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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

ERNANI SATYRO

ANTOLOGIA POÉTICA

ERNANI SÁTYRO
O CANTO DO RETARDATÁRIO

Pouco importa que o canto seja tardio.
Se não tinha amadurecido, inda não era canto.
A idade do poeta se mede pelo amadurecimento do canto.
Cantar não é desejar a glória,
É simplesmente cantar.
A gente nasce para viver.
O canto rompe para vibrar.
O resto é com quem ouve,
O poeta não tem nada com isso.
Já houve um santo que falou às aves,
Mas eu sou ave, canto para as árvores.
- Árvores, ouvi-me!


DEFINIÇÃO

Todos nós temos os nossos heterônimos, claros ou ocultos.
E também as nossas “heteridéias”.
Num momento o poeta é,
Noutro não é.
O poeta não conhece a palavra coerência
Nem precisa dela para rimar com inteligência.
Inteligência rima é com estudo.
Precisa rimar também com dignidade
Mas sem solenidade, que rima com besteira.
Minha coerência é so com o momento.
O momento é o poema.
O poema sou eu,
Mas só no momento.
O momento é sagrado.


MENSAGEM PERDIDA

Oh, a mensagem daquela noite!
Ninguém quis ouvir a minha mensagem.
Acendi as primeiras estrelas
Que foram acendendo as outras.
(Soprei as flores, mas não deram frutos).
Retoquei em sorriso o rosto triste de uma criança.
Matei a morte no coração de uma mulher.
Então fui criando gosto.
Procurei acabar a fundura do mar
Para que não afogasse mais ninguém,
Mas nisso havia alguns inconvenientes
Então ensinei todo o mundo a nadar.
Só não mexi com o sol, porque não era preciso.
Acabei com os desastres de avião
E dei asas a todos os homens.
Acabei com os assassínios
Com os roubos
Com os assaltos
Com as ofensas.
Extingui as doenças, embora a morte protestasse, para depois entrar em acordo.
(O ajudante que ficou mais solidário com os protestos da morte foi o câncer).
Arranjei  outra profissão para a morte.
Consolei os não-amados
Convenci os ciumentos
Dei coragem aos covardes
E paciência aos valentes.
Pedi aos heróis que fossem menos arrogantes nas suas estátuas
E às estátuas que não se convencessem tanto de que eram a própria pessoa.
E assim fui fazendo.
Depois que estava tudo consertado,
Que foi que me aconteceu?
Pregaram-me um rabo de papel
Assobiaram
Botaram uma gargalhada
E mandaram-me para o Hospício.


SUPLICA

Já basta, Senhor.
Porventura não é pouco todo o fogo que tem saído da boca de Teus intérpretes?
(E Deus precisava de intérpretes?)
Apaga, Senhor, com o Teu sopro divino,
Esse fogo que a apagar não bastam
As lágrimas dos milhões dos homens,
Esse fogo ridículo,
Qualquer que seja sua forma,
E ainda nos ficas a dever reparação
Pelos que sofreram inutilmente, na dolorosa espera.
Pelos que sofrem por uma criação que é Tua. (Será?)
Apaga, Senhor, não porque vá queimar ninguém,
Mas porque a simples ameaça Te diminui.

A MOEDA

De um lado da moeda:
Minha alma postiça
No corpo natural.

Do outro lado da moeda:
Meu corpo postiço
Na alma sobrenatural...

Cara ou Coroa?

É melhor arriscar a moeda na aposta de Pascal.


SONETO DE NATAL

“Errei todo o discurso de meus anos”
(Camões)

“Errei todo o discurso de meus anos”.
Também dos meus errei todo o discurso.
Só aceite, em todo o longo curso,
Aquilo que apostei nos desenganos.

Todos nós, afinal, somos ciganos,
Escravos de andejar, sem mais recurso,
Até o final de nosso vão percurso,
Divididos em grupos vis e insanos.

Fique, no entanto, este conselho terno,
Aos que querem mudar o seu destino:
Sigam sempre, na vida, este Menino.

Antes que o galo cante o canto eterno,
A luz que Ele irradia ofusca o mal,
Pois Ele é Dia, em Noite em Natal.


AUGUSTO DOS ANJOS


A Língua que já tinha tanto artista,
Na prosa, na poesia e na eloqüência,
Precisava também de um cientista
Que, sem tirar da arte a sua essência,

Trouxesse para a musa fantasista
Os recursos de nova sapiência.
O feito coube ao grande sonetista,
E seu gênio o ajudou nessa incumbência.

