegando à terra do Brasil para quem não leu o monumental trabalho do grau e pesquisador português. Não lhe deram resposta. Duarte Leite exibira documentação excepcionalmente valiosa pela interpretação científica excluindo, prática e realmente, as viagens dos castelhanos ao Brasil antes de 1500. Vamos convencionar que Alonso de Hojeda tenha atravessado a equinocial e molhado a proa de sua nau nas águas barrentas do rio Assu em junho de 1499. Estou certo que não se deu tal episódio mas combinemos na impossível veracidade do facto. A bordo da nau de Hojeda vinha o florentino Américo Vespúcio, a mais feliz e discutida figura de aventureiro de que há notícia naquele final do XV e começo de XVI século.
Este Vespúcio que não descobriu coisa alguma na sua vida deu nome ao continente inteiro. Colombo e Pedro Álvares Cabral não tiveram essa honra. Vespúcio é oficialmente o pai de uma criança inteiramente estranha às suas atividades. Aqui no Rio Grande do Norte há uma lenda, teimosa como jumento andaluz, dando mestre Vespúcio como descobridor do Apodi, imaginem, nem mais e nem menos que uma subida pelo rio Assu e fundação de feitorias lá em cima! Não há, naturalmente, uma só letra de verdade nessa tradição oral, invenção pura, mas sempre citada como verdadeira. O próprio Vespúcio escreveu quatro cartas, Lettera, aos amigos, contando as façanhas. Na segunda das Lettera conta que viu terra alagada e baixa, sulcada por grandíssimos rios que a inundavam. Debalde tentou Hojeda abordá-la. Não conseguindo, levantou âncoras e velejou entre levante e sudeste pela costa adiante, isto é, para o sul e por espaço de quarenta léguas tentaram desembarcar, mas foi tempo perdido. Estou copiando as frases do mestre Vespúcio na segunda Lettera. Onde está a documentação de Vespúcio subindo o rio Assu? Onde ficou registro da fundação e alguma coisa nessa parte norte rio-grandense onde o florentino não pode pisar? Não era tempo de acabar com essas visagens do outro tempo? A História é uma senhora extremamente séria...
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 13 de outubro de 1947



COMERCIANTES... HISTORIADORES

Nunca mais tive o prazer de ler um livro de recordações e de notas escritas por um comerciante. No século XIX tivemos alguns cheios de informação preciosa. Não é possível ver-se o panorama da História Brasileira das primeiras décadas do século XIX sem as páginas de Henry Koster, de John Luccok.
Esses depoimentos dizem o país pela voz estrangeira, alheia ao sangue e sem as concordâncias psicológicas que em nós agem como determinantes fisiológicas. Pela situação, o comerciante era um informador social valioso. O contacto com as classes diversas, o estudo nato da mentalidade do ‘freguês’, os processos incontáveis para a reação financeira do mercado, a compreensão, o espírito de assimilação para os objetos novos, o poder aquisitivo do aparelhamento cada ano renovado pela mecânica, a curiosidade de provar e conhecer quanto apareça constituem os traços fisionômicos da massa humana que o olho do comerciante demorará em analisar e reter.
A maioria dos comerciantes foi atirada ao balcão, como se dizia outrora, ainda menina, tendo no sangue os mesmos desejos de empinar corujas, de banhos na maré, de caju nos taboleiros e de jogar castanha. A posição, atrás do balcão, defendia a criança, como a promovendo ao respeito e a majestade do trato com as moedas prestigiosas e, ontem, manejar as primeiras máquinas registradoras, engolindo o dinheiro e descomendo um papelzinho impresso.
O balcão era o observatório e raro comerciante ficou destituído de finura para dizer e pormenorizar as características dos fregueses, as manias e formas normais de cada um aparecer, pedir, pagar, reclamar, ir-se embora. Filho do comerciante, de velho comerciante, conheci os ‘graúdos’ e os pequenos. Os grandes exportadores da Rua do Comércio, fornecedores de navios, recebendo ‘em grosso’. E conheci os pequenos, distribuidores, lojistas, donos das casas que espalhavam a mercadoria nas mil mãos do povo. Havia outra classe, a dos bodegueiros, a mais curiosa e rica de experiência, em contacto imediato com o povo e suas atividades.
Conheci negociantes excepcionalmente espirituosos, alertas, cheios de remoques. Meu Pai ainda é lembrado. De raras letras e muita vivacidade, chegou a primeira fila. Foi o único comerciante que manteve, sem interesse, doze anos, um diário. Ele e seus colegas sabiam e sabem a História viva. Mas não a escrevem...
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 30 de setembro de 1947



PARA VOLTAR À FONTE

La Gazette des Letres de Paris publica uma pequena carta do Senhor Louis Perche sugerindo um prêmio de 30.000 francos destinados a um escritor do Perigord residindo em Paris para que visite o Petit Pays e possa revigorar as forças criadoras no contato da terra Natal. Como o processo de escrever não é exclusivamente a dança dos dedos na máquina ou o impulso da caneta automática, mas a visão dos elementos inspiradores ou sugestionados do pensamento criador, esse prêmio anuncia verdadeiramente o romance mais vivo e mais humano porque é um regresso às fontes da experiência da cidade grande com sua batalha decepcionante e suas glórias melancólicas.
O Sr. Louis Perche tem toda razão. É o mesmo problema em qualquer parte do mundo. O provinciano leva para a capital um material acumulado e complexo, que é usado em cessar. Confunde-se mesmo o realismo da lembrança com a transfiguração do possibilismo. As figuras e cenas evocadas vão passando e o suprimento é feito pela imaginação.
Certamente há outro motivo mais urgente e mais lógico. É a necessidade de descentralização intelectual da capital maior. O macrocefalismo administrativo absorve as forças vivas e fixa pelo clima julgadamente promissor a ilusão do conforto para o escritor. Fogem todos para a cidade, dizendo a frase comum de que a terra grande é o cenário indispensável para o seu talento. A província, com o pauperismo financeiro e a incompreensão dos conterrâneos, que o hábito da amizade banaliza o escritor, não promete senão a relativa tranqüilidade e a renúncia diária aos vôos maiores. Todas as águias não admitem o sacrifício das asas, e a possibilidade de torna-se ave de galinheiro. E a cidade vai obrigando esses sonhadores a um parasitismo econômico, a uma subalternidade funcional desmoralizante, imposta cruelmente pela vida áspera e tumultuosa. A impressão é que o talento não justifica o baixo preço de seu emprego e as humilhações sucessivas que não são a etapa da adaptação social.
Para cada vitorioso há noventa que partiram o bico querendo cantar e fazem na cidade o que não julgavam fazer na terra pequena da província.
Um prêmio que trouxesse o provinciano para rever sua terra, seria uma lição prodigiosa de amor. Das promessas da cidade estamos fartos de saber que são mentiras.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 19 de junho de 1950



