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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A ESCRAVIDÃO NO BRASIL

EMANCIPADORES E ABOLICIONISTAS

Osório Duque Estrada

A
 LEI de 28 de setembro de 1871, que tão acesa campanha provocara no parlamento e na imprensa, e que fora considerada naquele tempo como uma vitória do abolicionismo, estava, no entanto, muito longe de satisfazer a todos os espíritos liberais, sobretudo pela condição extravagante e precária em que deixava os nascituros, sujeitos, até à maioridade, a um regime legal de opressão que pouco diferia do cativeiro.

Osório Duque Estrada

O próprio Sales Torres Homem (Inhomirim), que foi o seu mais brilhante defensor na tribuna do Senado, chegou a confessar que ela era tímida e incompleta e que “transigia com os interesses mal-entendidos, em preterição das exigências da justiça e dos direitos da humanidade.” Não cogitando da sorte das outras vítimas, assegurava ainda por mais de cinqüenta anos a existência da escravidão no Brasil.
Não podia ter sido, pois, de esquecimento completo, como afirma o Sr. Tobias Monteiro, a quadra de sete anos decorridos de 1871 a 1878, filiando a este último ano o grito de guerra do Deputado Joaquim Nabuco, a quem empresta, já nesse tempo, a qualidade de abolicionista.
Para corrigir a primeira afirmação, basta-nos citar as seguintes memoráveis palavras, proferidas em 1874, na Bahia, num extraordinário discurso em que se revelava o Sr. Conselheiro Rui Barbosa o pregoeiro da eleição direta, que havia de ser votada seis anos depois:
“O século dezenove, o desenvolvimento da civilização cristã entre nós mesmos, impunham ao Brasil a supressão da propriedade do homem sobre o homem. A lei dos nascimentos foi a expressão da generosidade da Coroa, o seu grande rasgo de filantropia; mas essa reforma,  composto incongruente de idéias contraditórias, essa reforma, que desampara a geração atual à desesperança com todas as tentações tremendas, e cria, ao lado dela, uma geração de ingênuos quase tão envilecidos como os próprios escravos (apoiados), não serviu senão para introduzir no seio das famílias, nas relações domésticas da propriedade, as perturbações que vós presenciais todos os dias, até que daqui a alguns anos a questão ressurja com todas as suas ameaças e todos os seus perigos. (Repetidos apoiados.)
Nem me é possível aqui deixar de lastimar, abolicionista como também sou, que os abolicionistas do meu país aplaudissem a essa reforma, sem advertir que era apenas um melhoramento superficial, aparente, com que o trono, ambicioso de colher as glórias da grande idéia, mas incapaz de assumir-lhe magnanimamente a responsabilidade, traçou protelar indefinidamente a reforma real!” (Apoiados. Muito bem!)
Era esta, em 1874, a linguagem lógica e coerente de quem, considerando, desde 1869, a escravidão dos africanos como instituição ilegal e condenada, em face da lei de 7 de novembro de 1831, não se podia dar por satisfeito com a reforma de 71, que, absolutamente não resolvia o problema da abolição do elemento servil.
Dessa atitude se deduz igualmente a qualidade de abolicionista radical, que o Sr. Rui Barbosa já manifestava desde 1869, e que Joaquim Nabuco não possuía ainda quando pela primeira vez agitou a questão no seio da Câmara, nem mesmo em 1880, quando se alistou no grêmio dos simples emancipadores, como veremos adiante.
Duas retificações comportam ainda aquelas afirmações do Sr. Tobias: não foi Joaquim Nabuco o primeiro deputado a agitar a questão no seio do parlamento, nem esse fato ocorreu em 1878, mas sim no ano imediato.
Documentaremos ambas as nossas contestações com as próprias palavras de Nabuco:
“Se eu estivesse escrevendo neste momento um escorço do movimento abolicionista de 1879–1888, já teria citado Jerônimo Sodré, que foi quem pronunciou o fiat, e passaria a citar os meus companheiros de Câmara Manuel Pedro, Correia Rabelo, Sancho de Barros Pimentel e outros, porque o movimento começou na Câmara em 1879, e não, como se tem dito, na Gazeta da Tarde de Ferreira de Meneses, que é de 1880.”
Mais positivas e mais categóricas ainda são as seguintes palavras, que se encontram na página imediata da mesma obra de Nabuco:
“Esse pronunciamento vem resolvido da Bahia, e rebenta na Câmara, como uma manga d’água, repentinamente. Nada absolutamente o fazia suspeitar... Ao ato de Jerônimo Sodré filia-se cronologicamente a minha atitude, dias depois... Mais tarde é que entram Rebouças, Patrocínio, Gusmão Lobo, Meneses, Joaquim Serra”.
E ainda mais categóricas:
“Reconheço que a minha inscrição vem na ordem do tempo depois da de Jerônimo
Sodré. As outras, porém, vieram depois da minha ...”.
