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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

FELIPE CAMARÃO

O artigo que transcrevo a seguir foi escrito e publicado em 1876, pelo talentoso romancista Joaquim Manoel de Macedo. Nele, foi mantida a grafia original, por tratar-se de um resgate histórico. 


D. ANTÔNIO FELIPE CAMARÃO


Filho das selvas brazileiras o indio Poty (Camarão) tem o seu berço disputado por duas provincias do imperio, a do Ceará, e a do Rio Grande do Norte; parece porém que pertence á esta ultima, onde nascêra em alguma taba dos Potyguares.
Ignorão-se as primeiras façanhas deste índio. Mas em 1614 elle era chefe entre os seus, e viera a pé do Rio Grande do Norte, para acompanhar Jeronymo de Albuquerque à conquista do Maranhão; chegara porém  muito estropiado ao ponto marcado para o embarque e não poude seguir na expedição.
Camarão tomara no baptismo o nome Antânio, mais tarde addicionou a este o de Felippe em lembrança das honras que recebêra do rei de Hespanha e Portugal, e aos dous ajuntou o seu primitivo nome que não quiz deixar. Casou-se com D. Clara, india como elle, e tambem heroina.
Em 1630 depois da conquista de Olinda e do Recife pelas hollandezes, e quando Mathias de Albuquerque fortaleceu-se no campo que chamou Arraial do Bom Jesus, Camarão ali se apresentou, capitaneando os seus indios para servir contra o estrangeiro invasor.
Assevera-se que Camarão fôra para ali levado pelo padre jesuita Manoel de Moraes, isso é pelo menos verosimil; porque o indio Poty, catechisado pelos jesuitas, e tendo delles recebido alguma instrucção, obedecia naturalmente á sua influencia.
No Arraial do Bom Jesus Camarão foi o mais hábil capitão de emboscadas, e provou em grande numero de pelejas a sua indomita bravura. De 1630 a 1635 elle se bate constantemente, e os hollandezes o conhecem e distinguem pelo impeto com que elle à frente dos seus índios costuma ataca-los.

Felipe Camarão
Em 1636 o novo general D. Luiz de Rojas y Borja, successor do bravo Mathias de Albuquerque, toma imprudentemente a offensiva, e perto de Porto Calvo perde a batalha da Mata Redonda, é nella morto, e é Camarão, que com o capitão Rebello salva o exercito pernambucano de total destruição.
No mesmo anno o general Ragnuolo concentrado em defensiva com todas as forças pernambucanas em Porto Calvo, deu a Camarão o commando da mais perigosa expedição, mandando-o com trezentos índios, dous capitães com trinta soldados, e o intrepido Henrique Dias com alguns negros a percorrer o campo até onde pudessem chegar, destruindo as fazendas dos inimigos, e fazendo a estes todo o mal possivel.
Menos de trezentos e sessenta erão os combatentes, que Camarão levava consigo.
O audaz indio metteu-se a 9 de Junho pelas mattas, e atravessando-as foi além de sessenta leguas romper sobre o rico districto de Goyanna, tomou ali um reducto aos hollandezes, matou não poucos deste, assolou fazendas, e tomou boa quantidade de mercadorias e de assucar.  O conselho politico do Recife alvoroçado com a noticia do atrevido feito de Camarão, mandou logo contra elle forte coluna de tropa commandada por Artichofski, o seu mais notável general então. Avisado do perigo, o indomito índio desprezou-o, em vez de retirar-se, e foi ao encontro do inimigo, com o qual se encontrou na manhã de 23 de Agosto: travou-se a peleja que durou até a noite e interrompeu-se indecisa.
Artichofski furioso lamentava que o Camarão pudesse escapar-lhe, aproveitando a noite para fugir, mettendo-se pelas mattas; mas ao romper do dia seguinte admirou-se ao vê-lo occupando as mesmas posições da vespera.
O orgulho o general ordenou immediata e energica investida; mas no fim de quatro horas de vivissimo fogo foi elle quem confundido, e receioso de completo desastre, e de desbarato de sua coluna, bateu em retirada, deixando o campo ao chefe indio.
Bastaria o resultado quasi inverosimil dos combates de 23 e 24 de Agosto de 1636 para a maior gloria de Camarão, que assim vencêra coluna de tropa regular commandada por general já famoso, e muito superior em numero aos seus indios sem disciplina militar.
Entretanto o intelligente indio reconheceu que não poderia demorar-se no territorio dominado pelo inimigo, que por certo voltaria a cerca-lo com quadruplicadas forças, e então operou a sua retirada pelo meio das florestas, escoltando e levando cerca de tres mil habitantes de Goyana e de próximos districtos que preferirão emigrar a viver sob o domínio hollandez.
A 26 de Setembro, seu bello e grandioso dia, Camarão entrou em Porto Calvo com os seus heroicos expedicionarios, e com o sequito patriota e glorioso de tres mil emmigrantes homens e mulheres, velhos, mancebos, jovens donzellas, meninos, e criancinhas que fugião ao jugo estrangeiro.
Camarão foi recebido com acclamações.
Bagnuolo não tinha imaginado a possibilidade de tão estupendos feitos.
A 18 de Fevereiro de 1637 ferio-se horrivel peleja ainda nas vezinhanças de Porto Calvo: commandava cinco mil hollandezes o general principe Mauricio de Nassau, e Bagnuolo enviou a desputar-lhe o passo cerca de mil e duzentos homens, entre os quaes Camarão a frente de trezentos indios: apezar da desproporção das forças foi longo, e desesperado o combate, e Mauricio de Nassau emfim  senhor do campo, vio os pernambucanos, os indios e os negros de Henrique Dias recuarem; mas não conseguio derrota-los. Camarão bateu-se como furente leão, e tanto mais, que a seu lado sua esposa D. Clara pelejava heroicamente.
Em 1638 retirado o exercito pernambucano para a Torre de Garcia d'Avila na Bahia, o bravo chefe dos indios commanda uma das celebres guerrilhas que tanto mal causarão aos hollandezes e no mesmo anno illustra-se ainda mais na gloriosa clareza da cidade de S. Salvador sitiada e atacada pelo principe Mauricio de Nassau. O rei de Hespanha e Portugal não o esqueceu, galardoando os valentes defensores da capital do Brazil, agraciou-o com o habito da ordem de Christo e deu-lhe o tratamento de Dom.
Camarão não descansou: no commando da sua guerrilha multiplicou suas audazes emprezas, até que a revolução restauradora de Portugal foi seguida do armisticio aliás mal respeitado.
Em 1645 elle marchou com os seus indios a apoiar a insurreição pernambucana: penetrou nas Alagoas e excitou o pronunciamento, fez depois juncção com Vieira e Vidal de Negreiros, e até 1848 cobrio-se de louros em diversas pelejas. Neste ultimo anno a 19 de Abril commandou a ala direita do exercito dos independentes na primeira e famosa batalha dos Guararapes, na qual forão derrotados os hollandezes commandados pelo general Schkoppe.
Poucos mezes depois e ainda no mesmo anno de 1648 D. Antonio Felippe Camarão, capitão-mór e chamado governador dos indios falleceu victima de uma febre violenta no Arraial Novo do Bom Jesus, em cuja capella se sepultou o seu cadaver conduzido á ultima morada pelos gloriosos companheiros de guerra do bravo indio.

FONTE: MACEDO, Joaquim Manoel de. Anno biographico brazileiro (III). Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia do Imperial Instituto Artistico, 1876, pág. 123-127.

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