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domingo, 22 de agosto de 2010

FLORBELA ESPANCA

E A RECRIAÇÃO DOS CANTARES DE AMIGO MEDIEVAIS


Jussara Neves Rezende
Doutora em Letras pela FFLCH/USP, área de Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa.


Embora contemporânea dos artistas que instalaram em Portugal o espírito do Modernismo, Florbela Espanca (1894–1930) nunca se associou a eles, mantendo-se fiel ao lirismo de fundo simbolista que ainda impregnava a Europa no início do século XX. Apesar disso, a poetisa portuguesa foi extremamente inovadora ao dar voz a desejos femininos até então reprimidos, ao referir os próprios atributos físicos como forma de atrair o amado e ao questionar o moralismo das instituições religiosas. Numa época em que a moral cristã e burguesa calcava na culpa e no pecado a vivência do desejo, separando como inconciliáveis espírito e corpo, Florbela associa religiosidade e erotismo, apresentando a experiência amorosa como resultante da ação divina e, portanto, como tendo caráter sagrado.
Nota-se em vários sonetos de Florbela que o apelo que esta apresenta ao ser amado liga-se ao fato de que é transitória a vida e que, portanto, o momento a ser vivido, o da exuberância da juventude, quando os lábios são “Papoilas... a florir”, como no soneto “Mocidade”, deve ser aproveitado. A forma para isto, no entanto, tem que ser tão esplêndida/vibrante/ardente/extraordinária/ audaciosa (adjetivos utilizados pela poetisa para qualificar esse período da juventude) quanto a mocidade, de modo a suprir, “doida” e “estonteadoramente” a pequenez do coração (“o coração da gente/ É tão pequeno”) e a fugacidade da vida (“e a vida, água a fugir”).
O apelo ao amor, nos últimos versos desse soneto, claramente marcado pelo uso do verbo no imperativo e pelo vocativo (“Ama-me doida, estonteadoramente,/ Ó meu Amor!”), vem carregado, portanto, de hedonismo e do sentido do carpe diem horaciano, segundo o qual colher o dia, aproveitá-lo, é o que de mais sábio se pode fazer frente à passagem das horas.
Em “Passeio ao campo”, a seguir transcrito, a expressão “Colhe a hora que passa”, que se segue aos vocativos usados no primeiro verso para atrair a atenção do amado, é clara referência ao carpe diem. Não só a feminilidade do eu está aí claramente marcada (“Sou menina!”), quanto a variação no uso dos vocábulos que evocam o amado (Amor/Amante/Amigo) e o próprio convite que lhe é feito lembram a forma com que as moças das cantigas de amigo medievais se dirigiam aos namorados:

Meu Amor! meu Amante! Meu amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
– Vamos correr e rir por entre o trigo! –

Há rendas de gramíneas pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...

E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras!...

O apelo feito ao amado nos versos iniciais para que seja aproveitada, colhida, “a hora que passa”, torna-se um convite abertamente sensual no verso 3 quando convida-o para beber dentro de si e consigo a hora fugidia, chamando-a mesmo de divina, o que confirma a mencionada ligação entre erótico e sagrado.
A auto-caracterização da mulher nestes versos, através da qual esta se apresenta como objeto de desejo, inicia-se na linha 4, com a valorização de seus atrativos, e continua na segunda quadra com a descrição de sua cintura, pele e mãos. Referidos os seus atributos, o eu reitera na linha 8 o convite ao amor e passa a descrever, no primeiro terceto, a exuberante natureza que o rodeia e que, por sua fertilidade (pois estão floridos os montes, maduros os trigais e as fontes cintilam), parece lembrar que o tempo é propício ao amor. A descrição da fértil natureza funciona como uma confirmação do convite já feito que fica ainda mais explícito, no segundo terceto, com a fusão das “duas sombras” num só astro, metáfora que revela o desejo de contato físico que sente a mulher que propõe o passeio ao campo e, ao mesmo tempo, sua visão do amor como luz suficiente para elidir a escuridão.
O embrião do procedimento literário que consiste em fundir sinais de uma oferta sensual a um convite para um passeio ao campo, onde será possível “correr e rir por entre o trigo”, encontra-se, como já se referiu, nas cantigas de amigo medievais. Talvez seja possível, no entanto, pensar tal procedimento como vindo de mais distante no tempo, uma vez que não só o passeio pelo campo, mas a descrição física que valoriza o eu-lírico, lembra a Esposa do Cântico dos Cânticos, de Salomão, que não apenas tem seus traços valorizados pelo homem que ama, como também os valoriza, incitando-o ao amor:

Eu sou morena e formosa,
ó filhas de Jerusalém.
................................................................
o meu nardo exala o seu perfume.
................................................................
Eu sou a rosa de Sarom,
o lírio dos vales.
................................................................
Vem, ó meu amado,
saiamos ao campo,
passemos as noites nas aldeias.
Levantemo-nos cedo de manhã
Para ir às vinhas;
vejamos se florescem as vides,

se se abre a flor,
se já brotam as romeiras,
dar-te-ei ali o meu amor.
...............................................................
Eu sou um muro,
E os meus seios, como as suas torres.