NOSSOS IRMÃOS, OS ÍNDIOS

Ninguém pediu minha opinião sobre o serviço de proteção aos índios mas estou convencido da espontaneidade da opinião pessoal. Voto contra.
O índio deve ser deixado em paz. Deixado na sua vida sem problemas maiores e nem as misérias funcionais da nossa civilização. Não abandonamos os nossos irmãos índios, mas defendemos sua felicidade que terminará desde que comece a conhecer o progresso e a beleza da vida atormentada.
Devemos fixar uma linha intransponível entre os terrenos nacionais. Pena de morte a quem violasse o território indígena. Basta a lembrança de um povo feliz para trazer um pouco de felicidade aos que não a podem ter, civilizados demais por fora e bárbaros demais por dentro.
Que vamos dar aos nossos irmãos indígenas em troca de sua liberdade, de sua livre movimentação, de sua existência sadia, primitiva, caçando, pescando, dançando, cantando, brigando sob as estrelas e a luz do sol de sua tradição milenar?
Não temos nem o necessário para atender as exigências da população civilizada. Estamos num regimen atordoador no domínio da produção. O custo de vida é vertiginoso, imprevisto e misterioso, como um disco voador. Os problemas sanitários e educacionais começam apenas timidamente. A engenharia sanitária iniciou sua campanha que durará dezenas de anos para tornar confortáveis pequenas áreas demográficas. Uma política delirante e criminosa de centralização asfixia lentamente as províncias brasileiras. O êxodo do trabalhador rural é diário. As zonas das futuras searas são virgens. Os vales úmidos apodrecem e o Rio de Janeiro cada vez mais ergue seus arranha-céus e grita o dogma mentiroso de que não haverá salvação para fora de seus muros.
Deficits orçamentários. Técnica de exportação por mero interesse grupalista. Alta fictícia. Estamos todos empenhados em uma reajustação administrativa urgente, na redistribuição dos trabalhos, na fixação do homem no campo, não para entregá-lo à morte lenta e a sucção dos financiadores, mas para fazê-lo um pequeno produtor livre, fundando sua economia pessoal. Que temos nós para dar aos índios, que não têm um só dos nossos problemas? Que piedade maluca é a nossa, levando para o índio o nosso veneno e pensando que o civilizamos, adoecendo-o, envilecendo-o, acabrunhando-o?... A proteção real e lógica é defender suas terras, sua produção, sua pessoa.
É defendê-lo de nós. Levá-lo de nosso contato. Distanciá-lo da nossa civilização impetuosa, impiedosa e sangrenta. Deixem os nossos índios viverem.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 7 de junho de 1950



O PRIMEIRO NORTE-RIO-GRANDENSE
BACHAREL EM OLINDA

Chamava-se José Joaquim Geminiano de Morais Navarro. O Curso Jurídico de Olinda instalou-se a 15 de maio de 1828, no mosteiro de São Bento. As aulas abriram-se a 2 de junho. Estavam matriculados quarenta e um estudantes. Em setembro de1832, prestavam os derradeiros exames. O Curso Jurídico de São Paulo, criado na mesma lei de 11 de agosto de 1827, instalara-se a 1o. de março de 1828, no convento de São Francisco e bacharelara a sua primeira turma de seis bacharéis, um ano antes, em novembro de 1831. Entre os quarenta e um diplomados de Olinda tínhamos um único conterrâneo, o Dr. José Joaquim Geminiano de Morais Navarro, já sem o Geminiano na lista de formatura.
Não deixou maiores rastos na terra natal, esse nosso distante iniciador da série patrícia dos advogados. Sabemos muito pouco de sua história. Fiz uma pesquisa longa para apurar-lhe as andanças anteriores e posteriores ao curso olindense.
José Joaquim Geminiano nasceu em Natal a 19 de dezembro de 1799. O pai, Padre Antônio Caetano do Rego Barros, era da primeira nobreza local, proprietário, irmão do coronel José Joaquim do Rego Barros, membro do governo republicano de 1817, homem rico prestigioso, tendo sido o presidente da Junta Constitucional Provisória, que administrou o Rio Grande do Norte de 3 de dezembro de 1821 a 7 de fevereiro de 1822. O nome do “sobrinho” deve ter sido homenagem ao tio ilustre. Depressa o rapaz aparece nos acontecimentos da época. Devia ser inteligente, vivaz e ousado. No juramento da Constituição que as Cortes estavam fazendo em Lisboa, vereação solene em Natal, a 24 de maio de 1821, José Joaquim Geminiano assinou, já importante. Na misteriosa concordata que os representantes do Rio Grande do Norte e de Pernambuco assinam em Recife, de auxílio mútuo, a 3 de agosto de 1824, José Joaquim Geminiano é um dos três delegados oficiais por sua Província. Os outros dois foram, o Padre Francisco da Cesta Seixas e José Joaquim Fernandes Barros. O “embaixador” tinha vinte e cinco anos. Precocidade diplomática...
Bacharel em 1832, logo a 15 de julho de 1833 é nomeado pela Regência em nome de Sua Majestade o Imperador, Presidente da Província de Sergipe. Toma posse a 29 de setembro do mesmo ano.
Não sei como se houve em seu governo. A 13 de fevereiro de 1835 passou a administração sergipana ao Dr. Manuel Ribeiro da Silva Lisbôa, o nosso Presidente Parrudo, que seria Presidente do Rio Grande do Norte e assassinado em Natal, com morte bárbara e tradição suja, no tocante à moralidade dos costumes.
Os seus patrícios quase o esquecem. Apenas revejo seu nome comprido na lista dos votados, a 10 de novembro de 1834, para deputados à primeira Assembléia Legislativa Provincial. E assim mesmo obteve... um voto.
Quase teria sido a carreira de José Joaquim Geminiano (na Carta Imperial está o Geminiano) depois de fevereiro de 1835? Ignoro. Encontro filhos seus terminando estudos jurídicos em Recife e nascidos na capital pernambucana. Aí deve ter residido e, até prova em contrário, viajado para o outro-mundo.
São estas as polegadas que adiantei na história de José Joaquim Geminiano de Morais Navarro, o primeiro norte-rio-grandense que se bacharelou em Direito na amada terra do Brasil.
Luís da Câmara Cascudo
A República, 21 de dezembro de 1939



O DIREITO DE NÃO OUVIR

Há em todos os países do Mundo a Legislação do Silêncio, defendendo a população dos ruídos inúteis, do barulho indispensável, das sonoridades discutíveis.
Médicos e educadores sabem o que vem a ser um ruído, um rumor, um barulho e sua influência no sistema nervoso infantil e adulto. Envenena-se pelo rumor como pela via oral, engolindo-se o tóxico. O rumor gasta a energia, dispersa a atenção, deseduca o sentido, exaspera a percepção, desvia a mentalidade. Prefeitos, sanitaristas, educadores, psiquiatras conseguiram dos Governos essa Legislação do Silêncio, obrigando, democraticamente, a maioria respeitar a unidade, ou essa unidade acatar a decisão da maioria quando fundamentada em lógica científica. Em qualquer cidade-grande, dessas que Verhaeren denominou “tentaculares”, há uma série de obrigações impostas pelo dever de respeitar-se o silêncio, ou prazer do próximo... Não é possível, num apartamento, abrir-se o volume de voz a um rádio e deixar um samba abalando todo o edifício sob pretexto de que o dono do aparelho é livre e não tem contas a prestar com as orelhas alheias, não é lógico que toda a gente se interesse pelo mesmo programa e procure contagiar essa simpatia pelo estridor instrumental ou vocal. A popularidade, cada vez maior do rádio, a quase obra de possuí-lo, não implica numa proclamação de direito sobre o sossego ou idiossincrasias circunvizinhas.
Um amigo da rua Princesa Isabel não podia conservar o mesmo timbre de voz graças ao berreiro do rádio parede-meias. Por que você não pede para o seu vizinho gozar o rádio sozinho, sem esse fervoroso entusiasmo comunicativo?
- Não peço, não senhor. Vingo-me. Quando ele quer dormir, eu ligo o meu rádio para os programas mais idiotas e deixo gritar a vontade...
A função educadora do rádio, nesse caso, é diametralmente oposta a uma finalidade elementar de bom comportamento. O melhor é ter um rádio e ouvi-lo sempre. Ouvi-lo em nossa sala sem a participação dos outros que, podem ou não, estar em momento de boa recepção mental. Digo essas coisas em tese generalisadíssima. Os meus dois vizinhos são modelos de possuidores de rádios. Sei que existem os aparelhos porque vejo a denúncia nas antenas.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 11 de outubro de 1947



ME DISSERAM...