Nenhuma importância tem para nós essa questão de iniciativa e de prioridade, intervalada de um ou dois anos, de meses e, às vezes, de dias; mas sentimos o dever de contestar as alegações citadas, não só porque delas parece fazer questão o autor das Reminiscências, como o próprio orador pernambucano, quando faz sentir aos leitores que “as outras vieram depois da minha”, e quando afirma que “mais tarde é que entraram Rebouças, Patrocínio, Gusmão Lobo, Meneses, Joaquim Serra”, apesar de destruir, logo depois, essa veleidade, que chega a parecer infantil com este conceito justo, elevado e verdadeiro – “O último dos apóstolos pode vir a ser o primeiro de todos, como São Paulo, em serviços e em proselitismo.”
Outro que, como o Sr. Rui Barbosa, não deixou que fosse de esquecimento completo o período de 1871 a 1879, foi o jornalista Luís Gama, talentoso representante da raça negra, e ilustre advogado de S. Paulo, a quem se veio juntar depois o intrépido Antônio Bento.
A propaganda pela palavra não havia cessado: mas, como bem salientou Joaquim Nabuco, “é um movimento que tem o seu eixo próprio, sua formação distinta, e cujo princípio, marcha, velocidade, são fáceis de verificar; é um sistema fluvial de que se conhecem as nascentes, o volume d’água e valor de cada tributário, as quedas, os rápidos, o estuário – e esse movimento começa, fora de toda dúvida, com o pronunciamento de Jerônimo Sodré em 1879, na Câmara.”
Recolocados, pois, os fatos na sua ordem e nos seus lugares, não se pode negar a Joaquim Nabuco e ao pequeno grupo de deputados que o acompanhava, a glória de haverem levado para o parlamento, pela primeira vez depois de 1871, a magna questão do elemento servil, que ia entrar, pouco tempo depois, na sua verdadeira fase revolucionária.
Eleito deputado com a ascensão do ministério Sinimbu em 1878, após a dissolução da Câmara, que trouxe unanimidade ao Partido Liberal, estreou Nabuco, meses depois, na sessão parlamentar de 1879, e foi então que, alguns dias após o rebate dado por Jerônimo Sodré, anunciou da tribuna (e repetiu a advertência nos comícios eleitorais do Recife) que “já era tempo de se cogitar de novo do problema, e que aos representantes do povo não podia ser indiferente a sorte de uma raça.”
A propaganda começou com grande intensidade, principalmente na imprensa e nas meetings, produzindo grande alarma nos arraiais conservadores.
Em 9 de julho de 1880 fundou-se a “Sociedade Brasileira contra a Escravidão”, por iniciativa de Joaquim Nabuco, que foi eleito seu presidente, realizando-se no dia 25 do mesmo mês, no teatro São Luís, a primeira conferência emancipadora.
Dias antes (10 de julho) apareceu o primeiro número da Gazeta da Tarde, onde refulgiam as penas já gloriosas de Ferreira de Meneses e Joaquim Serra. Na Gazeta de Notícias, dirigida por Ferreira de Araújo, firmava as “Semanas Políticas”, com o pseudônimo de Proudhomme, José do Patrocínio, que, ainda estudante e companheiro de Paula Nei, secundava de modo brilhante os outros dois jornalistas, no apoio prestado à ação de Joaquim Nabuco, disposto a agitar de novo a questão no seio do parlamento.
Neste formavam já em torno do deputado pernambucano algumas personalidades de grande destaque e valor, como Saldanha Marinho, Belfort, Ladário, José Mariano, Sancho Pimentel, Marcolino Moura, Pedro Beltrão, Jerônimo Sodré e, pouco depois, o afamado tribuno liberal José Bonifácio.
Coincidiu por esse tempo (18 de julho de 1880) a chegada ao Rio de Janeiro do glorioso maestro Carlos Gomes, cujas festas na capital do Império e nas províncias de S. Paulo e da Bahia passaram a ser, como bem assinalou o Sr. Sílio Boccanera Junior, verdadeiras festas de liberdade.
Descrevendo o desembarque e a recepção triunfal do maestro, acrescenta o Jornal do Comércio de 19 de julho de 1880:
“Durante o trajeto, os Srs. estudantes Patrocínio e Paula Nei agenciaram entre as pessoas que se achavam a bordo a quantia de 100$000 para que, unida à de 430$000, que já haviam obtido em terra, fosse levada em conta da libertação do escravo Tito, avaliado em 800$000, e cuja carta tem de ser entregue pelo Maestro na noite do seu benefício.”
Na noite de 27 de julho, em um espetáculo dado pela Empresa Lírica do Imperial Teatro de D. Pedro II, em homenagem a Carlos Gomes, foi libertado em cena aberta o escravo Julião, sendo conduzido pela mão da célebre cantora Durand todo vestido de branco, no meio de ovações delirantes da platéia, onde as senhoras, de pé, batiam palmas, jogavam
flores e agitavam os lenços, freneticamente.
Dois meses depois, em um concerto realizado em Campinas, em honra do glorioso autor de O Guarani, foram libertados mais dois escravos, ainda moços, pelo conhecido industrial William Van Vleck Lidgerwood.
