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terça-feira, 24 de agosto de 2010

GILBERTO FREYRE

GILBERTO FREYRE: O HOMEM QUE DECIFROU O BRASIL

Falcão Lorem

Ninguém conseguia escrever seu nome sem colocar, na frente, o rótulo de sociólogo. Ele negava: ‘Sou escritor’. Chamavam-no reacionário, porque criticou Marx e defendeu o AI-5 como salvaguarda necessária para defender o Brasil de forças estrangeiras. Ele contra-atacava: “São os patrulheiros ideológicos que falam de mim. Eu sou um anarquista construtivo”.
Publicaram uma foto dele, com cinco alunos, todos nus, bebendo licor de pitanga junto a uma cachoeira, no interior do Ceará (ver boxe na próxima página). Ele não teve tempo de dizer o que pensava da publicação. O antropólogo, sociólogo e escritor pernambucano Gilberto Freyre morreu às 4h10min de 16 de julho, no Hospital Português de Recife, onde estava internado há uma semana com uma isquemia que lhe paralisou o lado direito do cérebro.
A morte de Gilberto Freyre foi lamentada pela imprensa carioca como a perda do maior explicador que o Brasil já teve para seus enigmas antropológicos e sociais. Foi ele que, com seu clássico Casa-Grande e Senzala, publicado em 1933, desmoralizou o mito racista que debitava o atraso do Brasil à miscigenação. Gilberto colocou na fervura toda a complexidade do universo cultural brasileiro, examinando aspectos como o português, os negros, os mulatos, os padres, os chefes de candomblé, o sexo, a alimentação e tudo o mais, permitindo as chaves para a dissecação sociológica do Brasil.
Não foi por pouco que, depois da publicação de Casa-Grande e outros 63 livros, ele chegou a dizer: “Sou o único gênio vivo”.
Alguém, então, perguntou: “O senhor é vaidoso?” Resposta, muito tranqüila: “Reconheço que tenho alguma vaidade. Talvez seja uma maneira de neutralizar a omissão em torno dos meus livros, mas a verdade é que tenho consciência do que a minha obra vale”.
Gilberto se considerava um injustiçado e um perseguido. Achava que seus trabalhos recebiam das universidades e da imprensa um tratamento muito abaixo do merecido. Com isto, adquiriu jeitos que a linguagem popular de hoje diagnosticaria como “uma espécie de paranóia”. “Se o carteiro atrasava a correspondência, era logo classificado de 'esquerdista'. Os revisores não eram negligentes, eram 'maliciosos', a imprensa era a culpada pela distorção de suas idéias, sempre de forma 'subversiva'. Era autoreferente, revoltado, insatisfeito”, diz o Jornal do Brasil.
Explicação dele próprio: é por causa da patrulha ideológica, que o sabota. “A patrulha é uma coisa muito séria e organizada de forma admirável, porque, na verdade ela não ataca; silencia. No caso da minha obra, a grande especialidade do patrulhamento é o silêncio. Não me importa ser contestado, ou atacado, até gosto de uma polêmica. Minha obra nunca foi objeto de estudo em qualquer universidade brasileira. Não é estranho isso? Os livros que escrevi são estudados na Sorbonne, em Columbia, em vários centros importantes de pesquisas. No Brasil não”.
Não. Talvez ele não tivesse muita razão nesse julgamento, ao menos quanto à década. A partir de 1980, ocorreu uma retomada intelectual de Gilberto Freyre no país.
Como diz Paulo Sérgio Pinheiro, das Universidades de São Paulo e Campinas: “A trilogia Casa-Grande e Senzala. Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso constitui o marco de uma literatura sobre o Brasil. "E o antropólogo Darcy Ribeiro: "Gilberto Freyre é uma figura só comparável a Euclides da Cunha. Os Sertões retrata uma cara do Brasil, a do sertão. Gilberto retrata uma outra face, a do Brasil senhorial”.
O que houve nas décadas passadas foi uma reação contra o que muitos interpretavam como reacionarismo de Freyre. No próprio Casa-Grande, por exemplo, ele diz, com pingos em todos os ii, que os escravos no Brasil tiveram uma vida melhor que os operários ingleses na Revolução industrial. “Ele dissolve os conflitos” acusaram.