Permito-me. Ó manes de Castilho Antônio e do finado Candido de Figueiredo, dar o título acima ser agravo premeditado aos policiadores pronominais. Uma frase muito comum é:- Não sei bem... me disseram.
Serve de habeas-corpus à vaguidade da fonte originária informativa e dentro dessa irresponsabilidade espolinha-se, livre, a imaginação solta do narrador. É pois, do domínio psicológico, um elemento de clara e nítida força.
Voltaire, quando lhe perguntavam o princípio de uma notícia, respondia:- Não estou certo porque me disseram...
Entretanto esse “me-disseram” é o agente transmissor de 99% das notícias do Comum, reportagem dos jornais-falados cotidianos, mantidos nas ruas pela força redatorial do anonimato. Sustentados pela pujança seivosa da inventiva sem possibilidades do ônus da prova. Ninguém exige a documentação nem as credenciais do depoente interessado na divulgação gratuita. E continua o boato.
O veículo alaga tão materialmente o ambiente com os informes sem carimbo, que as imagens da replecção denunciam o aspecto vivo:- a rua está cheia... a cidade está cheia...
Cheia de que? Cheia do “me-disseram”...
Esse elemento – um processo de poderosa intensidade social para retardar, acelerar, deter nomes, famas, desejos, sucessos. Estou traduzindo apenas a ária de Demi Basílio, a ária-de-calunia, no Barbeiro de Sevilha. Mas o “me-disseram” pode ser favorável, simpático e mesmo bajulativo. É possível determinar a auréola doirada da Fama sem a necessidade da produção ou mesmo a função humana o trabalho intelectual quando o dístico haloador pertence à classe dos letrados. Possível dispor, pelo “me-disseram”, um cenário que dispensa o ator, esforça-se muito. Basta aparecer e receber as palmas. Já se sabe que é gênio sem precisar um minuto de comprovação. Nas horas vermelhas de uma agitação revolucionária, o julgamento de vida e morte depende unicamente desse método sem identificação de culpa e prêmio.
Espalha-se o rumor e esse rumor cria a figura do delito ou da glória individual sem que a vítima ou herói haja merecido a coroa para a cabeça ou a corda para o pescoço.
Me disseram que era assim...
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 14 de outubro de 1947




UMA CONSPIRAÇÃO VISÍVEL

Estou lendo no Digest of the Americas, da Andrux Press, que o geógrafo Prof. Hans Ahlman afirma que desde 1900 a temperatura do Ártico subiu dez graus centígrados, elevando-se o nível das águas do oceano e os gigantescos glaciares se dissolvem como manteiga em chapa quente.
No centro d’África os lagos secam e, na parte ocidental, desapareceram nascentes e o imenso Lago Vitória desceu dezessete centímetros nos últimos dez anos.
O professor Hans Ahlman apela para uma campanha de estudos de caráter internacional. Trata-se de conspiração real, absoluta, ostensivamente feita aos olhos dos sábios, contra a integridade, equilíbrio e perpetuidade do Homem na Terra.
A circulação das águas nos lençóis subterrâneos será multiplicada pelo acréscimo desses volumes monstruosos e como processo fixar-se-á apenas em um hemisfério, ou melhor, numa região determinada cuja coordenada geográfica não posso precisar, deduz-se que haverá um desequilíbrio da massa terráquea, desequilíbrio cujas proporções são incalculáveis, imprevisíveis e cataclísmicas.
Até aqui estou comentando o sábio professor da Suécia, Hans Ahlman. Não vou adiante. Fico, entretanto, perguntando a mim mesmo porque essa conspiração dos elementos naturais contra o Rei da Criação, o Homo Sapiens, o Bicho Homem, todo poderoso criador da ciência e da técnica. Certamente os elementos realizaram um congresso e os ‘leaders’ discursaram sobre o assunto milenar. Há milhares e milhares de anos que o Homem se apossou da Terra e disciplinou, dentro do possível, os elementos naturais, as forças vivas da Natureza, dispondo-as ao seu serviço. Esgotou mares, furou montanhas, desviou rios, amordaçou cachoeiras, arrasou serras, trepou colinas, cavou mistérios. Andou debaixo da terra e na estratosfera. Os elementos consentiam em tudo, confiantes no papel de uma colaboração para a Felicidade, a Paz no Trabalho, a Harmonia, a Alegria de viver e de ser útil.
Devem, os elementos, ter chegado a essa conclusão: foram utilizados para o egoísmo e para a morte. Quererão expulsar o homem da terra em que ele é hóspede e se julga dominador?
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 1 de outubro de 1947


ATÉ DEUS PRECISA DOS SINOS!

A frase é uma paráfrase de Chateaubriand. Traduz-se que a Igreja de Deus não dispensará os instrumentos de aviso, chamado, reunindo, alertando seus fiéis. Não há Exército sem clarins. Nem cidade sem comunicações de telefone e rádio. Com a organização da defesa civil vimos o papel salientíssimo das sirenes fazendo a cobertura sonora da população, afastando-a do perigo, disciplinando-a.
Uma propaganda é tão indispensável quanto a produção regular. Propaganda do país e não dos seus dirigentes. Dos produtos e não dos homens. Divulgar livros, filmes, idéias e fotografias e não retratos individuais com relatórios administrativos. O Conde d’Eu me disse que o grande mal feito à Família Imperial era a bajulação (o príncipe dizia outro nome mais delicado) da imprensa monarquista. Nada irrita mais do que o elogio insistente. Acaba dando vontade de ir-contra, só pelo gosto de discordar.
O General Aristides, o grego que nunca mentira e era a expressão mais alta da dignidade moral nas horas crepusculares da Grécia anárquica, foi exilado. Para exilar-se alguém escrevia-se o nome da vítima numa casca de ostra ‘Ostrakon’, daí a palavra ‘ostracismo’. Um camponês pediu ao próprio Aristides, que ele não conhecia pessoalmente, o obséquio de escrever seu nome na casca de ostra – Por que desejas exilar Aristides? Perguntou o herói magnânimo – Por que estou farto de ouvir chamá-lo virtuoso, impecável, perfeito.
E Aristides, compreendendo, escreveu o próprio nome na ostra que o expulsava da pátria. Americanos e ingleses, com produção industrial e cultural que dispensa corretagem em qualquer praça, mantêm seus adidos culturais e econômicos. Nós achamos que é despesa dispensável. Há poucos anos, Agosto de 1940, Leopoldo Stokowski esteve no Rio de Janeiro regendo um conjunto de 18 músicos da Filarmônica da Filadélfia e centenas de rapazes e mocinhas selecionadas entre 15.000 estudantes das Escolas de Música dos Estados Unidos. O conjunto se chamava All American Youth Orchestra e viajava em cruzeiro especial no Good W. II. Muito que bem. Pois, meus senhores, Stokowski, um dos mais populares regentes do Mundo, nunca ouvira falar em Carlos Gomes que nós julgamos mais conhecido que a luz do Sol. Entenderam?
Se a Igreja não dispensa a ‘chamada’ dos sinos porque a dispensará o Brasil?
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 12 de setembro de 1947


