este

src="http://www.google.com/friendconnect/script/friendconnect.js">

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O RIO DE JANEIRO NO TEMPO DOS VICE-REIS (1763 – 1808)

Luís Edmundo

Numa terra de luz intensa e natureza farta, o salão de visitas da cidade é uma praça despida de árvores e de sombra, vasta, rasa, suja, castigada pela labareda inclemente do sol. E que sol! Um lumaréu ardente que faúlha, espadanando lavas e diante do qual as coisas ganham violentos e nítidos ressaltos, relevos singulares, mostrando por sobre as superfícies destacadas como que uma crosta luminosa, que assalta e fere o olhar.


Chamou-se ao logradouro extenso e plano Várzea de Nossa Senhora do Ó, Lugar do Ferreiro da Polé, antes de ser Praça do Carmo.
À esquerda de quem vem do lado do mar, fica a residência vice-real, sombrio casarão dos tempos de Bobadela, branco, feio, retangular e baixo, riscadinho de portas e janelas. E, no entanto, a mais suntuosa morada da colônia, embora como residência de um governador, a maior autoridade do país, deixe bastante a desejar. Os portugueses foram sempre gente modesta e simples. Até na capital da metrópole o palácio onde reside o monarca, é coisa singela, sem grandes brilhos.
A Corte de Lisboa é sem a menor magnificência. O palácio real é um edifício mesquinho e de um só andar, informa-nos o Duque de Chatelet, que esteve em Lisboa pelo fim do século XVIII.
Por cá as coisas são, por certo, um poucochinho mais mesquinhas.
Interiormente, o pardieiro é ermo e sombrio, cheira a mofo é e quase despido de mobiliário.
Parny, em 1772, pelo menos, no-lo descreve com os seus salões vastos e desertos onde se viam, apenas, algumas cadeiras e umas tantas mesas, todas elas cobertas de panos até o assoalho, tapando-lhes, certamente, por decoro e pudor, as injúrias da idade e a fraqueza do estilo.
Ao fundo da praça está a linha melancólica do Carmo, convento e igreja, massa inexpressiva e velha, de ar desmoronante, com um torreãozinho recortando a placa anilada dos céus. À direita, na linha do casario que avança para a praia, as casas do Teles, altas, aprumadas, com os seus balcões verdoengos e os seus telhados íngremes e pardos. Na linha do rés-do-chão, vê-se a porta que dá entrada à bodega do francês Philippe, uma das mais populares figuras da cidade e que a profissão de bodegueiro liga à de intérprete, agente de câmbio e mais negócios. A sua tasca é uma das mais populares, sítio onde vão parar os viajantes vindos de Minas e de S. Paulo e onde, por vezes, dormem. Que os que estão em trânsito no porto podem descer, mas não podem dormir em terra. O Arco do Teles abre adiante a face escancarada e suja. É uma passagem curta, onde se amontoam e desaparecem mendigos, rascoas, vadios e soldados.
Para a linha que vai ao mar, depois, está o mercado de peixe, com as suas cabanas de lona ou palha, armadas ao sol, sujas, molambentas, caindo aos pedaços. Vem, então, a praia branca, manchada de calhaus e detritos, que foge para as bandas do Arsenal e onde encalham faluas de vermiático pintadas de vivas cores. Há no centro da praça um chafariz, obra singela e tosca, posto depois, rente à linha do mar, bastante melhorado.
De Lisboa vieram o modelo e a pedra. A linfa, porém, não pôde vir. É nossa. Vasa o manancial desde cedo, por largas bicas de bronze, sobre barris e potes, a água que o negro escravo apanha e leva. Em torno há sempre um sórdido formigueiro humano, inquieto, rumoroso, que serpenteia e palpita.
Aproximemo-nos. São os negros escravos chapinhando nas sobras da água, berrando ameaças, gingando capoeiragens, discutindo, gesticulando; tipos fortes e espadaúdos, reluzentes e nus, tendo apenas pendente da cintura, à guisa de velário, em pregaria escassa, uma tanga. Há-os de todas as raças africanas: gente de Moçambique e da Guiné, da Angola e da Costa da Mina, cafres, quiloas, benguelas, cabindas, monjolos e vatuas. Todos com a mesma pele ebânica e retinta. As almas são, entanto, diferentes.
Na gleba natal, eles, os negros, formaram outrora nações desavindas que lutaram, que sofreram. Por isso aqui não se unem, antes se detestam e se odeiam. Separam-se por castas, orgulhosas, soberbos, e, como os animais, olham-se de esguelhas, rilhando os dentes.
