este

src="http://www.google.com/friendconnect/script/friendconnect.js">

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

ANÍSIO TEIXEIRA

BREVE RETRATO DE UMA GRANDE VIDA

Artur da Távola

P
ode a inteligência excepcional, em homem dominado pela razão, gerar um sentimento de igual medida, poderoso e atuante, embora enrustido e disfarçado? Este foi um dos enigmas de Anísio Teixeira. Fazer o sentimento introvertido equivaler-se ao pensamento extrovertido.

Anísio Teixeira

Os hábitos sertanejos, o pudor de revelar afetos, a educação religiosa, o costume de controlar impulsos, o gosto estético pelo manejo da inteligência, realizavam a difícil operação da emoção guardada, disfarçada de racionalizações misturadas à racionalidade mesma. O afeto aparecia nas atitudes concretas, na aguda consciência do social e apenas no caso dos filhos e netos – por comovente e intenso modo de olhar, no qual a chispa brincalhona estava pronta para disfarçar – se necessário – a extroversão do afeto. Fora daí, o sentimento permanecia oculto, nada obstante sua forma afetiva de relacionar-se.
O traço dominante e aparente, porém, era a inteligência.
Fulgurante!
Mal o conheci observei-lhe um hábito. Gostava do cochilo depois do almoço de passarinho, tão pouco comia. Ao voltar da sesta já entrava na sala perguntando: “Hein?”
Era como se estivesse na sala conversando, não tivesse escutado a frase anterior e pedisse para repeti-la. Aquele “hein”, de Anísio, aprendi depois, era sua ânsia de imediatamente ativar a inteligência, muito já lhe dera de folga, descanso e gazeta, uns quinze minutinhos de sesta... E fosse qualquer a resposta ao “hein”, improvisava a fala e entrava, célere, na conversa já com alguma tese interessante, via de regra polêmica.
Adorava discutir. Jamais brigar. Na discussão ia a extremos que a desavisados poderia parecer ofensa, tal a implacabilidade do raciocínio.
Surpreso, contudo, ficava – e atarantado –, se a pessoa, esmagada por sua argumentação se sentisse diminuída ou agravada. Não podia compreender alguém não separar debate e argumentação de reações pessoais. Morria de encabulamento. Detestava vencer, embora – em discussões – se empenhasse para tal.
A discussão, em Anísio, não era forma de chegar à verdade.
Tampouco uma disputa mas, tão-somente, a maneira de exercitar a inteligência verbalizada. Era pacto mútuo, de brincadeira a dois, ou a muitos, de exercitarem o raciocínio, espécie de academia de ginástica mental, com velozes movimentos, ai de quem os acompanhasse.
Anísio possuía regras próprias para a travessura mental da discussão. Por exemplo, detestava que com ele se concordasse. Era perda de ponto do antagonista. Quando este, vencido, expressava sua concordância com a lógica irrefutável, Anísio se desconcertava. Não estava preparado para interromper o debate. De outras vezes, ante concordância sincera, ouvi-o dizer:
“– Você concorda mas pelo lado errado.” E reiniciava a argumentação agora contrariando os argumentos anteriores. E indicava os adequados para contrariá-lo.
Em outras vezes dizia:
“– Não é por aí que você deve discordar e sim pelo lado tal.”
E iniciava com plena lucidez, a destruição, item por item, de tudo o que afirmara minutos antes.
A discussão era, pois, para Anísio, forma deliciosa de exercício, distração, jogo de idéias e, não, a busca da verdade ou a vontade de chegar a alguma conclusão. Costumava dizer:
“– Adoro modificar meu pensamento.”
Falava muito mas sabia ouvir... embora não gostasse. Em relação ao ouvir, dividia-se, deveras. Escutava, com atenção, quem lhe parecia inteligente, contudo, a quem lhe não incitava o intelecto, apenas fingia ouvir, com o pensamento no que ia dizer.
Outras vezes pairava longe. Fazia um olhar vago, colocava o semi-sorriso nos lábios e desandava a devanear. Houvesse algum papel e caneta, e fazia pequenos, geométricos e indecifráveis quadradinhos.
Diante da imbecilidade total, principalmente se mascarada de intelectualismo, ou verborragia inconseqüente, Anísio era só concordância. Buscava o ar angelical acima descrito e concordava e concordava sem parar.
Discutir, trocar idéias era, pois, para Anísio, enorme deferência pessoal. Só com quem considerasse digno de exercitar sua brincadeira preferida.
Tal seletividade, porém, não era feita com arrogância. Era gesto natural.
A deferência pessoal e a delicadeza eram hábitos seus. Ao estilo oriental da delicadeza como virtude.