OPINIÃO DE MESTRES

Há alguns anos passados conversava-se numa residência amiga no Rio de Janeiro. Um grande escritor, infelizmente morto, dava opiniões sobre as influências do escravo africano no Brasil.
Eram as mais completas, absolutas, determinantes. Lá para as tantas explicou que os versos encadeados, as pretensões poéticas, constituíam outro elemento que devíamos aos africanos. Completavam eles, desta forma, ao verso que faltava à solfa, repetindo-o. O dono da casa, professor de literatura, teve sorriso bem educado e silenciou. Não ignorava que os tais versos eram o processo paralelístico português, empregado há séculos em Portugal, abundante nos cancioneiros, comum aos poetas clássicos, era o ‘cosante’, o verso encadeado. Datava das manhãs da história literária na Península.
É uma lição que existe nos compêndios escolares de história da literatura. O Paralelismo.
Depois o escritor ensinou-me que devíamos a dança de roda, para adultos, também aos africanos. Perguntei se os portugueses não a tinham conhecido e praticado. Não. Só a praticaram depois que o africano escravo chegou a Portugal. Arrisquei (pertenço ao número dos que a dança de roda era, fisiologicamente, dança coletiva e devia existir em qualquer parte onde tivesse existido o homem). O escritor sorriu, superior:- São opiniões. A dança de roda, a dança de círculo, é negra.
Veio outra conversa, fomos jantar. E o tempo passou. Ontem vi os trabalhos arqueológicos de França e Inglaterra, a cópia dos relevos do homem da pedra polida deixado no solo com a sua presença. Rastros, vestígios de armas, arrastamento de peças de caça. Lá estão as danças de roda. O círculo imenso dos pés fortemente firmados nos calcanhares em torno do dançarino, ou sacerdote evocador, que ficava no centro. A dança de roda é eminentemente coletiva porque todos podem participar de sua execução. Fiquei pensando no amigo. Ele escreveu essa opinião? Reaparecerá em livro? Ficará ensinando...errado.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 3 de setembro de 1947



VIAGEM E CULTURA

Miguel de Unamuno ensinava que muito viajante vive apenas fugindo de um para outro país. É uma festa dos olhos, de superfície, de alegria fácil e boa, mas sem modificação substancial na inteligência e nos processos íntimos de raciocínio.
A viagem educa, dizem. Educa como função complementar, completando, finalizando, aguçando os elementos adquiridos na instrução anterior. Por si só, isoladamente, a viagem nada vale. É apenas uma mudança de lugar. Ninguém transforma a inteligência porque se deslocou dum lugar para outro canto.
Os conhecimentos da viagem, sem o fundamento da educação prévia, o lastro de cultura inicial, são rudimentos de processos que não adiantam a elevação da mentalidade. Nem uma fração de milímetro conseguirá o viajante sem saber ver e observar.
Saberá o que é obrigado pelas exigências alfandegárias, pelos usos do povo estrangeiro, pela novidade da alimentação. Verá cidades e paisagem sem a intensidade de um sentimento interior. Registrará a visão das cousas com a fidelidade padronizada e fria de uma máquina registradora. Taime escreveu que melhor a ter viajado do que viajar. As jornadas escolares têm o valor educacional porque são temas de comentários, uma verificação psicológica, a constatação do que se sabe no livro e se aprende pela visão imediata e pessoal.
Esse conjunto determinará a impressão, o juízo, a idéia sobre o que-se-viu. A viagem em si, desajudada pelos fatores educacionais, do elemento cultural é um prazer indiscutível, mas infecundo. Exclui-se, forçosamente, o talento, a criatura inculta cuja inteligência vai criando a reação cultural pela observação direta e única. A força dessas inteligências supre a cultura pela agudeza da observação, da educação, do reparo. Falando-se do homem normal, comum, diário, a crítica da viagem subordinará sua inteligência à uma pequena série de conhecimentos valorizadores dos objetos, pessoas e cousas vistas.
Lembremos que o Machado de Assis foi eleito, em pleito livre, indiscutido e majoritário, o nosso modelo intelectual, o escritor tipo superior, apontado para a imitação.
E Machado de Assis nunca saiu do Rio de Janeiro...
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 30 de agosto de 1947




VELHAS ÁRVORES

Em Montevidéu, certas ruas fazem curvas para respeitar uma velha árvore. Teixeira Soares, um dos nossos ensaístas mais ágeis, 1° Secretário da Embaixada do Brasil no Uruguai, chamava-me a atenção para esse carinho platino pelas árvores. Na calle Dieghiero, onde reside Belloni de ‘Carreta’, há um grande plátano no meio da rua, no meio da rua, repito, cercado de leve gradil. Não é árvore histórica. É apenas uma árvore que merece viver e vive a despeito do trânsito, automóveis, circulação e outros problemas que vieram a nascer quando ela já estava velha. O Sr. José Antônio Gonçalves de Melo, Neto, no seu ‘Tempos de Flamengos’, transcreve uma memória do Príncipe Maurício de Nassau ensinando a replantar árvores adultas. O ex-governador do Brasil Holandês transplantara dois mil coqueiros, de 60 e 70 pés de altura, para o parque do seu palácio no Recife, o Palácio das Torres. E confessa ter, em sua vida, plantado ou replantado mais de 400.000 árvores. É um dos títulos mais bonitos que o velho Nassau-Siegen possui aos meus olhos.
Natal, há vinte e cinco anos passados, tinha arborização razoável. Atendendo a ensolarização de uma cidade tropical, certas ruas possuíam alas de mongubeiras, moldurando-as em toda extensão. Da Praça Carlos Gomes até a Rua Juvino Barreto corriam, paralelas, suas filas de árvores, copadas. Toda a Avenida Jundiaí era arborizada, densamente, em ambos os lados. À Praça Augusto Severo, pelada atualmente como uma cabeça calva, era um parque delicioso. Um arquiteto, amoroso das árvores, Herculano Ramos, repetira o Príncipe de Nassau, trazendo árvores velhas, árvores adultas, e replantando-as. Do dia para a noite, em vez de um pântano onde as rãs coaxavam, nasceu um parque digno das saudades que desperta.
Diante do Hotel Avenida, na Duque de Caxias, nesse tempo Avenida Sachet, Herculano Ramos trouxe um trapiazeiro enorme e plantou-o.
Houve um episódio que divertiu a cidade inteira. Herculano tinha bigodes enormes, bigodes de guerreiro gaulês, longos, pendentes. O Capitão Brito, do Batalhão de Segurança, usava uma barba cerrada, comprida, barba de Rei da Assíria. Brito apostou a barba contra o bigode de Herculano Ramos como o trapiazeiro não resistia a mudança e havia de morrer. Meses depois Herculano viajou. Voltando, Brito foi recebê-lo a bordo, entregando-lhe a barba. O trapiazeiro vivia. A penitência foi trocada por duas dúzias de cerveja. O trapiazeiro, anos depois, foi destruído a machado.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 8 de setembro de 1947



MIL HOMENS

Onde está a Escola Doméstica havia, no meu tempo de menino, uns alicerces escuros e povoados de mato. Era ponto de briga infantil e do amor adulto. Hoje o amor não escolhe ponto e tem a cidade inteira por mensagem. E é assim mesmo com a briga.
No governo Ferreira Chaves, 1914 – 1930, construíram a Escola Doméstica. Antes, durante um ano, houve uma espécie de armazém com curiosidades enviadas ao Governador pelos amigos. Era tanta curiosidade que o salão encheu e a Vila Cincinato, hoje Potiguar, não cabia os testemunhos de amizade. Um desses presentes era uma onça. Uma onça pequena. Não muito pequena, mas de garras prontas, rosnando sempre, fazendo caretas e tufando os bigodes quando alguém se aproximava da jaula. Um dia a onça se soltou. Imagem o pânico. Polícia procurando, pavor, o medo se espalhando como um mau cheiro. Finalmente descobriram que a onça estava pouco distante da jaula, escondida, acoroada num bosquezinho, dentro das divisões do alicerce. Fez-se uma expedição.
Um camarada forte, alegre, de imenso bigode branco, com um chapéu de palha de mandarim, irradiando simpatia, naturalidade, acompanhou a expedição. Chegou, mostraram a onça, franzindo o focinho, rosnando. O camarada sorriu, deu uns passos, rindo:- isso é lá bicho para dar trabalho a homem!...Foi e grudou, com a mão a onça pelo pescoço, como um gato desmoralizado. E levou-a, suspensa, rosnando, humilhada, rebaixada ao posto melancólico de animal doméstico. A oncinha arranhara-o nos pulsos e no braço, mas o camarada, sem perder o riso, levou-a sacudindo-a dentro da jaula. Perguntei, suando de emoção entusiasta:- quem é, hein, quem é? – Não conhece? Antônio Milhomem! Era um velho amigo de meu Pai. Ia à nossa casa. Foi o meu primeiro herói. O homem forte, simples, natural, sereno, na convicção tranqüila da coragem, da confiança pessoal.
No meu tempo não havia esse herói imaginário de agora, mentira de desenho, Super-Homem, Capitão Marvel, gente que apanha avião no ar e bota navio debaixo do braço. Os heróis eram raros, mas verdadeiros, de carne e osso, valendo no heroísmo relativo mais verídico.
Antônio Milhomem faleceu a 12 de Janeiro de 1934, com mais de 70 anos. Era uma fisionomia humana e sugestiva que ficou na minha memória.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 14 de agosto de 1947



JORNALISTAS VELHOS...