Quando apoiou o golpe de 64, confraternizou com o ditador português Salazar e colaborou com a Arena, as iras da patrulha, é claro, só podiam aumentar. Mas ele se defende: “Combati o nazifascismo com o mesmo ânimo com que repudio o totalitarismo soviético. Este age no Brasil através desse patrulhismo ideológico, distribuindo pechas de reacionário aos verdadeiros revolucionários”. E mais: “Os que me acusam de reacionário refletem uma real ignorância sobre o significado da minha obra, ou um sentido muito perverso do que seja reacionário. O que sou é sensível às raízes. Mas não procuro imitá-las. Nelas busco inspiração para novas perspectivas em expressão literária, em percepção sociológica e na própria filosofia social que está presente em tudo o que escrevo”.
Nascido em Recife, em 15 de março de 1900, Gilberto, também poeta, historiador e pintor, sustentava que todas as áreas do conhecimento estão interligadas. Um dos pontos principais da sua obra é sempre o espírito polêmico. Além dos 63 livros, publicou mais de 65 opúsculos, 67 contribuições em obras coletivas no Brasil e no exterior, 160 prefácios a obras de outros autores e mais de 2.500 artigos em jornais e revistas. Seus trabalhos foram traduzidos para o inglês, francês, russo, polonês e japonês. Entre outras coisas, valeram-lhe um conferido pela Rainha Elisabeth II: Sir - Cavaleiro Comandante do Império Britânico.
Vaidoso, narcisista, polêmico, sensual. Era o que se dizia de Sir Gilberto Freyre - um sir em certos aspectos mais aproximado às cortes onde as koo Starks têm acesso que à da Rainha Vitória. Pois, tanto quanto suas obras chocam pela qualidade e pela polêmica suas atitudes às vezes deixavam os moralistas boquiabertos e estupefatos. Certa vez, teve relações sexuais com mulheres indianas e africanas, e depois explicou: “Foi por interesse antropológico”. Observando alguma incredulidade na platéia, foi além: “Minha mulher deu o consentimento”.
Claro que as desconfianças persistiram quanto ao real interesse envolvido no estudo antropológico, mas num ponto quase todos concordaram: Gilberto Freyre era um excelente retrato do homem brasileiro - pernambucano que tinha de ser carioca. Até os oito anos de idade, os pais o consideravam retardado - não aprendera ainda a escrever. Mas, quando aprendeu, foi uma torrente. Aos 13 anos, já dava aulas e lia tudo, de José de Alencar a Shakespeare. Estudou nos Estados Unidos, percorreu a Europa, e, de volta a Pernambuco, em 1924, lançou o Livro do Nordeste. Bahia de Todos os Santos e de Todos os Pecados veio em 1926. Por uns poucos anos, fez-se o silêncio, mais eis que de súbito, em 1933, Casa-Grande e Senzala chega às livrarias, com toda sua carga de espantos. Três anos depois, é a vez de Sobrados e Mocambos. Claro que viver não era só escrever - embora às vezes uma e outra coisa fossem a mesma coisa. Gilberto Freyre também ocupou seu tempo criando o primeiro curso de sociologia no Brasil, viajando pela Europa, apoiando a candidatura de José Américo de Almeida à presidência da República. Enquanto isto iam pingando coisas como Nordeste, Mocambos do Nordeste... Gilberto Freyre inteiro, naquilo que deixou. Como ele próprio define: “Minha obra não se resume a Casa-Grande e Senzala. Se alcancei no estrangeiro um renome jamais igualado por outro intelectual brasileiro, devo isso ao reconhecimento da minha obra”. Presunçoso? Talvez simplesmente objetivo.

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LOREM, Falcão. Gilberto Freyre: o homem que decifrou o Brasil. Manchete. Rio de Janeiro, n. 1841, p. 12-14, ago. 1987.

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