Outro traço marcante na pessoa de Anísio era a sua distração.
Algumas lembranças:
Entrou por um vidro de portaria, ao lado da porta. Hospital.
Dava parabéns em velório e até logo em vez de bom-dia.
Certa vez, trocou Adão Pereira Nunes por Tiago de Melo, conhecendo a ambos.
Ao descer do avião e ver movimento inusitado de ambulância na pista, resolveu informar-se. A queda no vácuo que feriu pessoas e provocou pânico havia sido em seu vôo. Lendo, não se dera conta.
O maior pânico de D. Emilinha, sua esposa, era quando saía a passear com os netos, quando pequeninos. Ela temia que ele os esquecesse em algum lugar.
O risco era real...
Durante um período de exílio no Chile, embora amigo de ambos, só chamava o depois Deputado Federal Marcelo Cerqueira de Rogério e a este (Rogério Monteiro de Sousa, hoje secretário do Governador do Rio do Janeiro) de Marcelo.
Anísio possuía alguns horrores. Burocracia, por exemplo.
Certa vez foi à loucura, quando, ao aposentar-se, o funcionário, diante dele e de sua carteira de identidade, lhe disse ser necessário provar que estava vivo. O funcionário até hoje se recorda da aula que recebeu - sobre como se comportavam os javaneses tratados pelos holandeses na Ilha de Java, sua terra. Pois assim, dizia Anísio, a burocracia tratava os brasileiros no Brasil.
Outro horror era o desperdício. Os anos de formação jesuítica, hábitos de extrema modéstia, o nenhum cuidado com roupa ou qualquer forma de exibição, a consciência profunda das carências brasileiras e do nível de superficialidade da vida da classe dominante, levavam-no a episódios diários de cuidado, economia e sacrifícios pelo prazer interior de vencer toda e qualquer tentação de luxo, conforto ou bons tratos. Capaz de guardar os fósforos riscados dentro da respectiva caixa, e guardar a caixa..., até hoje não se sabe por que, Anísio era de extrema generosidade no que se referia a qualquer forma de pagamento, presente ou ato de lembrança em relação a terceiros.
Logo depois do golpe militar de 1964 tentaram enquadrá-lo de alguma forma. Inventaram que recebia de duas fontes pagadoras.
Descobriram que Anísio depositara no Banco do Brasil, em nome do Tesouro Nacional, cada salário recebido na condição de reitor da Universidade de Brasília ao qual tinha total direito pois não se enquadrava nos casos de acumulação. E disse ao coronel encarregado do inquérito:
“– O que vocês pensam que é o comunismo, é exatamente o que vocês estão fazendo aqui conosco.”
Mesmo assim o inquérito foi concluído com elogio a seu zelo funcional...
Bajulação e subserviência também o irritavam. Bem como todas as formas sutis de agrado, concordância ou necessidade de agradar.
Arguto era para percebê-los e não demonstrar que o fazia.
Homem de escasso repertório de prazeres, desinteressado da mesa e de confortos, gostava, no entanto de alguns sabores não sofisticados.
Farofa, por exemplo. Idem, a carne-de-sol. Algum vinho. E possuía uma reação estranhíssima: ao apreciar sabor estimulante, lacrimejava.
E como não era dotado de qualquer habilidade manual, se o sabor proviesse de ato seu, encantava-se. Certa vez, obrigado a esquentar uma esperta farofa oriunda do almoço, num desses domingos sem empregada e de esposa enferma, encantou-se de tal maneira com a proeza e emocionou-se com o odor que os olhos lacrimejavam sem parar... de puro bem-estar.
Seu prazer maior – todavia – estava na leitura. Não era possível encontrá-lo sem algum livro na mão. Durante a leitura, permanecia atado à aura da obra. Ela o envolvia e inspirava a propósito do que fizesse ou falasse.
Lia de modo apaixonado, entrega total ao texto, às vezes efetuando anotações. Buscava, ademais, de modo gentil e ameno, encontrar quem lhe estivesse ao redor, na matéria do livro ou no hábito de ler.
Sua leitura preferida provinha de textos acerca de idéias. Não revelava interesse prioritário por literatura. Preferia, porém, romances a poesia.
Apreciava o gênero crônica. Igualmente perturbava-se com a música.
Seu afã era entendê-la. Insistia em tentar decodificar-lhe o significado lógico, tarefa evidentemente irrealizável. Até que, um dia dei-lhe a fórmula salvadora:
“Dr. Anísio, a música é a linguagem do inefável.”
Encantou-se com a fórmula e passou a repeti-la. Ausência total de ritmo e de memória musical. Quando rapaz, jamais conseguiu marchar ou dançar e, mesmo adulto, era incapaz de distinguir Beethoven de Tchaikowski ou Ari Barroso de Cole Porter embora adorasse ouvi-los.