A Associação Norte Rio-Grandense tem todos os elementos para evocar as fisionomias dos velhos colegas de outrora.
Não é compreensível que continue esse silêncio dado a morte civil, a segunda e pior morte que é o olvido aos jornalistas do passado, iniciadores das atividades da Província e mantenedores do espírito livre de propaganda e de discussão, de exame e de crítica nos limites espirituais da época. Com imprensa, há cento e quinze anos, há necessariamente muito nome digno de uma simpatia e merecedor duma ressurreição.
Para que alguém se detenha para estudar essas sombras tão poderosas e temidas outrora, acompanhar-lhes vida, ação e pensamento, fazer viver o ambiente, com as idéias vitoriosas do tempo, seus amores e paixões, é preciso existir um liame prendendo o morto ao vivo, um sutil e resistente fio moral que reúne na mesma afetuosa lembrança os desaparecidos elos da mesma cadeia de força e de coragem cultural e política, numa continuidade de esforço. A Associação Norte Rio-Grandense de Imprensa, que assisti fundar e assinei sua ata inicial no salão da saudosa A REPÚBLICA, é sociedade de classe para defender os companheiros vivos e também um instituto de cultura para estudar os confrades mortos.
Não merece nome de associação a que fixar um problema apenas por um ângulo. Como não há corpo unidimensional, é impossível que a memória não traga até a própria ação, nomes, datas, gestos, movimentos daqueles que constituíram a forma vivente da classe, sua velocidade inicial; os que começaram andando, sonhando, sofrendo no caminho que nós continuamos pisando em cima de xique-xique e mussambé, flor macia de espirradeira e bordos agudos de caco de vidro. No meio de tudo há sempre alegria, entusiasmo, esperança, fé. Não somos maiores nem menores que os antepassados ou os contemporâneos, patrícios e estrangeiros. Somos intrinsecamente idênticos. Reagindo na mecânica dos mesmos interesses, aquecidos por um calor mais ou menos intensivo de idealismo.
A melhor, a mais profunda, natural e positiva maneira de provarmos a posse de uma ‘consciência’ na atividade exercida é a memória, a homenagem aos PRIMEIROS, aos VELHOS, as águas que vinham de nascente e de que somos a foz antes da dispersão no oceano sem praias...
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 13 de agosto de 1947



SENSACIONALISMO DA BANALIDADE

Toda a vez que se pretende diminuir a exploração da notícia sensacional em matéria criminosa há uma tempestade.
Diz-se que há um assalto à liberdade no registro do hediondo e do repugnante. Não é surpresa nem descoberta mirabolante a sugestão desses assuntos para a proliferação do crime por um dos elementos mais poderosos e psicologicamente irresistíveis:- a força da imitação. Fotografias minuciosas de cenas de sangue, registros pormenorizados de violências e brutalidades, aparatosa encenação de fotógrafos e repórteres, dedicando-se páginas inteiras de revistas e jornais a um ladrão, um gatuno, a um malandro valentão fazem de Zé da Ilha, Dois-e-meio, Bicudo, glórias vivas atiradas à notoriedade com o lastro de notícias, telegramas e filmes. Já não cito aqui os nomes do pé, maravilhas de todas as cores, cuja glória, financiada tecnicamente, coloca seus cultores na fila máxima das atividades admirativas.
Sabemos muito bem que é uma evidência de círculo vicioso. A popularidade é mantida pela propaganda e esta é sustentada pela popularidade. A função justifica o órgão. Mesmo que essa função seja indispensável é desculpável porque é popular. É a lógica dos-que-gostam. Com papel caro, tinta caríssima, mão de obra de altura astronômica, uma notícia extensa sobre crimes, alastrando-se em colunas e colunas, custa bastante. Mas o público quer esse acepipe ácido, indispensável ao seu estômago. O jornal serve o que a fome coletiva exige.
Curiosamente, em todos os congressos jornalísticos do mundo, em todas as sessões de clubes, associações, institutos, sociedades e círculos jornalísticos de qualquer parte insular ou continental, todos, do diretor ao revisor, do linotipista ao pessoal da distribuição e gerência sabem, defendem e declaram que o Jornal é, antes de tudo, acima de tudo, no fim de tudo, um elemento de educação, um auxílio à educação. Se estamos sem contrariar, sem corrigir, sem desviar, sem opor à corrente humana a crítica, o reparo, a sugestão, o esclarecimento, deixando que se processe o deslocamento da massa pela sua própria impulsão desagregatória, onde anda o princípio de educação sob cuja égide vive a imprensa?
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 31 de julho de 1947



INQUIETAÇÃO LITERÁRIA
Escrevendo de Lausanne para um amigo, Henrique Castriciano acusava a inquietação do letrado e do semi-letrado como responsável pela confusão dos domínios educacionais. Há, para quem recebe o primeiro verniz literário, a falsa sensação de superioridade, uma unção distanciadora do ‘comum’ e do ‘habitual’. Julga-se pertencer à uma classe nova, privilegiada, distinta das demais, podendo ostentar as insígnias de posto indiscutido e real.
H. Castriciano não aplicava a teoria nesse setor mas na displicência, na ausência de espírito público de colaboração, na preguiça com que assistimos as grandes iniciativas nascerem e testemunhamos sua morte sem um gesto de auxílio.
Para nós o Governo deve fazer tudo, prever tudo, inesgotável de recursos e de espírito divinatório, chegando a prever o que nos cabia realizar e defender.
Essa inquietação explica pela fragilidade de sua base cultural, o instinto crítico insopitável, esse prurido de expor, revolver, examinar o esforço alheio mesmo sem a mais longínqua possibilidade de corrigi-lo ou melhorá-lo. Não se trata de remendão dizendo seu reparo ao quadro de Apele mas de tentativa constante desses juízos. O remendão grego, que Plínio registrou na sua História Natural, 35, 36, calou-se ouvindo a admoestação do pintor. Suponhamos que continua-se falando e criticando do sapato para cima até o cucuruto da cabeça, inconsciente e obstinado na liberdade do comentário dispensável, inútil, ridículo. Essa atitude é um fruto da inquietação literária que, como vinho novo, sobe depressa à cabeça quando esgotada a primeira taça.
A felicidade da improvisação crítica sem os fundamentos da cultura mas apenas como expressão do gosto pessoal, da sensibilidade individual, da maneira de ver do leitor, poderá constituir critério apreciativo, fórmula valorizante da obra literária. Se há quem negue, a crítica concebida nos modelos da invenção e da mobilidade mental...
Esses comentários vêm com achega no momento em que se discute a maior ou menor influência do mestiçamento nos processos da aculturação brasileira. Dou ao mestiço como responsável por esse método de maravilhosa rapidez aquisitiva, ligação, aglutinamento de todos os valores, amalgamados, confusos, úteis e inúteis ao conhecimento, à ciência que é a sabedoria serena, como dizem os chineses. A inquietação literária corresponderá ao que se chama ‘sangue novo’ na etiologia social e popular.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 28 de julho de 1947



