UM DEPOIMENTO
Carlos Castello Branco
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uando cheguei ao Palácio do Planalto na manhã de 25 de agosto de 1961, seriam dez, dez e meia. Estivera até quase o amanhecer no apartamento de Pedroso Horta e de lá seguira com José Aparecido (1) para seu quarto de hotel. Pelas sete horas, o telefone o chamara, vestira-se às pressas e saíra. Bem mais tarde levantei-me, passei por meu apartamento, tomei banho, barbeei-me e troquei de roupa.
Era uma manhã fresca e tranqüila.
No terceiro andar do Palácio, um funcionário chamou-me a um canto e disse algo que ocorria. Aparecido ordenara-lhe retirar documentos importantes e arrumar toda a papelada.
Havia pouca gente. Mandei um auxiliar empacotar meus papéis e levá-los para minha casa.
Um oficial de gabinete, excitado, mostrou-me o recorte que retirara de seus arquivos: um astrólogo previa que, a 25 de agosto, o governo cairia para se reerguer logo adiante.
Pouco depois, chegou Aparecido. – O presidente renunciou, disse-me em voz baixa. – Já está voando para São Paulo.
Jorna do Brasil, edição de 26 de agosto de 1961
Trancamo-nos no seu gabinete. Contou-me o que vira e o que soubera. Deveríamos preparar uma nota, a qual fugiria ao estilo oficial: já não seria uma nota de governo.
Fui anotando, quase nas suas palavras, a exposição que repetiu, agora ordenada, omitindo um ou outro pormenor.
Datilografei o comunicado, rapidamente. Aparecido leu-o por telefone a Quintanilha Ribeiro, que o aprovou.
Depois chamou o general Pedro Geraldo (2), que ouviu a leitura e comentou: é isso mesmo. O general pensou um pouco e observou: não é bom falar no que houve lá em cima? perguntou. Não, disse Aparecido. Mais tarde soube que aludia à reunião de Pedroso Horta com os ministros militares no gabinete de Pedro Geraldo.
O que soube naquele momento (talvez narrativas posteriores tenham acrescentado à versão primitiva algum dado) foi o seguinte:
O presidente, pelas cinco da manhã, telefonara mais uma vez a Quintanilha (desde que ouvira pelo rádio a denúncia de Lacerda (3), tocara o telefone várias vezes para o chefe da Casa Civil) e disse que havia tomado uma decisão. Pediu que convocasse o general Pedro e seguissem para o Palácio. Aí conheceram ambos a decisão: o presidente renunciava. O general tentou discuti-la. O presidente declarou-a definitiva. Não iria sequer à solenidade militar do Dia do Soldado, que se realizaria naquela manhã.
Jornal Última Hora, edição de 26 de agosto de 1961
Seus dois chefes de gabinete convenceram-no do contrário: a renúncia não era conhecida, o presidente não se sentia agravado pelo Exército, não havia por que antecipar o impacto. Jânio concordou. Foi à parada. Com a mão no peito, solene, como se nada estivesse acontecendo, assistiu ao desfile da tropa. Só Quintanilha tinha os olhos úmidos.
Jânio voltou no carro presidencial com o general Pedro Geraldo. Pedroso Horta, que de nada sabia ainda, Quintanilha e Aparecido, que chegara há pouco, foram noutro carro.
Folha de São Paulo, edição de 26 de agosto de 1961
No gabinete do presidente, reunidos os cinco, Jânio disse-lhes que não havia outra solução: não governaria com sua autoridade alcançada.
Chamei-os para dizer-lhes – foram estas as palavras ditadas a mim por Aparecido – que renunciarei agora à Presidência. Não sei assim exercê-la. Já que o insucesso não teve a coragem da renúncia, é mister que o êxito o tenha.
Não exercerei a Presidência com a autoridade alcançada perante o mundo nem ficarei no governo discutido na confiança, no respeito, na dignidade indispensáveis ao primeiro mandatário. Não se trata de acusação qualquer.
Trata-se de denúncia de quem tem, como eu, solenes e grandes deveres de mandato majoritário. Não nasci presidente da República. Nasci, sim, com a minha consciência.
É a esta que devo atender e respeitar. Ela me diz que a melhor fórmula que tenho, agora, para servir ao povo e à Pátria, é a renúncia.
Pedroso Horta esboçou uma objeção, mas quase que a disse só a Quintanilha. Jânio determinou-lhe que convocasse os ministros militares e fizesse a comunicação oficial. Iria agora redigir o documento de renúncia. Sua intenção era convocar Mazzilli (4) e passar-lhe a Presidência.
Horta observou-lhe que, se não pretendia ouvir apelos e criar constrangimentos, o melhor seria viajar primeiro e comunicar depois a decisão ao Congresso Nacional. O Congresso que empossasse o substituto. O presidente concordou.
Retiraram-se os quatro. Pouco depois, chegavam ao gabinete militar os ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica. Horta transmitiu-lhes o que ouvira de Jânio e disse da inutilidade de qualquer ponderação ou apelo.