Seu contato com as artes plásticas era superficial e ligeiro. Gostava, nada obstante, de romances policiais. Às vezes até se assustava com eles.
Certa noite, sozinho, no andar de baixo de sua casa de Itaipava, por volta da meia-noite, vi-o subindo, sorrateiro e rápido. Perguntei-lhe o que havia: “– Nada, não. Mas ler esse Edgar Allan Poe, sozinho, lá embaixo, à meia-noite, confesso que assusta.”
Esse atleta da inteligência, padrão de racionalidade e lucidez, tinha medo de escuro, o único medo, aliás, que lhe vislumbrei em muitos anos de convivência íntima. Em vésperas de conferências ou palestras demonstrava, igualmente, algumas perturbações psicossomáticas.
Interrompo estes flagrantes de memória de uma personalidade, para concluir o incompleto retrato com a tentativa de compreensão do sentido maior da humanidade de Anísio.
Nele, o ser estava a serviço de sua vida e esta a serviço do homem, da sociedade e do país.
Há personalidades que se desprendem de seu portador e valem sozinhas. São grandes individualistas.
Outros calam o ego, diluindo-o no molde de algum comportamento condicionado por missão, fé, igreja, partido político ou engajamento institucional.
Em Anísio ocorreu o milagroso comando da ordem racional que canalizou as potencialidades do seu ser para as ações de sua vida. E esta (aqui a grandeza) não representou um fio em si mesma. A vida, Anísio entregou-a ao serviço do próximo. De certa forma, o ideal religioso estuava-lhe dentro da ação leiga. Pôs-se, de modo solitário, original, e inner directed, a serviço do homem, da sociedade e do país. O trabalho foi a materialização de sua vocação para o servir. Trabalho incansável no acumular conhecimentos, estudos, idéias e transportá-las para os pareceres, artigos, estudos e livros. E trabalho no que mais o encantava: a ação.
Aquele prodígio de inteligência e luz costumava dizer, com uma ponta de orgulho: “– As pessoas se enganam comigo. Não sou um teórico: sou um homem de ação.”
E era. Só que um teórico também. Nele, porém, a teoria se originava na prática.
Anísio não apreciava o pensamento desvinculado da aplicação prática. Os anos de estudo na América do Norte e a influência de Dewey lhe determinaram a consciência profunda de que educação é vida e vida é educação. Parafraseando seu mestre John Dewey, para Anísio, o pensamento era filho do trabalho e, este, por sua vez, filho do pensamento.
A entrega de seu ser à vida e, desta, ao serviço, levaram-no a desenvolver a mais contemporânea e lúcida formulação de democracia.
Costumava, a propósito, dizer: “O século XX ainda não descobriu que a verdadeira revolução é a Democracia pois só ela exige e impõe a transformação integral do ser humano e das sociedades.”
A consciência democrática impulsionava-o à concepção da sociedade plural, participativa, polimorfa, contraditória, como a melhor expressão da criatividade e do exercício das energias necessárias ao progresso.
E a concepção de sociedade plural e democrática, não apenas no modelo jurídico mas na profundidade de suas interrelações, o conduzia para o serviço concreto do país.
Anísio, portanto, caracterizava com perfeição a figura do servidor, tanto a do servidor público no sentido republicano, como a do homem de faina e tarefa pessoais na construção do mundo.
A educação teria que ser o tema central de alguém assim destinado a fazer de sua vida a exata expressão do seu ser.
E quando alguém consegue transformar a vida em expressão do próprio ser, alcança a plenitude da realização, ao mesmo tempo em que coloca esta auto-realização à disposição da humanidade, alcançando, em vida, uma das formas da Transcendência; presença do Mistério e, no seu caso, aquela espécie rara de santidade leiga que transformou sua vida em obra de sacerdócio e missão de educar para a liberdade.


FONTE: ROCHA, João Augusto de Lima (org.) Anísio em movimento. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. (Coleção biblioteca básica brasileira).

Um comentário:

  1. Este foi um dos maiores brasileiros que tivemos face ás conseqüencias de sua ação educadora e da filosofia pedagógica que pregava. O obscurantismo da ala mais radical da Igreja Catolica (ele era admirado pela ala progressista da Igreja)e do Udenismo de direita (havia outro Udenismo que via Anisio com os olhos do progresso...)fez que a Revolução de 64, instigada por THE GLOBE (o jornal mais vendido do país!)o perseguisse até a morte.

    ResponderExcluir

PESQUISA NO SITE