O uso que fez da ciência é secundário:
Ela só lhe emprestou o vocabulário,
Que ele domou, com a força do lirismo.

A crítica, a princípio, o desprezou,
Mas o aplauso do povo comprovou
Que entre arte e ciência ele desfez o abismo.


LIÇÃO DA ALDEIA


O Joca das Almas era tudo na aldeia.
Tocava o sino nos dias de missa
E dava remédio, o Joca das Almas.

Ele guardava a chave do pequeno cemitério,
Prendia os bêbados num quarto escuro,
Hospedava o deputado, o vigário e o juiz,
E fazia as eleições, o Joça das Almas.

Todo mundo sabia que a aldeia havia de se acabar, no dia em
que Joca das Almas morresse.
Mas a morte, que não tinha entrado na combinação,
Lá um dia levou o Joca das Almas.
A aldeia toda chorou. Não sei mesmo onde se arranjou lágrima
para tanta gente.

Mas logo no dia seguinte,
Zé Caboclo já sabia tocar o sino
Maria Ciriáca estava dando remédio
Mané Fulo comprava potes, tigelas e pratos novos para
            hospedar o vigário, o deputado e o juiz.

E o sol continuava no mesmo lugar.
E as estrelas também, brincando em cima do túmulo do
Joça das Almas.


O INSTANTE


O instante nem sempre é agora.
Às vezes já passou,
Às vezes está para vir.
Em certos casos não virá nunca.
Mas é necessário cultivar o instante,
Estar preparado para que,
Quando vier,
Não seja recebido como um estranho.
Sim, porque o instante é caprichoso,
Caprichoso e rebelde, embora também seja doce e amigo.
Cultivemos o instante e não nos arrependemos.
Se não vier, contentemo-nos com a alegria de tê-lo esperado.
Deixemos o instante em falta
Embora sem nos orgulharmos.
Não sejamos com ele nem orgulhosos nem humildes – sejamos naturais.
Se ele passar apenas como um sopro
Quase imperceptível,
Às vezes demora, senta-se, conversa. Convive.
Cultivemos o instante e não nos arrependeremos.


LIBERTAÇÃO


Não quero velhos temas complicados
- Velhos ou novos.
Quero a emoção que me toca,
Como rápido aviso da morte.
Quero o pedaço de vida
Que treme na réstia de luz.
Quero a imagem
Que vai fugindo.
Da pena.
Quero pegá-la.
Quero ainda
Reunir todas as dissonâncias,
Fazer todas as uniões impossíveis.
Em mim tudo se harmonizará.
Todos se entenderão.
E depois que todas as forças se enfraqueceram em mim
E todas as músicas emudecerem no instrumento mudo que sou;
Que o dia e a noite se apaziguarem no meu coração,
Então me libertarei.
Me libertarei para chorar a escravidão perdida.


MEMÓRIA


Não esqueça nada.
Mas também não lembre nada.
Deixe que as coisas se esqueçam ou se lembre por si.
Fique quieto – apenas isto.
Mas fique quieto
Fazendo sempre seja o que for.
Só não fique quieto sem fazer nada,
Porque então você se inquieta.
Escreva, poeta, escreva!
Estrague, micróbio, estrague!
Mate, bandido, mate!
Só não podemos fazer é não fazer nada.


INSPIRAÇÃO


Quem foi que viu a minha inspiração?
Quem foi?
Quem foi?
- Nem eu.
A minha inspiração sou eu.
No dia em que dependesse de minha inspiração
Eu estaria perdido.
Minha inspiração sou eu.
São meus olhos
Meus ouvidos
Meu suor.
Entenderam?
Se não entenderam,
Você é que não sabem se inspirar.


CRIANÇAS


Gosto de ver crianças.
Sei que ali estão os germes de todos os atos que praticamos,
Mas gosto de ver crianças,
Principalmente quando não em vêem
E brincam com naturalidade.
Quando uma criança brinca para um adulto ver,
Ela já está representando.
Para que pressa, se amanhã tudo será representação?
O espetáculo ainda não começou.
Para que ensaiar de madrugada?
Gosto de ver crianças.


O VENENO


O veneno não está na notícia
Nem no comentário.
O veneno é a lente de aumento que você usa.
Às vezes está forte demais.
Saiba guardar sua lente
Para só ver a dose de veneno que for preciso.