O alarido que se ouve, a bulha que ensurdece, junto ao chafariz, diz ódio, prevenção; diz raiva e diz rancor. É o referver de velhas fúrias e aversões, contidas apenas pela chibata do capataz, que zune e estala no ar.
Portugal, sem o pensar, salvou-se, indo buscar o negro, um pouco em toda a parte. O negro, graças às fundas dissenções na terra de origem, entre nós, é maioria e é fraco. Não prepondera. Maquiavel não dá lições ao destino.
Quando o alarido cresce e o conflito arrebenta, para calmar a turba estrepitosa e insubmissa, o capataz ergue o relho e o estraleja. É um sinal... Submisso, o escravo abafa a ira ou sopita o furor. E ele que se abespinhe ou recalcitre! O relho, logo riscando o ar, desce, tinge-lhe de sangue as  carnes de azeviche.
Pousados a cabeça sobre rodilhas de pano, os recipientes cheios a transbordar, os portadores de água dividem-se e espalham-se para a direita, caminho de S. Bento, para a esquerda, caminho da Cadeia. Não diminui, no entanto, o formigueiro humano na adustão da soalheira que referve.
Chegam uns, saem outros...
É nesse quadrilátero poeirento que ao crepúsculo luminoso da tarde vêm os homens da terra juntar-se.
É a gente mais escolhida da cidade, do melhor ambiente e da melhor situação, que surge bufando de calor, com os seus tricórnios sob o braço, as cabeleiras naturais despenteadas pelo vento que começa a soprar, desafogando-se das trabalheiras do dia árduo; uns, já tratando novas trabalheiras, outros, zelosos, evitando-as; gente que chega para espairecer, para alegrar-se, para refrescar, falando, rindo, discutindo, animosamente, alacremente, gostosamente.
Por vezes, três, quatro ou cinco conduções: liteiras, serpentinas, cadeirinhas ou mesmo seges, comprometendo o trânsito, formam um círculo apertado, de modo que cada viajeiro possa de sua almofada, como
damente, conversar, como em família. Em certos pontos, graças a essa prática, dificilmente se caminha.
Que não se espere ver, porém, nessas estúrdias assembléias ao ar livre, senhoras, pois que só muito para o fim do século é que elas começam a aparecer nos logradouros públicos, e, isso mesmo, no casulo das suas condições.
Passam ambulantes vendendo o aluá, a pamonha, a canjica e o gergelim; cruzam dragões da guarda do vice-rei com os seus capacetes em forma de unha e viseira de arrebito; mendigos deformados pela elefantíase, leprosos, negras fregonas, mochilas, gente da ralé, flor da rua.
Passa o Bota-bicas, tipo popular, bufão da plebe, inocente sorriso da cidade, benquisto de todos, que lhe atiram saudares e moedas, reclamando chufas, dichotes e chalaças. Não se faz de rogado Bota-bicas.
Bota-Bicas está preso,
Deves mandá-lo soltar,
Porque preso Bota-Bicas
Não pode bicas botar.
Raro S. Exª o Sr. Vice-rei honra com a sua presença a praça.
Pela hora em que o céu ganha um tom cinza e o vento sopra mais forte, vindo da barra, para melhor gozar do quadro e da paisagem, Phillippe, o da bodega, arrasta para a frente da porta um banco de jacarandá, desabotoa a véstia de ramagens, bufando, acalorado, e mete o cachimbo de louça na boca que tagarela em uma porção de línguas.
Phillipe diverte-se, Philippe sente-se bem nesse ambiente patriarcal e amável, Phillippe, que vem de França, mas que não se sabe se teria visto e apreciado as elegâncias mundanas da risonha Versalhes, com os seus canteiros à Le Notre e os seus personagens à Watteau.
Antes, porém, das badaladas das Ave-Marias, toda essa multidão se aparta e se desmancha. Que a cidade não conta com outra luz, quando anoitece, que não seja a dos nichos iluminados das esquinas. Os portadores de serpentinas e cadeiras metem ao ombro a vara das conduções; nas seges, os sotas estalam, apressando os animais, compridíssimos chicotes; os taboas tomam atitudes elegantes no degrau traseiro das carruagens.
Pela boca do Arco do Teles, pelas bandas da praia, pelo caminho da Rua Direita, para os sítios da Cadeia e da Misericórdia, a multidão aos poucos se derrama, e escapa desaparece.
É andar depressa, antes que a noite role do alto e desça apressada e escura para forrar a cidade de sombra de tristeza e de mistério.

Um comentário:

PESQUISA NO SITE