MESTRE AFRÂNIO

Sócrates negava o poder da Morte. Para ele a verdadeira Morte era o Esquecimento. A morte pode retirar a criatura da vida e colocá-la, inteirinha, dentro de um pensamento pelo milagre da saudade e pelo processo da memória. O esquecimento envolve o nome num manto de cinza. E cada dia nova chuva de cinzas cai do céu, reforçando as camadas que separam quem viveu dos que vivem.
Não, estou assombrado com o meio silêncio, as primeiras cinzas, sobre o túmulo que se abriu em janeiro para guardar Afrânio Peixoto, meu velho amigo professor de animação e estímulo, Mestre Afrânio como sempre o chamei.
Professor de Higiene e de Medicina Legal, ‘emeritus’ em várias Universidades, poeta, crítico, romancista, orador, ensaísta raro, foi, acima de tudo, um ‘scholar’, um letrado, um ‘clérigo’, como se dizia outrora. Teve a ciência diluída, pronta, apta ao serviço imediato da cultura, a palavra fácil, colorida, vibrante, capaz de retirá-la dos escaninhos do cérebro e acudi-la, como um relâmpago, amplo e luminoso, nos olhos de todos, já materializado, tornado matéria rutilante.
Sabia de tudo, entendia tudo, pensara em tudo. Tinha um raciocínio para todas as faces do problema humano. E também a coragem de dizer.
Teve o heroísmo de ir contra a corrente, recolocar o homem que a adoração vai transformando em tabu, na posição lógica e terrena de apreciação e discordância. Mostrou um panorama do movimento bandeirante noutro ângulo da visada, diverso do comum e do que se tornou oficial. Evidenciou que a sociologia de Euclides da Cunha, o pensamento, o protesto euclideano, é inteiramente distanciado das miras onde o imobilizaram. Euclides, tribuno do povo, elevou o jagunço de Antônio Conselheiro para o plano heróico, estudando as raízes psicológicas de sua vitalidade moral, mantidas pela austeridade espartana da alimentação e pelo esforço diário no trabalho, resignação e vontade viva em face dos elementos contrários.
Afrânio Peixoto, não somente era e seria bastante, um grande professor, digno de Oxford e de Harvard, um estudioso de História, Folk Lore, o primeiro camoniano do Brasil, mas exerceu a profissão com alegria de servir e de criar inteligências, determinando o hábito da observação e da documentação pessoal. Ironista sutil, imenso coração, viveu na intensidade que esperava de Deus.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 16 de junho de 1947



TRISTE FIM DAS CASAS ILUSTRES

Uma das mais lindas Casas Grandes do Rio Grande do Norte desabou e está desaparecendo. Foi um lugar de história viva e de festas esplêndidas. A região está cheia de lendas e de tradições encantadoras. Exerceu, durante anos, uma sugestão suprema de elegância e de bom gosto. Era a casa-grande de Ferreiro Torto, perto de Macaíba.
Os holandeses já encontraram o engenho de fogo-morto em 1633. Até o século XIX aquartelou os famosos Terços dos Paulistas. Em meados da centúria ergueu-se a residência ampla, imponente, confortável. Manteve um espírito senhorial de alegria, distinção, comunicabilidade.
Morreu sem merecer um registro maior. Não apareceu quem recordasse a casa de Ferreiro Torto. Breve conversarei sobre ela.
Fico pensando noutras casas históricas ou tornadas históricas pelo nascimento de glórias culturais. Sempre são defendidas e transformadas em pequenos museus de recordação, guardando relíquias do escritor ou do músico, do artista nascido entre aquelas paredes. Os ingleses e norte-americanos possuem centos desses sugestivos ‘Hallas Collection’ e ‘Memoriais’ destinados a manter no espírito popular, na alma das crianças, a presença do nome cultuado.
No Rio de Janeiro há a casa de Rui Barbosa, antiga residência do mestre. Mas a casa onde Rui Barbosa nasceu em Baía, na própria capital do Estado, foi deixada desabar sem maiores gritos. Onde Machado de Assis residiu tantos anos e escreveu tantos livros e onde morreu, a casa na rua do Cosmo Velho, já existe, vendida, derrubada, substituída por palacete particular. Tudo se processou num ambiente de desinteresse sereno, de risonha displicência, de conformismo superior.
Em Natal, localizou-se a casa do nascimento de Ferreira Itajubá. As do nascimento e morte de Segundo Wanderley desapareceram, a primeira está na praça Sete de Setembro e a segunda onde se ergueu o Centro de Saúde. Onde faleceu Auta de Souza devia merecer, urgentemente, uma placa e aqui deixo o meu apelo à Academia.
Possa um pedido sereno do pintor José Pancetti, dirigido ao governador do estado do Rio de Janeiro, evitar que a casa onde nasceu Casimiro de Abreu, em Barra de São João continue sendo visitada pelas cobras e esperando no Tempo os benefícios do desabamento.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 24 de julho de 1947



O TONEL DAS DANAIDES

As Danaides eram cinqüenta filhas de Danao, rei de Argos. Seu irmão, Egito, tinha cinqüenta filhos. Mandou a filharada masculina casar com as primas. Danao não queria o casamento. Combinou com as filhas um plano.
Os cinqüenta recém-casados tiveram a mais estranha noite de núpcias de que há notícias no mundo.
Foram todos assassinados pelas esposas. Só escapou um, Linceu, poupado por sua mulher, Hipernestra.
Júpiter condenou as Danaides às penas do Tártaro, que era o inferno daquele tempo.
As Danaides enchiam um tonel sem fundo. Séculos e séculos, sem pausa, sem descanso, sem interrupção, as moças carregaram água, despejando-a no barril furado.
Teodoro de Banville contou o fim dessas Danaides, na Lanterna Mágica.
Os Titãs venceram os Deuses. O Tártaro ficou sem chefe, despovoado de sofredores, todos perdoados.
Astério anuncia a terminação da sentença:
- Acabou vosso suplício. Largai essa penitência. O tonel está cheio.
As Danaides pararam, pela primeira vez, há milênios. Enxugaram a fronte, descendo as bilhas infatigáveis. E dizem confusas e desapontadas:
- Está cheio o tonel? Pois bem! Que havemos de fazer?
Já estavam habituadas com o trabalho contínuo, mesmo inútil.
Não perguntem, pois, amigos, por que escrevo sempre, com ou sem leitores, com ou sem compreensão, estímulo ou tolerância.
Deixem-me com o meu barril sem fundo. A tarefa finda significaria o repouso incômodo, a displicência, a preguiça mortal.
Por isso, mesmo sem ter ofendido Apolo, encho, obstinado e tranqüilo, a talha imperfeita, escondido num recanto de província.
Quando não mais ouvirem o rumor da água agitada, não se dirá que Júpiter sucumbiu.
Será que, para sempre, desfaleceu na Morte, o braço humilde do trabalhador...
Luís da Câmara Cascudo
A República, 25 de setembro de 1943