Essas festas deixavam sempre grande impressão no espírito do público, e secundavam de maneira admirável a campanha parlamentar de Nabuco, que, apesar de simples emancipador, era, no entanto, encarado pelos escravocratas como um agitador perigoso, contra o qual cerravam fileiras as hostes conservadoras e os próprios liberais da Câmara e do Senado.
Fora do parlamento coube ao Centro do Café preparar a resistência à propaganda, e a luta começou, com efeito, ameaçadora e tremenda, principalmente depois que Saraiva afirmou “não cogitar da questão do elemento servil” e Martinho Campos fez a sua profissão de fé, confessando-se pinturescamente “escravocrata da gema”.
Data daí a fase mais intensa da campanha abolicionista que, de vitória em vitória, se prolongou até o ano de 1888, atravessando sucessivamente os ministérios: Saraiva, Martinho Campos, Paranaguá, Lafaiete, Dantas, Saraiva, Cotegipe e João Alfredo.
Comecemos, pois, por historiar o período da organização: Ao Centro do Café aliou-se desde logo o Centro da Lavoura, então presidido pelo negociante Ramalho Ortigão.
Este clube tomou a si a iniciativa de fundar várias sociedades de resistência ao movimento abolicionista impulsionado pela Gazeta da Tarde, que em 1881 passou às mãos de Patrocínio por morte de Ferreira de Meneses.
Em oposição àquelas duas sociedades escravocratas, começaram os abolicionistas a fundar na redação da Gazeta da Tarde (rua da Uruguaiana nº 43) outras sociedades emancipadoras, cujas cerimônias de instalação eram presididas pelo Conselheiro Nicolau Moreira e secretariadas por Vicente de Sousa, sendo José do Patrocínio o orador oficial.
O processo para a organização era o seguinte:
Abria-se uma subscrição, até apurar-se a quantia de 80$000, preço de um estandarte, que era fabricado na casa Sucena.
Obtido este, anunciava-se uma matinê para o próximo domingo e contratava-se a Banda Alemã para tocar na porta da Gazeta, desde às 10 horas da manhã. Aglomerava-se o povo.
Patrocínio e João Clapp escolhiam dentre os populares um que estivesse mais bem vestido e confiava-lhe o estandarte. Organizado o préstito, com a banda na frente, a redação em seguida e logo depois o estandarte acompanhado pela onda popular, dirigiam-se todos para o teatro Recreio Dramático generosamente cedido pelo empresário Dias Braga.
Parava-se à porta, onde Patrocínio havia já postado uma comissão de gentis senhoritas vestidas de branco, com uma fita verde e amarela a tiracolo, e munidas de salvas.
Entrada a banda e a comissão, o povo ia depositando as suas espórtulas em prata, papel ou níquel, apurando-se muitas vezes quantia superior a 800$000.
Uma vez no teatro, dirigia-se a comissão para o palco, onde se achava disposta em semicírculo uma longa fila de cadeiras, precedida de uma pequena mesa com o copo d’água do estilo. Levantado o pano, pronunciava Nicolau Moreira uma pequena alocução, dando em seguida a palavra ao orador oficial.
Patrocínio lia então da tribuna os nomes dos diretores da nova sociedade e realizava em seguida uma conferência abolicionista, a que se seguia geralmente uma parte concertante ou dramática, sempre confiada a amadores e artistas de nome, tanto nacionais como estrangeiros.
As sociedades já organizadas tinham as seguintes denominações:
Clube dos Libertos de Niterói, Gazeta da Tarde, Sociedade Brasileira Contra a Escravidão Libertadora da Escola Militar, Libertadora da Escola de Medicina, Caixa Libertadora José do Patrocínio, Abolicionista Cearense, Centro Abolicionista Ferreira de Meneses, Clube Abolicionista Gutemberg, Clube Tiradentes, Clube Abolicionista dos Empregados do Comércio, Centro Abolicionista Joaquim Nabuco, Libertadora Pernambucana, Abolicionista Espírito-Santense, Sociedade Libertadora Sul-Rio-Grandense, Caixa Emancipadora Joaquim Nabuco, Emancipadora Vicente de Sousa e Sociedade Abolicionista Radical.
Destas, as 15 primeiras, bem como a última, eram abolicionistas, ao passo que as outras eram simplesmente emancipadoras.
Dando-se, em 1883, uma divergência entre Patrocínio (que era radical, e não reconhecia escravos, mas sim escravizados) e um grupo de emancipadores, constituído por Nabuco, Nicolau Moreira, Vicente de Sousa e vários membros da Sociedade Nacional de Imigração, resolveu Patrocínio congregar à parte as sociedades abolicionistas, em uma coligação forte e inexpugnável, a que Nabuco aderiu, logo depois.
Nasceu daí a Confederação Abolicionista.

FONTE: Duque-Estrada, Osório. A abolição. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. (Edições do Senado Federal, v. 39).


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