Os militares não se conformaram: queriam estar com o presidente. Horta ou Quintanilha, um deles, desceu ao terceiro andar e, pouco depois, o presidente recebeu o marechal Denis, o almirante Heck e o brigadeiro Grum Moss (5), presentes também o general Pedro Geraldo, Quintanilha, Horta e Aparecido.
Repetiu-lhes, mais sucintamente, o que dissera aos seus secretários e ao ministro da Justiça.
– Presidente, não faça isso – disse emocionado o brigadeiro Moss. E o almirante Heck, aflito: – Esse é o maior golpe que sofro na minha vida. O marechal Denis, controlado, objetivo, fez um apelo mais explícito: não faltava ao presidente o apoio das forças armadas, que ali estavam na pessoa de seus chefes, para prestigiá-lo e obedecer a suas ordens. Entendia as dificuldades, mas o presidente devia saber que esse moço (referia-se a Lacerda) é assim mesmo. O marechal pediu ao presidente que ordenasse as providências a tomar, que seriam tomadas: intervenção na Guanabara, fechamento do Congresso... Moss disse que o governo da República não poderia passar às mãos de João Goulart (6).
Jânio interrompeu-os.
– Meus amigos, poupemo-nos esses constrangimentos, quando nada em homenagem ao meu gesto. Minha decisão é definitiva.
Os ministros silenciaram. O presidente agradeceu-lhes a colaboração e a lealdade. Sobre a mesa, um papel no qual Jânio escrevera já umas dez linhas. Era a carta de renúncia.
A curta comunicação ao Congresso, escrita posteriormente, e a carta seriam entregues a Horta para levá-las ao Senado, depois que o presidente chegasse a São Paulo.
Em seguida, Jânio retirou-se. Ao passar pela ante-sala acenou com a mão para os espantados oficiais de gabinete, ali reunidos.
– Perdoem-me, meus amigos, perdoem-me - ia dizendo e andando no seu passo largo e rápido até entrar no elevador. Seguiam-no o general e Aparecido.
Com ambos dirigiu-se ao Palácio da Alvorada.
Dona Eloá (7), de malas prontas, esperava-o. Manhãzinha, antes de sair, o presidente determinara as providências para deixar de vez a residência oficial.
No centro da emoção do presidente estava obviamente a pessoa de Carlos Lacerda. Tenho pena desse homem, disse a Aparecido. E pondo, num gesto, uma mão sobre a outra, acrescentou: Não consegue pôr tijolo sobre tijolo. Lembrou que o recebera há poucos dias, por interferência de dona Eloá, a quem o governador da Guanabara procurara em lágrimas, na aflição de um pai que vê o filho em dificuldades. – Conte, Eloá, conte ao Aparecido como foi que o Lacerda se dirigiu a você, lá no Rio, há menos de uma semana. Dona Eloá rememorou rapidamente o episódio.
A famosa foto de Jânio, após a renúncia
O presidente recomeçou: – Quando ele estava a caminho de Brasília, era já outro homem. Espalhara que vinha a meu chamado para resolver questões políticas. – Você sabe, Aparecido, você até me telefonou. E depois de uma pausa: – Que destino o desse homem, terrível.
No automóvel, a caminho do aeroporto, atentou para o silêncio do seu secretário particular. – Você não está convencido do meu gesto, disse-lhe.
– Realmente, não estou. Não sei se foi a melhor solução, respondeu-lhe Aparecido.
– Fique certo de que não há outra. Pensei muito. Se continuássemos no governo, eu não seria mais eu, você não poderia ser você, nem o general Pedro seria o mesmo. A solução é a renúncia. Com o tempo, você concordará comigo.
NOTAS
1. Oscar Pedroso Horta, advogado paulista, ministro da Justiça no governo Jânio Quadros. José Aparecido de Oliveira, secretário particular do presidente da República.
2. Francisco Quintanilha Ribeiro, chefe da Casa Civil da Presidência da República. General Pedro Geraldo, chefe da Casa Militar da Presidência da República.
3. Carlos (Frederico Werneck) Lacerda, governador do então Estado da Guanabara, cidade-estado (Rio de Janeiro), que fora a Capital Federal até a inauguração de Brasília.
4. Ranieri Mazzilli, deputado federal por São Paulo, da bancada do Partido Social Democrático, era Presidente da Câmara dos Deputados.
5. Marechal Odylio Denis, ministro da Guerra. Almirante Sylvio Heck, ministro da Marinha. Brigadeiro Grum Moss, ministro da Aeronáutica.
6. João Belchior Marques Goulart, então vice-presidente da República, naquele momento em viagem oficial à China.
7. Eloá Quadros, esposa do Presidente.
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FONTE: CASTELLO BRANCO, Carlos. A renúncia de Jânio: um depoimento. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. (Coleção biblioteca básica brasileira)
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