A CAPELA DE CUNHAÚ

Na tarde de 15 de novembro evoquei a história da Capela de Cunhaú diante das moças do Club Maria de La Luz, olhando as ruínas, vendo as nódoas de cera das velas votivas. Há trezentos anos que as populações vizinhas, do vizinhário, mantêm culto teimoso às ALMAS SANTAS DE CUNHAÚ. Como os bretões, os norte-rio-grandenses do agreste, canonizaram os seus santos, alheios ainda ao antropomorfismo das representações materiais.
Fiquei com Edgar Barbosa, perdão, com o Juiz de Direito Edgar Barbosa trocando mágoas pelo abandono das ruínas. E acalorados fizemos pacto de uma campanha obstinada pela defesa das ruínas, duplamente sagradas pelo heroísmo da Fé e do Martírio, até que se estabeleça a capelinha modesta e para ela volte, em lenta procissão romântica, a doce Nossa Senhora das Candeias, que testemunhou o massacre de 16 de julho de 1645.
Juro à fé do meu grau que há muitos anos me bato por esse ideal como Dom Quixote por Dulcinéia del Toboso. Já escrevi, falei e pedi a meio mundo. O Forte dos Reis Magos e a capela de Cunhaú têm sido constantes tão vivas e permanentes na minha atividade provinciana como dois movimentos fisiológicos da respiração.
Agora volto ao campo, rearmado de coragem e com um companheiro, cavalgando outro rossinante, lado a lado, na campanha da teimosia bem intencionada. A Capela de Cunhaú é o santuário do Rio Grande do Norte. Lugar de morte pelo ódio e em louvor da fidelidade à tríade antiga consagradora, a Deus, ao Rei e à Família. A Pátria, terra dos pais, era a soma desses elementos.
Será possível a continuação desse abandono injustificado? Tanta verba espalhada e nessa chuva benéfica de ouro não caberão algumas moedas na mãozinha branca de Nossa Senhora das Candeias?
Cunhaú se reergueria com pouco dinheiro. Um técnico do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional daria conta imediata dos problemas que são pequeninos e mínimos. Os auxílios haviam de vir de toda parte. Todos os homens, todas as mulheres, todas as crianças de Canguaretama, ajudariam com o possível.
Ninguém vai esperar, num colapso de burrice herética, a recusa a um apoio à Capela histórica, sagrada, tradicional e evocadora. Creio firmemente que os senhores Bispos de Caicó e de Mossoró emprestariam todo o apoio. De cada paróquia do Rio Grande do Norte havia de vir uma pedra, com o nome da Paróquia, solidárias para a reconstrução da velha e gloriosa Capelinha mutilada. E no dia da consagração, Pontifical, com três Bispos!
Vamos galopar, Edgar Barbosa, lança na mão, contra os moinhos cujas asas se movem, mas não saem do lugar...
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 3 de dezembro de 1949



PATAVINA

Que quer dizer patavina? Coisa nenhuma. Nada. Reforça a frase em que se nega o conhecimento de alguém. Ele não sabe patavina de História, dirá que o criticado é mesmo jejuno de assuntos históricos.
De onde virá o “patavina”?
Vem de longe, no tempo e na história, merecendo recordação.
As palavras, como tudo nesse mundo, têm sua história, seu passado, através da memória humana. A pressa em que vivemos, encurtando a existência e voando para a morte, afasta muito curioso, muita informação deliciosa.
Curioso é que Patavina significava vocábulo relativo aos motivos materiais e culturais alusivos à moeda e não ao conhecimento intelectual como atualmente usamos.
Até o século XV era popularíssimo o jogral do vagabundo músico que ia de castelo em castelo, de povoação em povoação, de feira em feira, contando estórias ou cantando rimances de cavalaria, aventuras espantosas de cavaleiros andantes que venciam dragões e exércitos, defendendo os humildes, os pobres, os oprimidos, vivendo por sua Dama. Esses rimances, chamados pelos franceses chanson de geste povoavam de encanto o espírito das populações e o pensamento dos fidalgos, nas altas salas dos castelos que coroavam montanhas.
Ouvir uma canção ou uma estória era delícia para todo infansão, rico-homem, burguês, vilão ou servo de gleba. Se um jogral chegava a uma parada sem dinheiro para satisfazer ao pedágio exigido, bastava entoar uma canção. Estava pago o direito ao trânsito. Havia uma Ordennance que autorizava essa moeda maravilhosa na França, na dulce France dos cours d’amour e jogos florais, das línguas d’Oil e d’Oc.
Naqueles tempos, que muita gente ilustre chama de ignominiosos tempos e épocas de obscurantismo, a Idade Média, pagava-se direito e posse com a moeda divina da palavra, cantando uma canção ou contando uma estória. Santa Rosa de Viterbo informou, no ELUCIDÁRIO, que em 1193, El-Rei Dom Sancho 1° de Portugal, doou um casal em Canelas de Poiáres do Douro aos farsantes (que representavam farsas, pantomimas, entremezes, pequenas comédias cômicas) Bonamis e seu irmão.
Acompanhado em troca de um arremedilho, debemus Domino nostro Regi pro roboratione unum arremedillum. Arremedilho era uma farsa mímica, uma comédia sem palavras, apenas vivida na gesticulação, gênero que os Romanos adoravam.
Nesse ambiente de jogral e jogralice nascera ‘patavina’, de poitevine, poitevin, de Poitiers, capital de Poitou, na França, terra de jograis afamados. Cunhava-se a poitevine, moeda com que se pagava o jogral. A Poitevine, Potevina, Patavina, valia um ceitil, dizendo de sua insignificância como unidade.
Teófilo Braga, no volume da Introdução à História da Literatura Portuguesa, Porto, 1870, 199 páginas, ensina: -“A moeda com que no século XIII se pagava aos jograis que vulgarizavam as Canções de Gesta, era uma espécie de ceitil chamado poitevine; na nossa gíria popular ainda se emprega a palavra patavina como sinal do diminuto valor de uma coisa”.
Dessa “patavina”, Camilo Castelo Branco criou o patavinice, sinônimo de ignorância e parvoíce.
Essa é a História da Patavina. Não é muito popular mesmo para os letrados profissionais. Ainda em 1913, Cândido de Figueiredo ignorava-a...
Luís da Câmara Cascudo
A República, 1° de novembro de 1944



OLHOS DA CIDADE...

Uma cidade olha para os horizontes livres, para a paisagem bonita ao redor, com os olhos dos miradouros. São lugares abertos, mirantes com pérgolas, com alguns bancos, um recanto oferecido para a visão panorâmica dos arredores citadinos.
Quando uma cidade cresce, subindo e descendo as colinas, cobrindo com o casario as eminências e declives, é natural que o habitante pobre ou rico tenha o direito a uma impressão de beleza, tanto mais rara quanto maior a cidade se torna.
Os moradores ricos escolhem os pontos mais pitorescos e erguem as residências olhando o rio, o mar, a montanha, o infinito. E chamamos a esse elemento A VISTA, isto é, OLHOS. Dizemos:- a casa de fulano tem uma vista lindíssima.
Aqueles que não têm dinheiro ficam obrigados a dispensar a vista sobre os aspectos sugestivos da cidade.
Atualmente o direito humano vai alcançando essas prerrogativas que eram privilégios alheios. O morador mais pobre está pedindo também que a Cidade lhe dê uma Vista, um ponto bonito, uma alegria visual, interrompendo a melancolia do labor diário, do trágico-cotidiano, como dizia Maeterlinck.
A valorização dos terrenos ergue a vaidade humana pelas orelhas e a leva até perto das estrelas. Pelo gosto natural da burguesia não havia jardim público nem parque, nem alameda, nem miradouro. Tudo era terreno-para-construir. Interessa apenas o individual, o dependente da vontade personalíssima. Quem irá lembrar-se do direito de alguém ter diante dos olhos uma paisagem ridente ou um muro banal?
Essa possibilidade está se firmando como um direito natural, uma das prerrogativas de qualquer criatura humana.
As cidades começaram a oferecer aos seus moradores as perspectivas indefinidas da paisagem circunjacente. São os Miradouros.
Diga-se que o Miradouro não é um direito oferecido ao turista, ao viajante, ao estrangeiro, mas ao homem da cidade, ao morador, ao habitante, o elemento diário e comum.
Possa esse direito afirmar-se ao lado do patrimônio natural da cultura, como um fato visível e próprio da cidade moderna.
Luís da Câmara Cascudo
Diário de Natal, 5 de janeiro de 1947



O LUTO FOI BRANCO?