Tanto em Salomão, porém, quanto nas cantigas medievais, é um homem que escreve fingindo um sentimento feminino, enquanto em Florbela encontra-se a autêntica expressão de um desejo feminino de contato amoroso, o que faz com que sua poesia, ainda que não fosse esta sua intenção, quebre as regras do pacto social ao colocar em palavras expectativas não condizentes com os papéis culturais oferecidos à mulher na época em que viveu.
O convite sensual feito nos versos de Charneca em flor se torna ainda mais evidente em “Se tu viesses ver-me...”, soneto em que se explicita o desejo de que é tomada a mulher na ausência de quem ama:

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
A teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

O uso da condicional “Se”, no primeiro verso da primeira e da terceira estrofes, situa nos domínios das conjecturas o convite amoroso que percorre todos os versos do soneto. Não obstante, fica evidente já no final da primeira quadra o desejo de contato físico, pois a chegada do tu é aguardada para que prenda nos braços o eu que espera. Na quarta linha desta estrofe é particularmente sugestivo o uso das reticências por criar a impressão de que mais coisas poderiam ser ditas, ampliando o sentido do que é sugerido.
O modo de se referir à hora em que é feito o convite e em que se deseja o amante, ajuda a criar a atmosfera de sedução, pois o diminutivo ameniza o vocábulo tarde, tornando-o acariciante. Além disso, existe a proximidade da noite que, tanto por sua simbologia ligada ao sonho, ao mistério e à fecundidade, quanto pelo fato de chegar “de manso”, ajuda a compor a hora de espera em que até os cansaços adquirem inesperada magia.
A forma reticente da segunda estrofe coaduna-se com as lembranças que ocorrem ao eu-lírico da presença do amante, de seus beijos e abraços, como se essas memórias lhe viessem em fluxos, desordenadamente, avivando-lhe o desejo que, nos tercetos, em meio a descrições físicas do eu que discursa, é claramente desvendado.
O hipérbato utilizado no primeiro terceto leva para a última estrofe o sujeito da frase, “a minha boca”, realçando dessa maneira suas características já que a demora criada permite à poetisa a utilização do polissíndeto “E é de seda vermelha e canta e ri/ E é como um cravo ao sol” que, detalhando a boca, valoriza-a e reforça a atmosfera de sedução. Além disso, as palavras usadas na descrição da boca, mais do que apontarem sua beleza, indicam sua volúpia ao chamá-la de “louca” e compará-la a um cravo que se abre ao sol.
Na estrofe final as reticências uma vez mais sugerem a continuidade do que é dito e o desejo do eu-lírico é marcado textualmente no penúltimo verso.
Ainda sobre este soneto, convém observar que as lembranças referidas na segunda quadra cantam a memória de uma relação erótica feliz, já realizada, enquanto o presente vive da possibilidade da chegada do amante e da continuação da vivência de um prazer já conhecido. Quanto ao quiasmo, formado entre o último verso da primeira estrofe e o verso final do poema, ao repetir simetricamente as palavras, cruzando-as em forma de X (“E me prendesses toda nos teus braços e “E os meus braços se estendem para ti”), relaciona eu e tu, “teus braços” e “meus braços”, indicando o próprio relacionamento que o sensual convite pretende recuperar.
Ao reescrever no feminino os cantares de amigo em que a mulher, quase sempre uma camponesa, padece de coita (sofrimento) amorosa enquanto espera pelo namorado ausente, Florbela Espanca marca um momento histórico na literatura produzida por mulheres ao ousar se transformar em sujeito, apropriando-se e ao mesmo tempo transformando o discurso poético instituído.
Numa época em que o soneto era moda, a escritora se serve dessa forma tradicional para expressar o turbilhão de emoções represadas em seu íntimo e revelar o seu prazer ou desprazer, o seu recato ou sua ousadia e os reflexos, no corpo, dos momentos idealizados ou vividos de paixão.


Fonte: Revista da Academia Mineira de Letras, Ano 85, vol. XLVII. Belo Horizonte: Academia Mineira de Letras, abril- junho/2008, págs. 105-110.

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