SER DEUS


Ser Deus
Ou simplesmente Ser, porque ele é que é.
Saber sempre.
Não ter a alegria de aprender.
Ver tudo desde antes,
Não poder ver pela primeira vez.
Ser Deus – tudo conhecer,
Só não conhecer a impressão do imprevisto.
Ser Deus; ver o futuro de tal modo que amanhã já foi ontem.
Conhecimento.
Força.
E por isso que um pedaço de Deus, o Filho,
De lá se desprendeu
Para ver de perto a imagem e semelhança
E participar da sua limitação.
Se me perdoassem, Deus, eu Te diria que aí foi que
ficaste um Deus completo.
Na misericórdia do Teu voluntário enfraquecimento
E na Tua ânsia de novos conhecimentos.


VER


Ver não é somente ver.
Ver é também ser visto
Pelas coisas que vemos.
Ontem por exemplo
O sinal vermelho do trânsito foi quem me chamou.
Chamando-me para a morte
Ele me restituiu a vida,
Porque o caminhão já tinha feito tudo o que podia fazer.
Existem também pessoas,
Que ficam em tal postura de ser vistas
Que elas é que estão vendo ser vistas,
Antes mesmo de as vermos.
E também há o inimigo
Que embora disfarçado
Às vezes até distraído,
Está vendo em sendo visto
E sendo visto ao ver.
E com isto nos chama
A matar ou morrer
Ou a reconciliar.



COMPANHEIRA


A Antonietta

Aos ventos entreguei as minhas ânsias;
Os ventos passaram, as ânsias ficaram.
Aos mares entreguei as esperanças,
Que pelo menos nas cores são iguais:
As esperanças os mares as tragaram.
Aos pássaros entreguei meu canto:
Eles cantaram, mas não meu canto,
E sim o deles.
Aos filhos confiei os compromissos:
Eles disseram que já tinham os seus.
Falei aos netos:
Eles responderam
Que bastava o que os pais já lhes diziam.
Falei a meus amigos:
Tornaram-se inimigos.
Falei ao mundo:
O mundo se fechou.
Ficou só a companheira, que me disse:
Vamos, nós ainda temos força!

MARIA MENINA


As outras cresciam
- E ela, nada.
As outras arredondavam
- E ela, nada.
As outras criavam juízo
- E ela, nada.
Todo o mundo a chamava Maria Menina.
Um dia, a natureza deu um pulo.
O moreno firmou-se
Os olhos brilharam
Os seios pularam
Os quadris aprumaram.
“Está uma moça”.
“Esta um encanto”.
Mas sempre chamavam Maria Menina.
....................................................................
Maria Menina entrou no convento.


FELICIDADE


A felicidade que eu queria não depende de ninguém.
Nem de teus olhos
Nem de teus braços
Nem de teus outros caminhos.
A felicidade que eu queria
Está tão longe...
Está tão perto...
E como nos sonhos:
As pernas não andam,
A arma não dispara,
Os olhos não vêem.
E no entanto a felicidade não é um sonho.
Apenas está tão longe.
Estando tão perto.

ROSA

Rosa morreu!
Rosa na morte ficou mais bonita que na vida,
Rosa no caixão ficou mais bonita do que no baile.
Mas eu queria Rosa viva,
Porque a vida é mais bela que a morte.
Eu queria Rosa mais feia,
Cheirando a sorriso e a beijo
E não Rosa mais bela,
Beijada por flores e vela.
Conheci Rosa
Botão-de-rosa desabrochando em mulher.
Rosa menos bela,
Mas Rosa-vida.
E não Rosa embelezada pela morte.


SABER MORRER

Ninguém sabe morrer.
A morte é que sabe matar.
Ela mata de qualquer jeito,
Com lei ou sem lei,
Porque a lei é ela.
Se nós soubéssemos morrer
Também sabíamos não morrer
E então não morreríamos.


MÃE

A meu irmão Firmino

Este é o mais difícil dos poemas.
E no entanto como ela era simples.
Tão simples e natural
Que até parecia modelada, e não nascida.
A sua impaciência era a pressa de servir.
Os seus castigos eram uma de suas obediências a Deus.
Quantas vezes, ao castigar, sorria.
O maior elogio que te faço, ó Mãe.
É dizer que tuas fraquezas eram mais fortes que minhas forças.
Teus filhos foram muitos, mão são poucos.
Tu os viste partir de um em um,
Pequenos e grandes.
Tantas foram mortes plantadas no teu coração
E tamanha era a tua resignação diante de Deus,
Que deste morada à Morte em tua casa.
Trataste-a tão bem que ela se compadeceu de ti
E te levou antes de desfolhar as duas últimas pétalas.
Só não se compadeceu a Morte, ao te levar,
Foi das duas pétalas
Que ficaram
A sangrar.

Do Livro: O CANTO DO RETARDATÁRIO (Poemas)

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