Antigamente o luto era vestir-se uma pessoa de branco ou de preto?
O luto era vestir-se de branco.
O branco era a cor da homenagem aos Mortos. Em Portugal o uso se manteve por séculos e séculos.
Em Castelha o luto era a roupa negra. Como havia estreita e ativa comunicação entre os dois países, com marcada influência castelhana, a moda começou a dominar os portugueses. Mas exigiu centenas de anos para que o velho costume desaparecesse.
A rainha Dona Leonor Teles, em 1383, usou vestido negro pela morte do seu marido, El-Rei D. Fernando.
Em Toledo, nas exéquias, o rei de Castelha, genro do morto, e sua mulher, vestiam preto, mas todos os fidalgos portugueses compareceram de branco.
O vestido negro dizia pano de doo, de dó, dolum. O luto branco era o burel, de linho alvo. Os castelhanos usavam o doo e os portugueses o burel.
No enterro Del-Rei D. João I, em 1433, o rei D. Duarte assistiu de doo, negro. Seus irmãos, os infantes, de burel, branco.
Assim, no século XV ainda o modo do luto negro estava indecisa na Corte portuguesa, entre os próprios membros da família real.
Em 1521, Dia de Santa Luzia, 13 de dezembro, morreu Dom Manuel o venturoso, rei que vira o caminho para as Índias e o achamento da Ilha de Vera Cruz, povoada de ibirapitangas preciosas. O corpo do rei foi transladado com dois mil cavaleiros e seiscentas tochas. O povo acompanhou no pranto como se usava.
Um poeta da Corte, Garcia de Resende, achou que as lamentações não correspondiam ao grande soberano. E sabem por quê? Porque o burel, isto é, o luto branco, tinha sido defendido (proibido) e só podia usar o doo, luto negro, tal qual em nossos dias.
Na estrofe 260 da MISCELANEA, informa o poeta:
Vimos gram pranto fazer
pelos Reis quando morriam;
burel, grande doo trazer,
causa muy digna de ser
pois tam gram perda perdiam.
Vimos burel defendido,
e vimos pouco sentido
um Rei que depois morreu,
porque o doo se perdeu,
foi também nojo perdido.
Está claro que a mágoa do povo era a perda de uma tradição imemorial, obrigada pelas leis, leis contra o uso, fonte delas.
Apesar dessa legislação, no século em que o Brasil foi colonizado, o luto branco continuou.
Vestígios dessa tradição ainda são visíveis nos usos e costumes no interior do Brasil.
Luís da Câmara Cascudo
A República, 17 de abril de 1945



SAPATO EMBORCADO

Sancho Pansa não acreditava nas bruxas, mas tinha medo delas. Yo no lo creo em las brujas, pero que las hay, las hay, dizia.
Nós tão civilizados que estamos destruindo um Mundo para construir outro à nossa imagem e semelhança, estamos fiéis à longa noite do Passado. Milhares de anos passaram por nós. Civilizações, doutrinas, religiões sucederam-se. Nós somos um resumo dessa sucessão de Mundos desaparecidos. De todos guardamos alguma coisa. Resquício, traços. Superstições. A superstição é um vestígio de uma religião que morreu. Ficamos com um ou outro elemento, como se conservássemos folhas secas em recordação de uma época que passara em nossa lembrança. Nem tudo morre, dizia Horácio, há dois mil anos. Muita coisa resiste ao que chamava Ferreira Itajubá, a cheia assoladora dos anos...
Nós ficamos com gestos, idiossincrasias, recalques. Não sabemos porque. Não imaginamos a força do subconsciente, dominador, na voz surda, irresistível, do instinto. Um desses gestos incontidos, maquinais, alheios à vontade disciplinadora, é repor na posição natural o sapato que se emborcou. Por quê? Ninguém sabe. Apenas não é bom o sapato emborcado. E por que não é bom? E por que essa pressa com que a mão cuidadosa se estende para repô-lo onde e como devia ficar?
É um vestígio de organização social milenar. Todo o Mundo que ambientava o conceito sociológico, psicológico, político, religioso, concordante, desceu para as profundas do abismo da História. Resta um ou outro motivo, boiando a tona da civilização do século XX.
O sapato emborcado é um desses derelictos sem rumo, encalhados no automatismo de nosso mecanismo nervoso. A sandália, o sapato, a bota é a imagem do pé. O pé, fundamento, sustentação e base do corpo, está com a palmilha para baixo quando estamos na vertical. Quando está horizontal, estamos nós deitados. E se a palmilha estiver para cima em que posição estará o corpo? Estaríamos com a cabeça para baixo.
Vindo das civilizações orientais para o Império Romano, houve, durante séculos, o martírio da crucificação e da penduração pelos pés, com a cabeça para baixo. Era a morte oprobidosa, humilhante, a degradação. Havia o suplício dos pobres, degolação pela espada. A degolação pelo machado era a dos pobres, criminosos comuns.
Jesus Cristo foi crucificado com a cabeça para o alto, entre dois ladrões. A cruz era suplício dos mais humildes e resteiros condenados.
Com a cabeça para baixo ainda era situação mais inferior aos olhos fiscais do direito consuetudinário.
Como o criminoso havia sido supliciado com a cabeça para baixo, no lugar dos pés, punham-lhe na sepultura (quando a família ou alguém requeria o cadáver abandonado) o calçado do uso, mas na posição invertida, emborcado. Assim foi martirizado São Pedro, o primeiro Papa.
Sapato emborcado era sinal desse opróbio horribilíssimo. Quando, casualmente, uma sandália virava para o chão, imediatamente o cidadão romano a desvirava, afastando o agouro...
Hoje, sem se saber porque, ninguém encontra sapato emborcado que não o revire, dizendo, abaixo:- Deus te livre...
Esta é a História do sapato emborcado. Apesar de tudo nós somos como o velho e querido Sancho Pansa:- temos medo do que dizemos não existir...
Luís da Câmara Cascudo
A República, 31 de dezembro de 1944



O QUE QUER DIZER “ACTA DIURNA”?

Perguntam a mim porque dei semelhante título a esta secção. Que quer dizer ACTA DIURNA?
ACTA DIURNA era uma espécie de jornal diário, uma folha onde os acontecimentos do dia eram fixados pelas autoridades de Roma, para conhecimento do povo. Pregavam-na a uma parede num dos edifícios do FÓRUM. No ano 131, antes de Cristo, já existia a ACTA DIURNA, informando ao cidadão romano as ‘novidades’ ou diretivas governamentais.
Júlio César, cinqüenta e nove anos antes do nascimento de Cristo tornou a ACTA DIURNA oficial, de aposição obrigatória num determinado logradouro público.
Conservo o título em latim. Por isso aparece o ACTA com a segunda consoante do alfabeto. ACTA significa, no latim, ações, obras, feitos, façanhas. DIURNA é o que se pratica sob o sol, no espaço de um dia, ou diariamente.
Suetônio, que bem conheceu a ACTA DIURNA, dizia-a efemérides diárias, o registro dos sucessos urbanos, políticos e administrativos, sociais ou literários. A minha é uma ACTA DIURNA que recorda o pensamento que presidiu meu dia. Fixo a minha impressão diária sobre o livro, uma figura ou um episódio, atual ou antigo.
Dei-lhe batismo latino porque a intenção cultural é honrar o passado, nas suas lutas, alegrias, tragédias e curiosidades. E, se matéria nova aparece, comentada, é ainda o desejo de conservá-la no tempo para os olhos amigos de alguns leitores fiéis, nas páginas tradicionais d’A República, o mais velho dos jornais conterrâneos.
Luís da Câmara Cascudo
A República, 03 de agosto de 1943

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